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“O humor tem que destruir”

O cartunista Allan Sieber fala sobre suas influências, sua obra que envolve temas controversos, como o racismo e a religião, e discute as recentes polêmicas que circundam o trabalho dos humoristas

TEXTO Diogo Guedes

01 de Fevereiro de 2012

Ilustração Allan Sieber/Reprodução

Um homem com uma Bíblia na mão diz, no meio da rua, a um trabalhador: “Jesus te ama, irmão!”. O passante, com cara de poucos amigos, responde prontamente: “Fala pra ele que eu já sou casado”. Algumas das marcas do trabalho do cartunista gaúcho Allan Sieber são tiradas ranzinzas, mal-humoradas como essa, presentes em seus quadrinhos, entrevistas, animações e programas de TV. Mais famoso por seu trabalho em HQs, ele é um dos mais respeitados nomes das tiras de humor no Brasil, um mestre do sarcasmo, da crítica do comportamento contemporâneo e dos quadrinhos autobiográficos e autodegradantes.

Tratando de temas polêmicos, como religião e racismo, Sieber atualmente publica na Folha de S.Paulo duas séries diárias, Bifaland e Preto no Branco, e comanda o Toscographics, estúdio de animação e cinema. Nesta entrevista, feita por telefone em um de seus intervalos da pesada rotina de trabalho, o quadrinista comenta suas influências e trajetórias nos quadrinhos e as polêmicas no campo do humor, fruto de piadas de comediantes como Danilo Gentili e Rafinha Bastos. Para ele, “qualquer cartunista que se preze tem que ter uma visão crítica”.

CONTINENTE Gostaria que você falasse sobre sua iniciação nos quadrinhos. Seu pai, Jouralbo Sieber, é desenhista, como você contou no livro que fez com ele, Ninguém me convidou. Que artistas o despertaram para as HQs?
ALLAN SIEBER Na verdade, quando eu era bem moleque, com uns sete ou oito anos, era obcecado por tiras de jornais. Eu gostava daquele formato, dos bonecos narigudos tipo Hagar, Crock (de Crock e os Legendários) e Snoopy (do Peanuts). Lembro que eu recortava essas tiras e colava no meu caderno, para fazer um gibi de brincadeira. Meu pai tinha alguns exemplares do Gibi, aquele jornalzão standard, que deu origem ao nome do formato no começo dos anos 1970. Era meio um balaio de gatos, e uma das coisas que me marcaram muito foram as histórias do Spirit, de Will Eisner, que eram soturnas e humanistas.Posteriormente, apareceu lá em casa um livro do Millôr, chamado Que país é esse?. Obviamente, eu não entendia nada, não conseguia apreender toda a riqueza do texto, mas gostava muito do desenho dele, de como ele fazia o rosto como uma carranca, as mãos como umas garras. Foi um dos primeiros caras que eu tentei copiar. Depois, comprei uma Chiclete com Banana e tomei um choque: “Isso tem para vender na banca! Dá para fazer quadrinhos assim, agressivos, sem amarras”. O trabalho do Angeli foi um baque para mim. Por fim, eu comecei a conhecer as coisas do Robert Crumb, nome que também foi uma influência para fazer essas histórias autobiográficas, quase suicidas, em que o cara se expõe muito. E ainda tem a revista Animal, com o Caubói Rick, Edmundo, o Corvo, o jornalista escroto Marques Editor. Ela foi uma escola para a minha geração, junto com a turma da Circo e da Chiclete com Banana.

CONTINENTE Quando você percebeu que era engraçado, que queria trabalhar com o humor?
ALLAN SIEBER Desde moleque sempre quis fazer tiras. Achava o máximo o formato e até mesmo o fato de ser impresso em preto e branco no papel jornal, de ser uma coisa meio vagabunda. Meu pai tentava empurrar uns gibis de super-heróis para que eu aprendesse a desenhar, mas essa fase só durou alguns meses, porque não tive muito saco e ele desistiu de mim (risos).

