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Meus mortos

TEXTO José Cláudio

01 de Janeiro de 2012

'Tio Manoel'. Óleo sobre eucatex, 1975, 80 x 60 cm

'Tio Manoel'. Óleo sobre eucatex, 1975, 80 x 60 cm

Imagem Reprodução

É lasca. Começar logo o ano falando de finados. No mínimo, falta de tato. Ou de inspiração. Deixasse para falar em novembro. Daqui para lá, porém, tanta coisa pode acontecer, aparecer um assunto obrigatório, aí teria que ficar para outro novembro e aí, quando novembro chegasse, eu só lembrasse, como agora, no próprio Dia de Finados, não dando mais tempo de entregar a matéria: e isso sem falar nela, a indesejada, incluindo-me eu entre os “meus mortos” do título. Assim, antes que o assunto nos liquide, liquidemos com ele.

Nunca serei suficientemente grato ao amigo paulista, paulistano até o osso, Arnaldo Pedroso d’Horta, que deve estar enterrado no Cemitério do Araçá, na avenida do mesmo nome dele, Dr. Arnaldo, por onde eu passava quando ia para casa de Pedro Otávio Carneiro da Cunha, na Descalvado um-dois-três (123), no Sumaré, pai do amigo João Carlos Carneiro da Cunha, pintor, cuja acolhida, de Pedro, paguei com o mal, dando o mau conselho ao filho de deixar de estudar, conselho de que eu muito precisara e ninguém me dera, abreviando-lhe o sofrimento que iria torturá-lo a vida inteira bem ou malsucedido em qualquer outra profissão que não fosse a sua, a de pintor, seja ou não considerada profissão, ou vagabundagem, que a vida, seja qual for, não passa de vagabundagem, curta aliás, e sempre malsucedida porque termina na morte.

Por mim, a endocrinologista Dra. Geísa Macedo disse que eu estava bem, não precisava nem do toque, porque surgiu na conversa o urologista Marcelo Costa Lima, bela criatura, de quem ela foi aluna, cuja amizade, de Marcelo, herdei de Hermilo Borba Filho, incluindo-os, um mais agora e outro há mais tempo, entre os meus mortos, neste 2/11/11, de tempo bom, temperatura amena, em que acabo de acordar, às 5h30, terça-feira, nesta Cidade de Olinda, 301 anos depois do primeiro Grito de República, com letras maiúsculas, em todo continente americano, de Bernardo Vieira de Melo, 10/11/1710: seu túmulo deve ser em Lisboa para onde foi levado para ser enforcado ou fuzilado. Vou perguntar a Paulo Santos.

Arnaldo Pedroso d’Horta fez por mim o que não fez nem pelos filhos: conseguiu que me dessem uma bolsa para estudar na Europa. Na época, só para rico. Me diziam na cara: você não pode falar de pintura, você não conhece a Europa. Cheguei em Roma num Dia de Finados, 2/11/1957, com 25 anos. E a primeira coisa que fiz foi sair com Beatrice Abramo, irmã do gravador Lívio Abramo de quem eu fora aluno, para visitar as Fosse Ardeatine (Fossas Ardeatinas), o belo monumento onde estão sepultados 335 mortos pelos nazistas em 24/março/1944 em represália a um ataque partigiano, grupo de resistência à ocupação alemã: os alemães pegaram indistintamente militares, civis e até crianças, como o sobrinho de Beatrice, a quem fomos acender uma vela.

Meus mortos estão em vários lugares, como um meu único irmão, que nem chegou a ter nome, nascido morto, enterrado em Ipojuca; meu pai e meu avô paterno Pedro Taveira (porque antigo morador do Engenho Taveira, no Cabo), Joaquim Pedro da Silva, também em Ipojuca; minha mãe, no Recife; Carybé, na Bahia; Wellington Virgulino, Ionaldo, Delano, Raul Souza Leão, Ricardo Pontual, todos que me quiseram bem, nem que seja por uns dias mas que me ficaram para sempre, como Madame Morin, em Louvain na Bélgica (parece que em português é Louvaina) ou Chico Mendonça. Amaro Antônio, meu primo, meu cunhado Nanau, mas quanto a parentes vamos parar por aqui senão a lista não terminaria. Manoel meu tio.

Amerigo Rotelini, da Fundação Amerigo Rotelini, soldado da FEB, Força Expedicionária Brasileira, morto na guerra na Itália, provavelmente enterrado no cemitério de Pistoia, cuja herança nos permitiu e a outros estudantes brasileiros estudarem na Itália; um destes, recentemente falecido, Sady Buttelli, de Porto Alegre, que ficou, como eu, em Roma.

Em Louvain, cheguei na mesma tarde da vitória do Brasil na Copa de 58 na Suécia, um domingo. Recebeu-me um rapaz mexicano do meu tope dando-me um grande abraço: “Mostramos a esses europeus o quanto valem nossos índios”. E eu sem saber de nada. Fui saber depois. E como o assunto é finados, encerro com uns versos que escrevi justamente em Louvain: “Minha mãe, quando eu morrer/Me enterre em Louvain/No Drève des Celestins/Debaixo dos arvoredos”. Esqueci o resto. Deve estar por aí. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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