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Tarkovsky: Em busca da pureza do olhar

O russo, que neste mês completaria 80 anos, entrou para a história do cinema com uma narrativa que deixava o público livre para tecer suas interpretações

TEXTO Josias Teófilo

01 de Abril de 2012

O filme 'Andrei Rublev' foi censurado por Leonid Brejnev, sob alegação de passar imagem negativa da Rússia

O filme 'Andrei Rublev' foi censurado por Leonid Brejnev, sob alegação de passar imagem negativa da Rússia

Foto Reprodução

O russo Andrei Tarkovsky entrou para a história do cinema com apenas sete longas-metragens, cinco deles feitos na União Soviética e os outros dois na Itália e Suécia, na década de 1980, quando já exilado. Seu legado, entretanto, não é exclusivamente cinematográfico. Seguindo uma tradição russa de artistas que são também teóricos da arte – entre o final do século 19 e o começo do século 20, Tolstoi escrevera seu polêmico ensaio O que é a arte?, Kandinsky, o livro Do espiritual na arte, e Malevitch, junto com o poeta Maiakovsky, o Manifesto Suprematista –, Tarkovsky escreveu (“por falta de coisa melhor a fazer”, como ele dizia) um dos mais influentes e poderosos escritos teóricos sobre o cinema: o livro Esculpir o tempo.

Tarkovsky – cujo pai, Arseni, era poeta – nasceu num pequeno vilarejo a cerca de 350 quilômetros de Moscou, em abril de 1932. O nome da família surgiu há, aproximadamente, sete séculos e, até meados do século 19, o Principado Tarkovsky existiu na região do Cáucaso – sua linhagem espiritual, contudo, parece ser mais antiga do que a genealógica.

Depois de realizar o seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivan (1962), que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, concorrendo com diretores como Kubrick, Godard e Pasolini, Tarkovsky partiu para um ambicioso projeto: retratar uma figura central da cultura e da ortodoxia russa, Andrei Rublev, pintor de ícones do século 15. A falta de informações existentes sobre a vida de Rublev, em vez de uma dificuldade, foi uma grande oportunidade para o seu gênio criador. O resultado foi um filme de 3h20, em preto e branco, com exceção da cena final, colorida, em que surgem os ícones dourados pintados por Rublev.


Cineasta deixa legado de apenas sete filmes. Ele também desenvolveu obra ensaística.
Foto: Reprodução

Ao fazer um épico sobre o pintor de representações medievais, que incorpora uma tradição pictórica vinda desde Bizâncio, Tarkovsky se liga a uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã. O fato é que ele viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então seguiam a cartilha marxista-leninista. Rublev, contudo, era um símbolo internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto.

Depois de pronto, o filme foi apresentado ao presidente soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o diretor doFestival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Andrei Rublev (1966) não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes, como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo.

O interesse de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome e morte – tudo que foi retratado no filme e que desagradou às autoridades soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos, vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a situação de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do que isso, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a tradição iconográfica.

ÍDOLO E ÍCONE
No livro O ícone – uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de representação religiosa que prende o olhar a si mesmo, pelas formas, cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone, ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia com uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial – a saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial – como o modelo que coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de arte.

Ele se mostrou profundamente decepcionado com o que viu, nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como Fellini, Polanski, Trier etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é, portanto, essencialmente espiritual. Recusava-se a usar cores vivas nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes, o filme se caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores (o recém-falecido Erland Josepson, ator preferido de Bergman, afirmou certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse entender livremente o que estivesse vendo). Além disso, ele dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com Eisenstein, negava os excessos da montagem.

Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do fenômeno artístico como um fato que transcende o tempo e o espaço. 

JOSIAS TEÓFILO, jornalista e mestrando em Filosofia pela UnB.

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