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A trágica viagem de Cabral

TEXTO Leonardo Dantas Silva

01 de Julho de 2011

Ilustração Hallina Beltrão

Numa sala de aula, diante da pergunta “Quem descobriu o Brasil?”, qualquer criança responde com precisão: “Pedro Álvares Cabral!”. Ao que a professora complementa: “No dia 22 de abril do ano de 1500”. A verdadeira história, porém, nos seus meandros de grandeza e tragédia, só os versos do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) podem melhor enunciar: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram/ Quantos filhos em vão rezaram!/ Quantas noivas ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”

Na década final do século 15, graças aos informes seguros trazidos pelo navegador Duarte Pacheco (1460-1533), D. Manuel I, o Venturoso, resolve consolidar o chamado Caminho das Índias, descoberto por Vasco da Gama (1469-1524), em 1498, iniciando a exploração das terras desconhecidas ao sul do Equador.

Para isso, vem a constituir uma grande esquadra formada por seis naus, três caravelas redondas, uma nau mercante, uma naveta de mantimentos, acrescida da nau capitânia e da sota-capitânia, comandada por Pedro Álvares de Gouveia, depois Pedro Álvares Cabral, com o falecimento do seu irmão mais velho, por carta régia de 15 de fevereiro de 1500.

Na manhã de 9 de março daquele ano, zarpou de Lisboa a armada, levando em seu bojo entre 1.200 a 1.500 homens. Na tripulação, soldados, besteiros, feitor, agentes comerciais e escrivães, além do cosmógrafo mestre João Faras, especialista em Geografia e Astronomia, do capelão frei Henrique de Coimbra, oito sacerdotes seculares, oito frades franciscanos. Levava como intérprete o cristão-novo Gaspar da Gama, também conhecido como Gaspar da Índia, um judeu polonês, capturado por Vasco da Gama, que lá vivera 30 anos e que, em Lisboa, fora convertido ao cristianismo e batizado com o nome de família do seu padrinho.

Contando com a experiência de navegadores consagrados, como Nicolau Coelho, que acompanhara Vasco da Gama em sua primeira viagem; de Bartolomeu Dias, o primeiro a contornar o Cabo da Boa Esperança (1487) – conhecido pelos mareantes como Cabo das Tormentas ou Cabo Não –, e de seu irmão, Diogo Dias, Pedro Álvares aventurou-se ao mar.

As demais naus eram comandadas por representantes da nobreza de então: Simão de Miranda Azevedo, Aires Gomes da Silva, Vasco de Ataíde, Nuno Leitão da Cunha, Pero de Ataíde, Gaspar de Lemos, Luís Pires e Simão de Pina.

Na terça-feira após a Páscoa, 21 de abril, segundo testemunho do escrivão da armada, Pero Vaz de Caminha, foram encontradas “muita quantidade d’ervas compridas a que os mareantes chamam de botelho e assim outras, a que também chamam de rabo d’asno”, confirmando assim os primeiros sinais de terra.

No dia seguinte, 22 de abril de 1500, segundo a mesma fonte, “pela manhã, topamos aves conhecidas por fura-buchos, e nestes dias, a hora das vésperas, houvemos vista de terra, primeiramente dum grande monte bem alto e redondo e de outras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã com grandes arvoredos; ao monte pôs o capitão o nome de Pascoal e à terra, Terra da Vera Cruz”. Estava assim lavrado o Auto de Achamento do Brasil, culminando com Pedro Álvares a série de incursões de navegadores anônimos.

Nas suas expedições, anteriores a 1500, procuravam esses anônimos portugueses, tendo à frente Duarte Pacheco, situar um ponto do desembarque oficial, de modo a obedecer a raia estabelecida a 7 de julho de 1494, quando da assinatura do Tratado de Tordesilhas, que reservara para a coroa portuguesa as terras existentes dentro das 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde.