CONTINENTE Você, que nunca parou para aprender a desenhar mesmo, valoriza, de certa forma, esse traço simples, “tosco”?
ALLAN SIEBER Um momento em que aprendi muito foi quando comecei a trabalhar no estúdio do Otto Guerra, o Otto Desenho. Entrei lá em 1992, e o Adão (Turrusgarai) era uma das presenças constantes – na época, ele editava a Dundum. Tinha também o trabalho de um dos caras de que eu mais gosto, o Schiavon. Eu pirei com ele, principalmente com o jeito de fazer histórias sobre os amigos escrotos. Era algo bem agressivo, quase de violência gratuita, tinha um humor muito particular... É muito difícil definir um humor, mas eu morro de rir vendo as coisas dele, as associações que faz. É um cara que, até hoje, eu paro o que estiver fazendo se chegar um trabalho novo dele. E tinha o Fábio Zimbres, que também admiro muito e que tem um traço quase esquizofrênico, sem se repetir, sempre experimentando e negando o caminho mais fácil. Sem falar no seu humor sofisticado – eu o acho um gênio. Para mim, ele e o Schiavon são os dois melhores do Brasil, disparados. Infelizmente, não existe muita coisa publicada deles, porque os editores são tapados.

CONTINENTE Como é trabalhar em ritmo mais veloz, diário, na Folha de S.Paulo?
ALLAN SIEBER Atualmente, estou publicando lá duas tiras. De segunda a quinta, publico Bifaland, a cidade maldita, uma tira que fazia em 1996/1997 para um suplemento do Estadão. Eu já publicava semanalmente na Folha, desde 2005, e fui chamado para fazer tira diária em 2011, depois da morte de Glauco – aliás, um péssimo jeito de entrar. Passar de uma tira por semana para sete é complicado, demanda um tempo a mais. Propus, então, ressuscitar Bifaland e fazer, de sexta a domingo, a Preto no Branco, uma coisa mais de comportamento, envolvendo elementos autobiográficos. Gosto de trabalhar com personagens, tinha tempo que não fazia isso.


Imagem: Angeli/Reprodução

CONTINENTE E como está sendo conciliar esse trabalho e outros, além da demanda da Toscographics?
ALLAN SIEBER Estou tocando a Tosco desde 1999. É uma empresa deficitária (risos)... Agora fizemos o Trash Hour (em exibição no Canal Brasil), meu e do Fabiano (Araújo), e estamos com o projeto de uma série de animação para TV, mas isso ainda está meio sigiloso. São vários episódios, feitos pelo MZK, um cara que eu adoro, pelo Schiavon, pelo Fábio Zimbres, pelo Arnaldo Branco, com o Capitão Presença, e por mim, com meus personagens também, tipo o Deus é pai, Ice Crime.

CONTINENTE E essas polêmicas recentes com comediantes de humor “politicamente incorreto”? Você se vê envolvido no meio delas, acompanha o que Rafinha Bastos e Danilo Gentili fazem?
ALLAN SIEBER Eu meio que desconheço esses caras, porque não tenho muito saco para stand-up comedy, não vejo TV... Sério, nunca vi CQC na vida. Vi nesses dias o talkshow do Danilo Gentili porque o (Paulo César) Pereio, sobre quem estou fazendo um filme, há alguns anos, foi o convidado. Mas estou realmente por fora. O próprio nome do que eles fazem, stand-up comedy, é meio escroto. Isso é uma coisa mais antiga que a roda! É o que Chico Anysio fazia, o que Jô Soares fazia. É um show de piadas! Costinha, Ary Toledo faziam isso. Tentaram importar o nome, reembalar. Enfim, sei das polêmicas, da piada do judeu do Gentili e da piada sobre o filho da Wanessa (Camargo) feita pelo Rafinha. Acho que o pessoal confunde truculência e um certo fascismo com politicamente incorreto. É tipo: “Estou sendo escroto e isso é ser politicamente incorreto”. Defendo o humor sem fronteiras, o humor vale-tudo, mas tem que ter graça, tem que ter pertinência. Não vale a piada grosseira pela grosseria. Acho que tenho senso crítico para saber se uma piada é pertinente e se tem uma coisa fundamental: graça. Não dá para agradar a todos, gregos e troianos, mas faço humor para as pessoas rirem.

CONTINENTE E você toca em temas delicados, como a religião...
ALLAN SIEBER Religião e racismo são duas minas, são campos minados. É muita encrenca. Religião é problema na certa. Em Bifaland, trato bastante do assunto – tem o Reverendo Bronson e Deus está na tira como um cara meio escroto –, mas não me mandaram nenhuma carta reclamando. Por incrível que pareça, as pessoas que mais me incomodaram foram os fãs do vôlei. Uma vez, fiz um cartum dizendo que não entendia o esporte, dizendo que em todo ponto eles ficam se agarrando, abraçando a bunda do outro... Botei no meu blog e as pessoas ficavam dizendo: “Você é um insensível, um idiota”. Outra reação assim foi quando mexi com o teatro infantil (risos). A primeira tira diária na Folha trazia um pai e um moleque. O pai dizia: “Você vai comer brócolis!”, e o moleque nem reagia. “Você vai para o colégio interno!”, e moleque não dizia nada. No último quadrinho, ele ameaçava levar o filho para o teatro, e o moleque gritava: “Não! Teatro infantil, não!”. Nossa, cara, recebi um bilhão de e-mails de diretores de teatro infantil, de atores. Mas, putz, eu jamais imaginaria uma mobilização dessa (risos). Então, é uma coisa meio no escuro, você não sabe o que afeta as pessoas, quando está fazendo.

