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“Adianta oferecer inteligência?”

Curador responsável pela 29ª Bienal de São Paulo, Agnaldo Farias analisa a valorização da atividade no Brasil e critica a cobertura jornalística das artes plásticas

TEXTO Diogo Guedes

01 de Junho de 2011

Agnaldo Farias

Agnaldo Farias

Foto Divulgação

A 28ª Bienal de São Paulo, organizada por Ivo Mesquita em 2008, foi uma das mais polêmicas edições de toda a sua história. Apelidada de “Bienal do vazio”, teve todo um andar sem obras, a partir da disposição de refletir sobre a crise do sistema de bienais e da própria instituição que a organiza, a Fundação Bienal de São Paulo. Em meio às criticas sobre a edição anterior, o curador paulista Agnaldo Farias e o pernambucano Moacir dos Anjos assumiram a responsabilidade de recuperar o prestígio da exposição, em sua 29ª edição. A saída encontrada pelos dois foi fazer a mostra discutir a relação entre arte e política, ainda mais complexa e difusa nas obras contemporâneas.

Bienal é mais uma passagem do vasto currículo do curador paulista. Também professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte, Agnaldo Farias tornou-se um dos principais nomes da área no país. Nesta entrevista à Continente, feita após o lançamento do edital de artes plásticas do Programa Rumos Itaú Cultural, em São Paulo, do qual é curador convidado, ele faz um balanço da mostra internacional, comenta a supervalorização da sua atividade e acusa a imprensa de se interessar apenas pelas polêmicas – caso da cobertura da proibição de exibição da obra do argentino Roberto Jacoby em apoio à candidatura de Dilma Rousseff à presidência, da tentativa de retirar da mostra a série Inimigos, do pernambucano Gil Vicente, que traz o artista executando políticos como Lula, George W. Bush e Fernando Henrique Cardoso, e da remoção por ordem judicial do viveiro de urubus da instalação Bandeira branca, do paulista Nuno Ramos. “É a mesma coisa que você deixar de discutir o Madame Bovary para comentar o fato de o Gustave Flaubert ter sido processado”, reclama o curador.

CONTINENTE O que você acha que a Bienal de São Paulo do ano passado conseguiu captar do cenário da arte contemporânea brasileira? 
AGNALDO FARIAS Eu não sou a pessoa mais indicada para falar disso porque fui eu que a organizei. Nós fizemos aquilo que pretendíamos: uma exposição com a presença de artistas significativos, dos mais variados quadrantes do mundo, e com ênfase na questão latino-americana. Acho que a nossa intenção, recuperando sobretudo as experiências do Flávio de Carvalho, foi contribuir para a demarcação da amplitude do conceito de política, mostrando que o aspecto da invenção formal, da transgressão, é parte fundamental de um repertório político. Então, ficamos satisfeitos com o resultado. A exposição tinha muitos vídeos, muitas imagens em movimento. Isso não foi uma opção prévia, foi algo que se mostrou no momento em que começamos a fazer o levantamento, discutindo com os nossos curadores convidados. Tivemos também a constatação de que o campo das artes ditas plásticas está cada vez mais arejado, mais oxigenado e traz de tudo, inclusive experiências feitas no entrecruzamento de linguagens. O que o público viu, portanto, foram obras significativas de matrizes variadas, expandindo a noção de política, e que culminaram, no âmbito da exposição, nos terreiros, que eram não apenas pontos de encontro, mas, sim, lugares onde o público protagonizava a política – até porque ela só faz sentido na medida em que é praticada. Outro ganho, talvez até o mais importante, foi no setor educativo. A educação teve o estatuto de curadoria, com a Stela Barbieri, que trabalhou comigo e com o Moacir dos Anjos na concepção do evento como um todo. Ela elaborou um plano que terminou por atingir um feito inédito: 40 mil professores trabalhando nas suas classes, estimulados por um material que os informava acerca de 30 artistas de ponta.

CONTINENTE Você criticou a cobertura da mídia em relação à Bienal. Isso se deve ao fato de os veículos comentarem apenas as polêmicas do evento?
AGNALDO FARIAS É um problema do jornalismo, hoje. A nossa imprensa, ao invés de discutir aspectos profundos e apostar na inteligência do leitor, tem cada vez mais se apegado a assuntos epidérmicos, a questões periféricas, que estão longe dos acontecimentos. É a mesma coisa de você deixar de discutir o Madame Bovary para comentar o fato de o Gustave Flaubert ter sido processado. A abordagem do campo da cultura atualmente é a de um caderno de costumes. A grande imprensa tem se tornado cada vez mais isso. Você faz um evento, junta gente inteligente, artistas magníficos e é francamente irritante ver o que vai sobrar disso. É desanimador.


