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A professora

TEXTO José Cláudio

01 de Janeiro de 2013

'Camila', de Plínio Palhano. Acrílica sobre tela, 142 x 117 cm, 2008

'Camila', de Plínio Palhano. Acrílica sobre tela, 142 x 117 cm, 2008

Foto Daniela Nader/Reprodução

Como era mesmo o nome do autor de História puxa história? Gastão Cruls. É o caso. Reli, de Cristiano Machado, minto, Aníbal Machado (Cristiano, irmão, foi candidato a presidente), Viagem aos seios de Duília. Belíssimo conto. Os referidos seios, personagem principal, passam de raspão mas permanecem presentes o tempo todo nas entrelinhas, na descrição da paisagem e tudo mais. O que me fez lembrar Os rios profundos, do peruano José Maria Arguedas: você só entende o romance se levar em conta isso, que é isso, sim, o que ele tem a contar, o lugar onde se passa a história e que domina o enredo.

Mas deixemos crítica literária. O que me veio foi o relato de uma das minhas primas, minto, prima porque casada com meu primo, cozinheira divinamente, especialista em buchada de bode. Ou carneiro. Lá pros lados de Barreiros, terra do poeta Garibaldi Otávio.

Numa dessas buchadas, essa mulher de meu primo muito querido, cuja hospitalidade, dela e dele, era continuação da culinária dela passada de mãe para filha, contou-me entre risadas o seguinte. Reunindo alguns cinquentões bons de garfo num dos tais rega-bofes, em ambos os sentidos, do carneiro ou bode e dos convidados, com perdão pelo meu mau gosto da comparação, entre lapadas de pitu, a começar pelo caldinho para provar o tempero, malagueta tiradinha do pé estourada no prato como aconselhou Joca Souza Leão em sua coluna no Jornal do Commercio, e temperar também as gargantas, logo vieram à tona reminiscências.

À medida que do caldinho passaram ao pirão, mais um toque de cana, naquele aperto das casas do interior de quem não era rico, o que ajudava, além do calor propriamente dito o calor entre as pessoas, das reminiscências deslizaram às confidências, algumas trazidas a medo, que todos eram casados, as esposas presentes. A rigidez dos costumes ainda prevalecia, como prevalece até hoje em determinados aspectos, ainda mais numa época anterior, lá se iam mais de trinta anos.

Como em todo lugar, e todas as épocas, sempre existiam algumas almas nobres a que os jovens recorriam. Dentro de certo sigilo. Os comilões, em casa de minha prima, ousando entrar em particularidades nunca dantes navegadas, juntando pedacinhos daqui e dali, chegaram à evidência de que, mesmo morando em lugares diferentes, embora próximos, tinham tido sua primeira vez com a mesma mulher.

Gozava ela da fama de mestra nesse tipo de iniciação. De cuja condução, já ouvi dizer, desses primeiros passos, da mão que nos guia, mão só, não, que nos ensinou a traçar essas primeiras letras, digamos assim, dependerá nossa felicidade para o resto da vida. A prova estava ali nas belas risadas com que o fato era lembrado e se refletia nas bochechas luzidias de suas belas esposas.

Num segundo momento, à proporção que o sol ia declinando, surgiu a pergunta: por onde andará? será que já morreu? Doía-lhes tão grata lembrança nunca ter despertado neles um mínimo gesto de gratidão. Será que não estará passando por alguma necessidade, precisando, quem sabe urgentemente, de algum tipo de assistência ao alcance deles? Bem que poderiam fazer alguma coisa.

Como o aposentado José Maria, do conto de Aníbal Machado, embora sem as mesmas ilusões, que o tempo é implacável, combinaram empreender essa viagem ao passado. E não abandonaram a ideia quando passou o efeito das biritas. Nem poderiam mais conviver com a incerteza sobre o destino dessa espécie de Duília deles, por assim dizer, nem vencer a ansiedade de tornar a vê-la. Muitas daquelas vilazinhas tinham se transformado e até desaparecido, engolidas pelos canaviais, e por isso as primeiras buscas exigiram um certo empenho, nada porém tão custoso quanto as viagens do aposentado em lombo de burro pelas montanhas de Minas Gerais, mesmo porque na Zona da Mata de Pernambuco não existem montanhas.

Para encurtar conversa: chegaram à casa. No mesmo ponto geográfico ou quase. Só que de alvenaria e em rua calçada, não o mocambinho de taipa dentro do mato. Bateram palma, ela apareceu logo. Inverossimilmente na ponta dos cascos, risonha e linda, belos peitos balançando soltos na blusinha leve, sem precisar dos coroas para nada. Para nada mesmo. Como vieram a saber, só gostava de menino novo, cheirando a leite. De preferência, a primeira vez. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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