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Armando Lôbo: Eterno estudante dos sons que virão

Compositor, cantor e arranjador pernambucano lança seu terceiro álbum solo, 'Técnicas modernas do êxtase', em que mescla estilos musicais e referências culturais

TEXTO Débora Nascimento

01 de Agosto de 2012

Armando Lôbo volta a se apresentar na sua cidade natal após 10 anos

Armando Lôbo volta a se apresentar na sua cidade natal após 10 anos

Foto Rodrigo Montenegro/Divulgação

Havia um lado B na geração manguebeat. Enquanto a maior parte das atenções se voltava para Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi, protagonistas do cenário musical pernambucano dos anos 1990, outras bandas ficavam obscurecidas pelo impacto daquelas duas, embora não estivessem abaixo da qualidade artística de ambas. Em meio a essa parcela menos badalada, encontrava-se a Santa Boêmia, cujo vocalista era Armando Lôbo, músico inquieto que não se contentava apenas em levar adiante o trabalho de seu grupo. Queria mais. Em 1997, seguiu carreira solo e saiu do Recife para estudar composição, harmonia, fuga, contraponto e orquestração no Rio de Janeiro.

“A principal razão de ter saído do Recife foi para evoluir meus estudos, pois na cidade não existia, nem existe, curso superior de composição, e o mercado de música clássica é ainda muito restrito”, conta Armando, em entrevista por telefone, de sua casa no bairro de Santa Tereza. O músico afirma que o mercado está muito voltado para a música comercial e que é preciso estimular a experimentação, inclusive na música erudita.

“A música eletrônica não teria existido sem os eruditos, sem os rudimentos eletrônicos que iriam formar a sua base. É preciso ter espaço para o experimento. Por isso saí do Recife, para estudar mais. Saí do Recife, mas o Recife não saiu de mim”, lembra o artista, que, após 10 anos sem se apresentar na terra natal, volta à cidade para lançar, no dia 25 de agosto, em show no Teatro Imip (na Ilha do Leite), Técnicas modernas do êxtase, CD encartado nesta edição da Continente. Na ocasião, também divulgará o livro de poemas S.O.S reversos (Editora Moinhos de Vento).

Na primeira parte do espetáculo, o artista vai interpretar algumas músicas do disco, acompanhado de uma formação instrumental que inclui sax, bateria, contrabaixo, trompete, flauta e piano. Na segunda metade, vai apresentar composições inéditas. “Como tenho pouca oportunidade de tocar no Recife, vou logo mostrar minha produção futura, mais experimental, com influência de jazz e música erudita”, explica.

Apesar de ser um bem-sucedido professor, arranjador e compositor de trilhas sonoras, Armando Lôbo ainda enfrenta os problemas do mercado da música. E um dos entraves que mais lhe incomodam é ter que ultrapassar a fronteira musical e adentrar nos pormenores e trâmites burocráticos dessa indústria. “Tenho que ser meu próprio produtor, o que inclui fazer planilha, agendar teatro, fazer assessoria de imprensa, tocar, compor, produzir. E sem contar que é tudo de meu bolso. Eu trabalho, dou aula, cuido de filho; não posso virar produtor de uma hora para outra. Os produtores costumam gostar de coisa pronta, do que é comercial. Seria ótimo se a gente tivesse dois Sergei Diaghilev (empresário que promoveu Stravinsky), que conseguiu impor um artista. Aqui a gente fica sozinho”, reclama.

Além de investir orçamento próprio para poder gravar e tocar, Armando conta que ainda não consegue ter retorno financeiro com os shows e as vendagens de discos. “É difícil se fazer uma música que busque originalidade e que não tenha prejuízo. Há outra coisa: não basta só a obra, você tem que fazer o social, ter prestígio nas relações sociais. Vejo pessoas que, depois de um tempo de fracassos, vestem a roupa da hipocrisia, de forma a conseguir com a vida social o que a obra não conseguiu”, lamenta. “É preciso manter a dignidade. O artista tem que ser fiel a uma visão. Quando ele começa a virar um burocrata, um ser social demais, o foco fica mais na vaidade do que na própria expressão artística”, avalia.

