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Redes: Ótimas para descansar

Um dos legados culturais indígenas mais assimilados no país movimenta a economia de cidades do sertão nordestino e incentiva a realização de feiras e consórcios especializados

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS ROBERTA GUIMARÃES

01 de Julho de 2012

Foto Roberta Guimarães

A rede de armar, usada para dormir, embalar bebês e crianças, cochilar, fazer sexo, descansar e conduzir os mortos à sua “morada final”, como nos mostrou João Cabral de Melo Neto no poema Morte e vida severina, é um utensílio doméstico tão integrado ao cotidiano dos brasileiros, que poucos se dão conta de sua importância como peça emblemática da cultura indígena sul-americana, como mobiliário 100% nativo, incorporado e disseminado pelo mundo a partir do descobrimento das Américas.

Citada pelo escrivão Pero Vaz Caminha na carta ao rei de Portugal, D. Manuel I, numa segunda-feira, dia 27 de abril de 1500, logo após a chegada à “Terra de Santa Cruz”, a descoberta do artefato indígena foi uma surpresa para os portugueses recém-desembarcados, que jamais haviam visto algo semelhante nos lugares por onde tinham passado.

Descrevendo a povoação dos tupiniquins que encontrara no atual território baiano, Caminha chamava a atenção para as habitações e mobiliários da tribo, em que a rede se destacava como peça central. “...haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia... todas de uma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam...”. O texto é o primeiro registro em língua portuguesa do artefato.

Se houvesse perguntado aos gentílicos o nome dado por eles à peça que ornava as tabas, Caminha a teria grafado como ini. E foi como era chamada pelos tupiniquins que a registraram os estrangeiros que posteriormente por aqui chegaram, a exemplo do náufrago Hans Staden.

Certamente, a analogia encontrada por Caminha deveu-se à semelhança do mobiliário indígena com a rede dos pescadores, tão conhecida dos navegadores portugueses. Os demais colonizadores, que também se depararam com redes em territórios sul-americanos, utilizariam nome diferente e largamente difundido na Europa. Em vários países, ela é citada e conhecida, até os dias atuais, como hamaca, denominação encontrada primeiramente entre os povos do Peru. “Batizou-a (Caminha) pela semelhança das malhas com a rede de pescar. Rede de dormir nunca Pero Vaz Caminha deparara em dias de sua vida”, relata-nos Luís da Câmara Cascudo no seu clássico Rede de dormir – uma pesquisa etnográfica.


Artesãos gastam horas, e andam “quilômetros”, para urdir os fios que tecerão as peças

Independentemente do nome dado, a rede foi um dos primeiros elementos de adaptação e acomodação dos portugueses aos costumes indígenas. Peça que se tornou fundamental para a consolidação da conquista do território, uma vez que podia ser facilmente transportada, e protegia os desbravadores dos animais e insetos rasteiros, a rede foi um importante utensílio para integrar o colonizador à terra quente e inóspita, onde as dormidas ao sabor do vento eram mais do que aconselhadas.

AFETO SERTANEJO
A rede está presente entre os indígenas brasileiros e é encontrada largamente entre povos amazônicos, fabricada no tear com fios de algodão ou com fibras naturais, como o tucum e outros vegetais. Desde a chegada dos portugueses, já era produzida em teares pequenos e rudimentares, de forma limitada, com fios abertos, bem menos cerrados do que os atuais, sem o uso das varandas, bordados e adereços que seriam implementados séculos mais tarde pelas sinhazinhas portuguesas, que transformariam as peças em verdadeiras obras de arte.

Para aproximar-se da produção atual desse utensílio, a revista Continente percorreu três estados – Pernambuco, Paraíba e Ceará – e verificou que a rede mantém-se incorporada ao cotidiano do nordestino. No Sertão, especificamente entre os cearenses, a rede de dormir alcança importância afetiva exemplar, sendo presença constante no ambiente doméstico.

Essa relação de proximidade com o artefato verifica-se no escritor e médico Ronaldo Correia de Brito, que nasceu em Saboeiro, no Sertão dos Inhamuns e viveu parte da infância e adolescência no Crato. Ronaldo afirma que, até os 19 anos, dormiu apenas em redes – hábito que abandonou – e recorda o papel central que o artefato detinha na família e na sociedade sertaneja. Ele possui mais de 20 redes, mantidas na sua residência no Recife e em casa de campo no interior pernambucano.

“Todas as casas sertanejas tinham um tear manual, para a fabricação e consumo próprio das famílias. Minha avó, Maria de Caldas, quando casou, tinha um patrimônio riquíssimo: levou 60 redes no enxoval! O que era um número considerável, mas bem adequado, visto que ela teve nove filhos. Se levarmos em conta que os meninos faziam xixi, coco, dormiam, comiam, usavam as peças em tempo integral, era um bom acervo, mas que se desgastou devido ao uso constante e às necessidades da família ”, explica Ronaldo, que especula sobre a presença da rede no Sertão nordestino.