EM BUSCA DA ÍNDIA
Passada uma semana, Pedro Álvares continuou sua viagem com destino à Índia, seguindo as recomendações de Vasco da Gama, navegando, no sentido sudeste, em busca do Cabo da Boa Esperança (África do Sul), denominado então pelos marinheiros de Cabo das Tormentas.

A sorte, porém, que o acompanhara até então, parece tê-lo abandonado: logo no dia 23 de maio, quando uma forte tempestade, já nas proximidades do Cabo, veio a provocar fortes baixas na esquadra. Na ocasião, naufragaram as naus de Aires Gomes da Silva, Luís Pires e Simão Dias, levando consigo mais de 300 homens, seguindo-se da caravela de Bartolomeu Dias, o mesmo que houvera descoberto o dito Cabo da Boa Esperança, com 80 homens. Somente a 16 de julho, os cinco navios restantes da esquadra se reencontraram, completamente avariados e com as suas tripulações em pânico, na ilha de Quiloa, na costa do atual Quênia.

A viagem se seguiu com o que restou da primitiva frota, atingindo Sofala (Moçambique), em julho, e Melinde (Quênia), a 2 de agosto, onde, com o apoio do xeque Omar, conseguiu os serviços de um piloto hindu que a conduziu até a Índia. Em 13 de setembro, aportaram em Calicute (Índia) a capitânia de Pedro Álvares, a sota-capitânia de Sancho Tovar, e a Anunciada, de Nuno Leitão da Cunha, além de duas outras comandadas por Nicolau Coelho e Simão de Miranda.

No final de setembro, o capitão-mor teve o esperado encontro com o Samorim de Calicute – ou Samudri-Raj, o Senhor do Mar –, quando lhe fez entrega da carta do D. Manuel I, escrita em árabe, e presenteou-o com moedas de ouro e prata, sedas e brocados, recebendo em troca autorização para instalação de uma feitoria naquele movimentado centro comercial.

Mas o pior estava por vir. Enquanto os portugueses carregavam suas naus de especiarias, enfrentando a concorrência dos comerciantes árabes, que os viam como uma ameaça aos seus negócios, a esquadra veio a ser atacada, a 16 de dezembro de 1500, por cerca de 300 árabes e hindus.

No embate, perdeu a vida o escrivão Pero Vaz de Caminha, juntamente com o feitor Aires Corrêa, seis frades franciscanos e 50 outros portugueses. Em represália, segundo relato do Piloto Anônimo, foi Calicute bombardeada durante dois dias pelos portugueses, “matando infinita gente e causando muito dano à cidade”.

Em seguida, Pedro Álvares buscou abrigo no reino de Cochim (hoje a maior cidade do estado de Kerala, na costa do Malabar), distante 200 km de Calicute, para onde se dirigiu no dia 20 de dezembro. O rajá local, rival de Calicute, permitiu a instalação de uma feitoria e o carregamento das naus de pimenta, gengibre, canela e outras especiarias.

Em 16 de janeiro de 1501, com uma cabeça de ponte instalada em Cochim, os navios que restaram da esquadra de Pedro Álvares iniciaram sua viagem de retorno a Lisboa. No seu regresso, foi encontrar em Bezeguiche, hoje Dakar, a nau desgarrada de Diogo Dias, com uma tripulação de apenas sete homens, e, numa feliz coincidência, com a expedição de Gonçalo Coelho que seguia em busca do Brasil.

Dos 13 navios, somente regressaram a Lisboa a nau Anunciada, sob o comando de Nuno Leitão da Cunha, em 23 de junho de 1501, seguindo-se a nau capitânia de Pedro Álvares, que veio aportar no Tejo, a 21 de julho de 1501, unindo pela primeira vez os quatro continentes: Europa, América, África e Ásia.

O restante dos navios e suas tripulações perderam-se no mar, bem de acordo com a descrição do poeta Fernando Pessoa: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena/ Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor/ Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ Mas nele é que espelhou o céu”. 

LEONARDO DANTAS SILVA, escritor e historiador.

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