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Confronto entre a crítica e a produção contemporânea

Em 'Arte ou desastre', ensaísta e poeta Ângelo Monteiro discute em diversos ensaios rigorosos a relevância das experiências artísticas atuais

TEXTO Eduardo Cesar Maia

01 de Fevereiro de 2012

O autor critica a flexibilização do conceito de “arte”, que parece ser o único tema de interesse dos artistas contemporâneos

O autor critica a flexibilização do conceito de “arte”, que parece ser o único tema de interesse dos artistas contemporâneos

Foto Sem título/José Spaniol/Reprodução

O tipo de crítica cultural e artística realizada por Ângelo Monteiro em Arte ou desastre (Ed. Realizações, 264 págs. R$ 39), livro que reúne diversos ensaios do poeta e ensaísta alagoano, não é comum no ambiente intelectual brasileiro dos últimos anos. Trata-se de uma crítica eminentemente personalista e axiológica: uma indagação direta não somente voltada a aspectos teóricos, formais ou temáticos das obras, mas um rigoroso exame sobre a relevância (ou falta dela) das experiências artísticas atuais e, ainda, sobre a maneira como a arte contemporânea enfrenta (ou mais bem evade, segundo ele) os problemas do nosso tempo.

Obviamente, falar em “arte contemporânea”, fenômeno demasiado abrangente, supõe uma generalização grande e perigosa. Na verdade, o autor dirige sua metralhadora verbal fundamentalmente contra a chamada “arte conceitual” e suas derivadas, principalmente as chamadas “instalações”, nas artes plásticas; as “manifestações performáticas”, na literatura; e o “ruído”, na música. O tom geral do livro é de profundo pessimismo cultural, vindo de alguém que reconhece, na tradição e na história das artes, valores que, para ele, mereceriam ser preservados, mas que teriam sido abandonados no meio do caminho.

Para o autor, chegamos hoje a uma espécie de estado de anomia nas artes, a uma barbárie cultural, que tem como causa principal justamente a separação total, preconizada inclusive por muitos teóricos e artistas contemporâneos, das esferas artísticas e a dos valores estéticos e éticos. Ângelo Monteiro argumenta que a arte tem perdido, paulatinamente, seu ideal de exemplaridade, seu papel orientador na hierarquia da cultura e da vida humana em comunidade.

Na contramão dessa tendência, Monteiro começa por resgatar os sentidos dos termos gregos techne e poiesis, no intuito de enfatizar a prioridade do fundamento criativo e a busca pela excelência como centro de toda atividade verdadeiramente artística, antes do mero construtivismo conceitual. O tom do livro é invariavelmente de reproche e, novamente, percebe-se que seu alvo principal é a arte (antiarte) duchampiana, ainda que nem sempre fique clara nesses ensaios a especificidade das obras a que Monteiro faz referência. A crítica do autor é lançada contra um tipo de arte que se fundamenta num jogo renitente e incansável de autorreferência e de infinita redefinição do seu próprio significado: quer dizer, flexibilizar e expandir o conceito de “arte” parece ser o único tema que interessa a tais artistas e seus entusiastas teóricos. Mas a arte – e Ângelo Monteiro percebe perfeitamente – não nos pede somente definições, pede-nos compreensão, porque trata basicamente da dimensão qualitativa das coisas, que supera as simples abstrações teóricas. Hoje em dia, nosso uso linguístico já aceita como arte praticamente qualquer coisa, portanto já não interessa – é tema carente de importância – ficar discutindo a respeito do status ontológico de uma determinada obra, se é ou não é arte: a crítica deve buscar o relevante, e separá-lo do irrelevante, do banal.

Outro ponto fundamental que permeia os ensaios do livro se refere à crise das noções de sujeito e indivíduo na cultura contemporânea e, com isso, ao enfraquecimento dos valores humanistas tanto na filosofia como na arte. A ideia de arte como forma de “recriação” individual, como formação pessoal, como construção e aprimoramento do homem, parece já não ter espaço algum nos dias de hoje. No mesmo sentido, a concepção de “individualidade criadora” foi combatida por diversas correntes teóricas do século passado, baseadas na ideia de que o autor é um mero construto ideológico de uma sociedade burguesa decadente e que qualquer manifestação da individualidade é uma ação tirânica, seja na arte ou na crítica.

Ângelo Monteiro aponta, mais de uma vez, a esterilidade cultural que subjaz à aceitação dessa forma de pensar a arte e a filosofia.

VALOR ARTÍSTICO
O autor de Arte ou desastre, de forma erudita e arguta, basicamente defende a importância e a referência da tradição e do cânone no processo de valoração artística. Um ponto, no entanto, merece atenção: Monteiro, por vezes, parece emprestar a tais valores um caráter universal, um fundamento transcendental e, portanto, não histórico e não contingente. A tradição, porém, não é algo estático, transmitido de forma imutável de uma a outra geração, mas, ao contrário, tem uma dinâmica interna motivada por conflitos. Assim, só no horizonte das histórias de nossas tradições é que podemos compreender nossos compromissos e preferências estéticas e éticas. O valor artístico, pois, finca suas raízes através não da determinação autoritária de um cânone fixo e imutável, mas do diálogo e das polêmicas; da confrontação permeável e sensível desse cânone e de seus valores com os da cultura presente; é a mobilidade do cânone e a sua inesgotável adaptabilidade que garantem a sua aparente eternidade através das gerações, o que depende da mediação igualmente permeável e sensível dos críticos.

Os ensaios de Ângelo Monteiro, ainda quando discordamos de alguns pontos de sua argumentação, fazem jus em todo caso a um dos ideais inalienáveis da crítica: o da confrontação, da não aceitação dos valores já estabelecidos. São sugestivos, polêmicos, arriscados: cumprem sua função intelectual porque a crítica de arte não tem que buscar certezas últimas, tem que propor valores, ainda que saibamos que nunca chegaremos a um consenso universal sobre eles. E em uma época de desorientação como a nossa, o papel do intelectual como crítico ganha relevo. Toda crítica é uma espécie de confronto entre as obras realizadas e a vida presente e suas exigências: uma petição de pertinência que a vida concreta faz à arte. 

EDUARDO CESAR MAIA, jornalista, mestre em Filosofia e doutorando em Letras.

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