Feitas à mão, as varandas, invenção das sinhazinhas portuguesas, embelezam as redes

Para ele, o artefato tem sido um democratizador do espaço, que se torna mais amplo com a supressão de móveis e fixação de ganchos para abrigar visitas e parentes que porventura apareçam. “O indivíduo nascia e era posto na rede. Depois, nela dormia a vida toda; quando morria, era enterrado nela. As pessoas costumavam conversar escanchadas na rede, a exemplo do meu avô, José Leandro, que só resolvia os negócios conversando com o irmão dessa forma. Hoje, ela ganhou um caráter de descanso, decorativo, mas antes não: toda a dinâmica das casas sertanejas funcionava em torno da rede”, diz Ronaldo.

A arquitetura tradicional da casa sertaneja cearense, segundo o escritor, diferencia-se da urbana, exatamente para adaptar-se ao artefato. Observe-se, a esse respeito, os alpendres e a presença de pouca mobília no interior das residências, em que muitas vezes sequer existem camas. “Antigamente, não havia mesmo! No Sertão do Saboeiro (Inhamuns), encontrei, recentemente, uma casa cujo vão era todo ocupado por redes e armadores, o que quer dizer que é uma prática mantida na região”, pontua Ronaldo.

COLECIONADORAS
O escritor não é o único cearense a devotar-se às redes. Aos 86 anos, Almina Arraes de Alencar, residente no Crato, é uma incentivadora do trabalho das artesãs estaduais, descrito por conhecedores como um dos mais requintados e elaborados entre os produzidos no Brasil.

Além de ser dona de uma coleção com dezenas de redes – uma delas centenária, herdada de sua mãe; e outra, parte do seu enxoval de casamento, ocorrido há 66 anos –, Arminda é responsável pela realização de um inusitado consórcio: o de redes bordadas em ponto cruz, ponto estrela, amor-perfeito, Brito Alves (assim batizada em homenagem ao advogado que defendeu o governador Miguel Arraes durante o golpe de 1964) e outras preciosidades produzidas por artesãs do Sertão dos Inhamuns, de Várzea Alegre e de cidades vizinhas ao Crato. “Muitas desses redes levam até seis meses para serem produzidas”, diz Almina, que não ganha um centavo na comercialização, apenas faz o papel de intermediária para ajudar as artistas populares. Desse consórcio, participam mulheres que muitas vezes esperam anos para receber um exemplar.

Recifense, a bancária Nina Morais sempre comprou redes de tear coloridas, das que são comumente encontradas em Pernambuco. Mas alterou os hábitos depois que conheceu as fiandeiras cearenses na casa de Sônia Lessa, socióloga e colecionadora, que se responsabiliza por trazer os lotes sorteados no consórcio para as pernambucanas adeptas dos pontos e bordados produzidos pelas artesãs ajudadas por Almina. “Nas visitas à casa de Sônia, fiquei deslumbrada com seu acervo. Acho que as redes cearenses se destacam pela leveza, pelo colorido, pela qualidade. São diferentes. A confecção é feita em uma linha só, há o acabamento, o babado elegante, o crochê das varandas. As redes produzidas por essas artesãs do Ceará são verdadeiras obras de arte. Você não consegue ver uma emenda, são perfeitas. Já tenho duas: uma de ponto estrela e outra de ponto de cruz. E continuo no consórcio, aguardando novos exemplares”, conta Nina, que também possui exemplares da Paraíba.


Integradas ao cotidiano do distrito de Caraibeiras, no Sertão pernambucano, as redes lhe dão colorido e informalidade

CARAIBEIRAS
Em Caraibeiras, distrito de Tacaratu, no Sertão pernambucano, 85% da população da cidade – segundo dados da prefeitura local – vivem da confecção e venda do produto. A atividade, também segundo informações das autoridades municipais, teve início no final do século 19, quando uma índia da tribo pancararu levou um pequeno tear para a localidade. Desde então, a produção é contínua, e em todas as partes é possível encontrar peças estendidas nas fachadas das casas e pessoas usufruindo do descanso em uma colorida rede de tear. Há também pequenas fábricas familiares que se dedicam a produzir as peças que, espalhadas por todas as partes, confere um ar informal ao distrito.

Uma mudança significativa no ritmo de produção em Caraibeiras se deu na década de 1970, quando o tear conhecido como batelão, maior e mais rápido, foi trazido à cidade. Mas a “revolução” das redes caraibenses se deu, realmente, algumas décadas antes, com uma invenção de Mário Pedro da Silva, 74 anos, nascido na região e morador do Sitio Ouricuri. Foi o tear de rede de casal que dispensou o trabalho extra das tecelãs, que juntavam módulos para compor uma rede mais larga, ainda visto em várias regiões do Ceará.

