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Viagem em torno de Lúcio Cardoso

Escritor mineiro produziu obra de ficção de caráter psicológico, rara no contexto realista brasileiro

TEXTO Fernando Monteiro

01 de Agosto de 2012

Escritor mineiro foi um dos raros nomes do romance psicológico no Brasil

Escritor mineiro foi um dos raros nomes do romance psicológico no Brasil

Imagem Diogo Valente

Uma literatura que se inaugura com a obra de um Machado de Assis deveria ter podido manter o rumo firmado por tal começo pela mão de um mulato de gênio. Na cronologia que prefiro usar – e que não diz respeito somente ao tempo que passa em calendários – a data do pontapé inicial não remontaria a Alencar nem a nada antes da grande ficção machadiana (de gosto já tão moderno). Começamos com o pé direito criando a Capitu que ainda resiste como um mistério psicológico...

Estamos falando de sorte grande e meu assunto não é Machado, mas – surpresa – Lúcio Cardoso. E agora devemos fixar o Brasil perdulário que foi, pouco a pouco, perdendo o rumo literário dado por instrumentos assim de ouro, nos seus inícios: a bússola épica de Euclides da Cunha ao mesmo tempo em que produzia o intimismo, nos seus cueiros, de um Le grand Meaulnes tupiniquim mais gostoso do que o francês de Alain Fournier.

Refiro-me ao romance O ateneu, de Raul Pompeia, que antecedeu Fournier também nas febres da imaginação transida pelos não acontecimentos durante as adolescências especialmente nervosas... Com o que chegamos às naus da preferência do mineiro nascido há 100 anos: Joaquim Lúcio Cardoso Filho (1912-1968).

Eis, então, uma literatura que começa com pelo menos três mestres criadores de obras de alta voltagem literária.

Foram as tutelares “divindades” que Afrânio Coutinho escolheu para si, enquanto o espírito sombrio de Lima Barreto via a estranheza dos destinos adultos, nos subúrbios do mesmo Rio de Machado... Outro Barreto (Paulo), escrevendo sob o pseudônimo João do Rio, enveredaria por dentro das noites, em busca de novas estranhezas como que captadas através de espelho art nouveau, até morrer, como Lima, às vésperas do Modernismo.

Desde o brilhante começo, a nossa ficção foi perdendo a força inicial, de raiz “psicológica”, incrementada por um Dyonelio Machado, no Sul, e um Cornélio Penna, até chegar Lúcio Cardoso.

Firmando o leme dessa viagem literária, enfrentemos as águas, agora, do romance regional como um subproduto modernista. Lúcio, aliás, começou aderindo ao gênero – na primeira hora da poderosa influência de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego – ao publicar seu romance de estreia Maleita, em 1934.


Imagem: Reprodução

Na própria carne ficcional da obra que vai publicando de forma quase sequenciada (1935, 1936), o que esse escritor “à margem” vai operar é a passagem de volta à literatura que perdemos. Porque Lúcio Cardoso se assemelharia à restauração de algo como um “elo” perdido, como legítimo herdeiro daquela modernidade inicial da nossa (melhor) literatura, se a ele juntamos, numa etapa posterior, os nomes de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, num mesmo platô introspectivo e de invenção literária.

Para a ótica mais ortodoxa – em se tratando do que apenas parece “linear” na evolução da narrativa brasileira –, certamente que acabo de dar alguns saltos mortais, ao propor uma espécie de elipse do regionalismo, do qual só recentemente fomos nos emancipando. É, entretanto, o único recurso que permite que se possa chegar a Lúcio como “módulo intercambiável” do quadro, e se fazendo o pulo necessário do longo hiato que torna Lúcio, agora, o nosso romancista psicológico.

No meio do salto, de algum modo, foi atropelado o carioca Octávio de Faria. Pois tentou escrever seu roman-fleuve – a Tragédia brasileira –, não conseguiu, e a sua obra-prima está fora da Tragédia: leiam asNovelas da masmorra, e estarão a braços com três das melhores ficções brasileiras de todos os tempos. Octávio talvez precisasse apenas alargar a visão católica, para dar o outro tipo de salto mortal necessário – embora a força estivesse, naquela altura, com o tipo de asa “torta” do Modernismo que foi o romance regionalista, convenhamos.

Lúcio Cardoso é, para mim, o grande romancista que faltou, o Faulkner que esperávamos e que não veio, à brasileira, na obra de passagem para a modernidade pós-1930. Daquele “pontapé” inicial – e seus desdobramentos – é ele, com certeza, um criador mais ambicioso do que Cornélio Penna e sua literatura de rendas e bordados (“romances de antiquário”, na visão de Mário de Andrade), na sala onde a menina morta nos olha desde algum pálido retrato.

O Sul iria trazer a voz de Veríssimo, que pensava que era um romancista argentino educado em campo de neve americano. Não era. Ninguém irá se impactar, atualmente, com novelas ao estilo de Fernando Namora, sobre dilemas amorosos de médicos vacilantes que serão depois trocados por jagunços farroupilhas – em tom épico forçado –, quando o vento forte da literatura latino-americana vem a soprar, nos ouvidos de Érico, com trompa rouca demais para ser ouvida onde gritam todos os diabos da casa sem cortinas de renda e sem trancas nas portas da fronteira, casa arrombada, casa de demônios, a casa assassinada de Lúcio Cardoso.

A literatura dos interiores enlouquecidos já se acercara pela mão do pontilhista Luis Jardim – com vocação de voyeur (em As confissões do meu tio Gonzaga) que recuou um passo do tema do incesto – e, assim, é Lúcio mesmo o único Faulkner que temos, virado para dentro e para fora, perseguido pelo difícil amor de Deus e sentindo, na carne, a morada do diabólico Outro.