CONTINENTE Sempre me deparo com você citando a frase de Jaguar, “Não existe humor a favor”. Para você, o humor é inevitavelmente algo crítico, pesado mesmo?
ALLAN SIEBER Acho que o humor tem que destruir. Ele não constrói nada, quer dizer, pode até construir, mas, no meu modo de ver, ele precisa bater em alguém. Não existe “humor a favor” – bem, até existe, mas é horroroso, como Miguel Paiva. Quem também é assim é o Ziraldo pós-Pasquim... Ele é um puta desenhista, referência gráfica internacional, mas o humor dele não me diz muita coisa, é muito ameno. Enquanto isso, o Jaguar, quanto mais velho fica, também fica mais escroto.


Imagem: Allan Sieber/Reprodução

CONTINENTE Do jeito que você se coloca, passa a impressão de que é ranzinza como seus comentários. Você é assim mesmo?
ALLAN SIEBER Sou. O que muda nas tiras é que eu sou mais engraçado, porque a realidade ninguém suportaria. Gosto disso, de “humor mal-humorado”, adoro a série do (roteirista de Seinfeld) Larry David, a Curb your enthusiasm. Putz, passo mal vendo aquilo! As pessoas mais engraçadas que conheço, engraçadas de verdade, sem ser humoristas, são as mal-humoradas. Elas têm as melhores tiradas, você realmente ri com elas. Odeio gente “engraçadinha”. Sabe a pessoa “engraçadinha”, metida a esperta? Eu gosto de quem é engraçado mesmo.

CONTINENTE Uma das coisas que você critica muito é o comportamento dos jovens.
ALLAN SIEBER Ah, detesto adolescente, cara. Realmente, não tenho muito saco, ainda mais para essa molecada de hoje com essa coisa de multitasking. Eles estão ao mesmo tempo no Twitter, conferindo o “Facefuck”, ouvindo música... Ninguém faz porra nenhuma, ninguém consegue se concentrar. Ficam com um déficit de atenção gigante. Beira à doença mesmo, é patológico.

CONTINENTE A sua relação com a internet é bem dúbia, não é? Afinal, apesar de tudo, você usa porque é preciso...
ALLAN SIEBER Eu diria que a internet, na verdade, salvou minha vida por dois motivos. Um, é o blog, um negócio que é de graça e permite a qualquer um ter seu site. Conheci o trabalho do Arnaldo (Branco), do (André) Dahmer, do (Raphael) Salimena, do Rafael Sica pela internet. Outro, é o e-mail. Para mim, ele é tudo nessa vida. Mas, das redes sociais, estou fora, porque você fica com uma vida paralela online. Já tenho uma vida de verdade para administrar, aí você fica com outra persona que precisa ser alimentada online. Não tenho saco. Comercialmente, você não tem como escapar, tem que estar lá no Facebook, mas não estou participando. Sério, isso virou um filme de zumbi, as pessoas não se dão conta. Todo mundo está o dia inteiro ali. Minha mulher quase que dorme com um tablet. Inventaram esse jogo e obrigaram as pessoas a jogar, fica todo mundo jogando compulsivamente, e ninguém se dá conta. Acho assustador.

CONTINENTE Você tem algum livro ou filme de animação planejado para sair em breve?
ALLAN SIEBER Agora, estou fazendo um piloto do Bola 8 show para a MTV. Reestruturei o estúdio – tínhamos três projetos de longas engavetados, que estamos tocando agora, botando em leis de incentivo. Tenho também que entregar o livro do João do Rio, que é uma adaptação de contos dele – fui contratado em 2007 e não terminei ainda. Por fim, também tem o manual de desenho tosco, da Conrad, que começou em 2006. Esse se chama Desenhando com o lado externo do cérebro, e nele vou ser um Mister M dos quadrinistas, vou revelar todos os truques da minha classe (risos). 

DIOGO GUEDES, jornalista e mestrando em Comunicação Social.

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