“Criei o tear largo, manual, para fazer as redes sem emenda. Toda minha família trabalhava com rede, então resolvi descomplicar”, explica o empresário, que se lembra de ter visto, quando criança, índios tecendo os fios de algodão no fuso. Ele afirma que seu tear foi copiado em todo o Nordeste, o que simplificou o trabalho de gerações de artesãos.

Maria de Fátima Gomes da Silva, parente de Mário Pedro, é uma das poucas que resistem ao tear elétrico, usado maciçamente pelas fábricas e artesãos da cidade. Ela utiliza o sistema manual, o que resulta em redes um pouco mais caras, porém, mais disputadas. “Em Caraibeiras, sou a única que ainda faz assim. Se tiver mais alguém, só se for nos sítios que ficam nos arredores. Mas a vantagem é que sou procurada por todo o Brasil, pela qualidade do meu trabalho, porque a peça produzida no tear manual é mais resistente”, conta a artesã que, desde os 11 anos, se dedica a fazer redes e produz uma média de 30 a 40 delas por mês, todas já pré-encomendadas e enviadas, via postal, para diversas regiões brasileiras.

Mas mesmo as redes feitas em teares elétricos, produzidas pela maioria dos artesãos, não podem ser classificadas como algo “industrial”, mecanizado e fácil. Na verdade, a rede é um objeto cujo acabamento demanda trabalho artesanal e divisão de tarefas entre várias pessoas. Apenas o pano da rede é produzido em máquinas e, mesmo assim, essas ferramentas não são automatizadas: elas exigem esforço manual para serem operadas.


Almina de Alencar, que tem coleção de redes antigas e raras, promove consórcios com peças bordadas para ajudar as artesãs cearenses

“Depois de tecer o corpo da peça, vem a parte do acabamento, que exige trabalho e minúcia”, explica Edilma Gomes Feitosa, uma das artesãs que se dedica à produção de redes e que se recusa a comercializar os produtos na feira da cidade, que acontece aos sábados. “O meu material, apesar de ser feito em tear elétrico, é extremamente elaborado, e não custa menos de R$ 70 a peça (a rede). Na feira, o pessoal pratica preços vergonhosos. Não vou perder meu tempo”, ressalva Edilma, que também tem quase toda a produção despachada para fora de Tacaratu, via encomenda postal.

SÃO BENTO
Em São Bento, Sertão da Paraíba, o comércio em torno das redes é intenso. Às segundas, uma grande feira em torno do produto reúne centenas de comerciantes da região. A cidade tem, inclusive, grandes fábricas, como a Santa Luzia, que gera mais de 150 empregos diretos e indiretos, exportando peças para o Brasil e para o exterior. Assim como ocorre com alguns produtores de Caraibeiras, a administração da empresa não vê vantagens de participar da feira. “Nossos produtos têm design, são melhor acabados e destinados a um público informado, a maioria de fora, que dá valor ao trabalho artesanal”, afirma Delci Bezerra Borges Filho, gerente-geral da fábrica.


As irmãs Fátima e Edilma Feitosa trabalham desde muito novas na produção de belas redes de tear

Na Santa Luzia, que possui vários andares de fabricação de redes, mantas, adereços de cama, mesa e banho, o processo é industrial só em parte. “O fio – que vem da China, de Cajazeiras e do Recife – é colocado na grade para urdir (processo no qual se enrola a linha e se montam rolos gigantes); depois vai para a barcada (na qual os rolos são colocados, com as cores de linhas que serão usadas na confecção do tecido), segue para o tecedor, que vai fazer o desenho já pré-moldado pela máquina”, explica Delci.

Mas o processo mecânico para por aí. Depois disso, os fabricantes têm que recorrer a artesãos autônomos para a execução dos detalhes. “Se houver bordados, eles têm que ser produzidos separadamente. A união dos fios para a ligação com o punho (que no Ceará é conhecido como mamucaba e, em Pernambuco, como cadio), precisa ser feita, manualmente, por outra pessoa. O punho, em si, e as varandas são outras tarefas, à parte. Portanto, podemos dizer que qualquer rede, por mais que sua base seja tecida numa máquina industrial, sempre terá um acabamento extremante trabalhoso e manual”, aponta Delci.

Nos três locais visitados, Ceará, Pernambuco e Paraíba, o trabalho de confecções de redes tende a se tornar, cada dia, mais industrial, e menos artesanal, com exceções de comunidades isoladas (veja matéria nas próximas páginas).“As peças 100% feitas à mão são raras, caras e dispendiosas, seja para os que as produzem, seja para os que as compram. Também é impossível que só uma pessoa faça a rede: a tendência é que se criem núcleos dedicados a cada uma das etapas de elaboração das peças. Apesar de valorizar a qualidade, de termos um material bem elaborado e trabalhoso, no sentido que prezamos por peças de primeira linha, acredito que a tendência é que os tecidos das redes sejam cada vez mais industrializados e que se encontrem alternativas para simplificar os acabamentos. O mercado e seus custos se sobreporão ao artesanato”, antevê o gerente-geral da Santa Luzia. 

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