Antonio Gala nos diz que “o corpo guarda sem saber a marca dos desejos consumados, e também talvez dos que não se consumaram e dos que nunca poderão se consumar”. Ora, somente em Lúcio o leitor de verticalidades enxerga o portador daquela angústia que passou de moda porque perdemos o sentido de transcendência do ato de viver, não só misterioso, mas danação que cumpre “decifrar”. Quando o poeta Lêdo Ivo afirma ser Lúcio “o grande emissário da noite, da sombra e do silêncio numa literatura que sempre foi solar e tropical”, ele situa bem o escritor cuja estreia foi quase desajeitada, com um romance que traça a trajetória do seu pai aventureiro, Joaquim Lúcio Cardoso, fundador de Pirapora.


Imagem: Reprodução

O romance seguinte – Salgueiro, de 1935 – seguiria ainda a mesma receita, mas A luz no subsolo, do ano seguinte, e principalmente Dias perdidos (1938) e a novela Mãos vazias, fariam desviar a sua ficção para o intimismo avant la lettre que Cardoso vai representar na prosa brasileira do pós-guerra. A luz no subsolo é ainda um texto indeciso entre as duas pulsões – a solar e a noturna, para ecoar as palavras de Lêdo –, porém já trazia uma força nova, que Mário de Andrade de imediato reconheceu: “Seu livro é um forte livro. Artisticamente me pareceu ruim. Socialmente me pareceu detestável. Mas compreendi perfeitamente a sua finalidade de repor o espiritual dentro da materialística literatura de romance que estamos fazendo agora no Brasil. Deus voltou a se mover sobre a face das águas.”

Mário não poderia imaginar que, anos mais tarde, Lúcio daria início justamente à sua Trilogia do mundo sem Deus – focado na terra desolada do mesmo Rio de Janeiro a que se devotou Octávio de Faria, infelizmente sem a coragem do mergulho de Cardoso no submundo das modernas cidades ornadas dos colares das prostitutas, das garrafas no lixo dos alcoólatras e nas manchas de sangue na parede dos assassinos. As novelas InácioO enfeitiçado e Baltazar (esta, inédita), relançadas pela Editora Record, fazem parte do projeto de investigação que Lúcio não chegou a completar com relação ao submundo carioca. Sob a pele das coisas, seu olhar não se deixa fascinar pela cidade – ao contrário da insustentável leveza da literatura do amigo Aníbal Machado, por exemplo.

O próprio Lúcio explica a diferença de atitudes: “Para quem não desdenha os grandes saltos na inquietação e no obscuro, tudo é bom para ser visto de perto. Digo TUDO: as casas cheias de sombras e promessas aliciantes, os grandes becos da necrose, o tóxico, os olhos insones do ciúme, o inimigo subterrâneo que nos saúda, a prostituta que nos recebe sem suspeita, a conversa que pode decidir o futuro, tudo.”

A “lenda urbana” dá conta de que, nesse período, o escritor teria chegado a contratar um matador de aluguel para persegui-lo, de modo a sentir na pele a sensação do seu personagem jurado de morte. O que há de certo é o que Lúcio escreveu em cartas como as destinadas a Cornélio Penna, o autor de A menina morta que merecia toda a sua confiança: “É impossível a alguém viver como eu vivo, sem explodir ou morrer um dia. Estou aqui sem coragem de atravessar o dia, de reunir as minhas numerosas máscaras...”

Clarice Lispector também manteve correspondência com Lúcio, e comprova essa tormenta interior (ou a “máquina infernal da mente que Deus me deu”, nas palavras dele), ao mesmo tempo em que testemunha a influência que ele exerceu sobre os autores da sua geração, a partir de quando o seu caminho (para a interioridade) se esclareceu para LC. Tanto quanto detestou o título O lustre, foi Lúcio quem “batizou” Perto do coração selvagem e, ainda segundo a Lispector, foi ele quem lhe ensinou “a conhecer as pessoas através das máscaras”.

Amigos de Clarice dão como certo que a admiração da escritora resvalava para o terreno amoroso, num sentimento impossível de ser correspondido por Lúcio, homossexual apaixonado pelas mulheres apenas como criador capaz de instilar vida em personagens como a Nina de Crônica da casa assassinada – que Wilson Martins tem certeza de que “ficará como uma das grandes mulheres do romance brasileiro. Sua personalidade imperiosa e despótica, seu enigma secreto dominam não somente a chácara e a família dos Menezes, mas, ainda, e sobretudo, o próprio leitor”.

Essa é a obra-prima de Lúcio – e ainda pede uma viagem mais longa do que tentei esboçar aqui, à volta de uma casa quase inviolada (no que ela tem de mais íntimo e secreto), no fundo do quarto escuro da alma. Precisa ser relida, neste momento agônico de uma ficção que se esgarça em realismo datado, violência e confusão com crônica do dia a dia. A “casa assassinada” de Lúcio talvez aponte para uma literatura de ficção que, aqui e agora, ainda pode ser salva pela leitura de um assassino da banalidade, de um talento maior que se está deixando de ler para perder tempo com os escritores menores que pululam na mídia, reescrevendo – ou tentando reescrever – coisas que já foram ditas de melhor modo e com maior alcance. Que voltem os mestres (e Cardoso é um deles) às girândolas das livrarias culturais brilhando com aquelas últimas novidades que não acrescentam nada. 

FERNANDO MONTEIRO, escritor e cineasta.

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