O cantor também lembra a dificuldade que muitos músicos têm para conseguir verbas para gravar seus discos de forma independente. Para ele, as leis de incentivo à cultura e vários setores do mercado da música estão caindo na armadilha do “falso alternativo”: “Para conseguir apoio, muita gente está fingindo que não é mainstream, passando-se por alternativa. Mas sua música é comercial, com estética comum; apenas não teve sucesso”.


Para o compositor recifense, o processo de criação de uma canção só se conclui com o arranjo. Foto: André Fontes/Divulgação

SOMBRIO E RADIANTE
Apesar de toda a sua batalha na atual indústria fonográfica, cujo novo perfil ainda está se desenhando, Armando não se dobra ao caminho mais fácil. Isso está evidente nos 40 minutos de Técnicas modernas do êxtase. Nas 10 faixas, percorre-se trilhas sombrias, íngremes, mas, por vezes, radiantes. E nesse trajeto de intricados arranjos e letras bem estudadas o compositor exibe algumas amostras de seu estofo cultural, tecendo referências a variados nomes da literatura e da música.

A faixa de abertura, Litania do gozo, começa com uma marcação lembrando uma marcha fúnebre, o que pode assustar os mais fracos, mas ela é apenas um prólogo para o tema que é pontuado aqui e ali no disco, a morte. A partir de então, adentramos na música Homem da mata, na qual paira uma sutil e agradável atmosfera de Milton Nascimento e Tom Jobim. Na canção, o afinado cantor faz dueto com a intérprete italiana Cristina Renzetti. Em seguida, temos a primeira composição do CD que não é de autoria de Armando Lôbo, Matinta-Perêra, clássico do Amazonas, composto por Waldemar Henrique e Antônio Tavernard. A faixa faz um elo conceitual com a anterior e tem participação de Carlos Malta nas flautas.

Quando o disco começa a trilhar um percurso uniforme, Tempestade e ímpeto quebra a expectativa e mostra uma de suas primeiras surpresas, um galope dissonante, embalado em um rock herdeiro de Alceu Valença. Nela, Armando, responsável pelo violão de todo o disco, toca guitarra. Depois, surge a caribenha e dançante Canción de negros en Cuba, em que o instrumentista mostra seu talento como compositor, inserindo música no poema homônimo de Frederico García Lorca. A canção é do tempo da banda Santa Boêmia.

Em mais duas faixas, o artista utilizou poesias para, a partir delas, criar a sonoridade, como em Atrás das máscaras, com poema de Conde Belamorte, poeta soturno de quem faz um resgate, eCópula, a partir de versos de Santa Teresa d’Ávila e San Juan de la Cruz, na qual apresenta uma releitura da música medieval.

Diurno ou a noite dentro de uma fruta comprova a preocupação do compositor com o acabamento das obras. “Eu sempre tenho que fazer o arranjo, pois, para mim, a composição só termina nele. Na música erudita, a orquestração é parte da composição. Na música popular, não. Construção, de Chico Buarque, deve muito ao arranjo de Rogério Duprat. Aquele impacto que a letra tem, sem aquele arranjo, perde o sentido. O arranjo dramatiza o discurso musical”, afirma.

Para incrementar mais a diversidade desse disco, Armando, que é também cofundador do Frevo Diabo, grupo carioca que compõe e toca o ritmo pernambucano, inseriu o frevo de rua O crepúsculo do frevo, cuja letra provocativa relata a morte imaginária do gênero. A música foi construída a partir da abertura da ópera O crepúsculo dos deuses, de Richard Wagner.

Ainda num tom desesperançoso, mas belo, Armando Lôbo encerra o disco com a faixa Morte em Veneza, que traz uma “parceria” com Gustav Mahler (1860-1911), de quem fez uma adaptação doadagietto da Quinta sinfonia. A letra ambienta no Recife a tragédia do romance de Thomas Mann, retratada por Luchino Visconti no filme homônimo de 1971.

Essas tantas referências de Técnicas modernas do êxtase atestam uma frase que o músico pernambucano de 41 anos diz como uma filosofia de vida: “Quero ser como Stravinsky, chegar perto dos 90 anos ainda estudando”. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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