Foto: Divulgação

CONTINENTE A escolha do tema contribuiu para esse foco da imprensa nas polêmicas? Ou é algo constante nas bienais?
AGNALDO FARIAS O jornalista, movido pelo editor, vai atrás do que é escandaloso, do que é deficitário do ponto de vista deles. “Ah, prometeu um milhão e só tem 500 mil”. Não se analisa a exposição, não se discute. Até mesmo gente inteligente. O próprio Fábio Cypriano, da Folha de S.Paulo, falando da montagem menor em Belo Horizonte, disse que, agora que a exposição está pequena, dá para entender qual é a leitura da Bienal. O que ele quer dizer com isso? Que a gente deve então reduzir as exposições a mil metros quadrados, que a Bienal deve ter esse tamanho para que ele possa compreender? Do que adianta a gente oferecer inteligência? Eu sei que de certa forma adianta, mas, lamentavelmente, o jornalismo não cumpre o seu papel. Está cada vez mais superficial, como tudo mais na nossa sociedade. O que não significa que não tenha gente interessada e boa nesse meio. Eu vejo, por exemplo, jornalistas que são pressionados pelos seus editores para buscar esse texto que vende. Eles acham que o público não tem condição de ler alguma coisa que demore, algo mais analítico. Isso é pensar muito mal do leitor. Se eu pensasse assim, não faria uma Bienal.

CONTINENTE Qual a diferença entre a curadoria da Bienal e a do Rumos Itaú Cultural?
AGNALDO FARIAS É bem mais tranquilo. No caso da Bienal, havia 159 artistas simultaneamente para serem atendidos. Isso esbarra em problemas de produção, e esse universo tão vasto é cansativo, desgastante, deixa você apreensivo com o que pode dar problema. São artistas que vêm do exterior, são comunicações remotas; é muito fácil entrar em discordância, ter tido problemas de compreensão. No Rumos, eu vou ter muita gente trabalhando comigo, é mais capilar. O curador-mapeador vai chegar até o ateliê das pessoas, vai estar junto. Fora que, no Rumos, é um trabalho de outra ordem, tem a ver com fazer prospecção, conhecer jovens artistas, ver como andam as coisas e sanar também certas expectativas e lacunas de informação. O trabalho dos curadores, como está desenhado, é mais democrático e próximo; a equipe é boa e não existe muita hierarquia dentro dela.

CONTINENTE O papel do curador tem adquirido importância na arte contemporânea?
AGNALDO FARIAS Tem, já faz tempo. Aqui no Brasil, ele começou a aparecer há 20 anos. Eu acho que ele sofreu e vem sofrendo uma espécie de inflação, tem sido supervalorizado, mas o que é mais importante é o trabalho do artista. O curador deveria somente dar luz e visibilidade a esse trabalho, ajudar nesse processo, porque supostamente ele tem conhecimento, estuda. Então, ele deve assinalar, junto com o artista, ou não, o que de melhor foi produzido e moldar um alinhavo em que se constrói uma narrativa, para potencializar o trabalho, mostrá-lo dignamente. Isso não acontece quando ele quer aparecer mais que o artista, quando se pretende mais autor que o próprio artista, quando quer que as obras sejam ilustrações de suas teses, quando expõe mal. Tem havido muito ressentimento de artistas, o que é perfeitamente compreensível, porque se sentem usados pelo curador nesse processo. Mas o trabalho do curador é um trabalho importante, como é importante você fazer a pauta de uma revista ou um festival cinematográfico. Esse trabalho de seleção, essa expertise, é relevante em qualquer área. O curador está entre o artista e o público, na mediação. É um trabalho que tem a ver com formação intelectual e pedagogia, afinal, ele deve saciar uma carência do público, a de insumo estético. O desafio é manter-se atento. O que acontece, na maioria das vezes, é que a produção contemporânea tem fronteiras abertas e cada vez mais mescladas. O trabalho do Nuno Ramos, o Bandeira branca, por exemplo, tem referências na arquitetura, no samba e em outras obras de arte. Isso exige do curador uma formação muito ampla, sofisticada, para poder dar conta de um artista cuja sofisticação é oriunda de uma vasta gama de referências.


Imagem: Divulgação

CONTINENTE E em relação ao público? Como os curadores buscam aproximá-lo da arte contemporânea?
AGNALDO FARIAS Primeiro, existem vários curadores, então não se pode pensar que há apenas uma forma de fazer isso. Eu sou extremamente preocupado com esse fato, entendendo que é importante em qualquer exposição a presença de um setor educativo, formado com a preocupação de não reduzir a fala sobre um trabalho a uma explicação. Ele deve tentar abrir essa mediação sem ferir o trabalho do artista. O que seria ferir o trabalho? Tentar reduzir, explicar, dissolver a sua carga de mistério. Os trabalhos são envoltos em mistério e, até certa medida, inabarcáveis, e é por isso que eles estão em uma exposição. Então, como você cria essa mediação é o X do problema.

CONTINENTE Você falou antes da ausência de crítica nos jornais. E o meio acadêmico, ele faz esse papel? Existe hoje um espaço crítico independente?
AGNALDO FARIAS Eu estou sem esperança em relação aos jornais. De um modo geral, eles não abrem espaço para discussão. Vejo nas pessoas que militam ali um grande heroísmo, porque existe um preconceito de que o jornalismo é mais voltado ao entretenimento e aos fatos do que às elucubrações analíticas. O jornalista é uma pessoa que sabe escrever e que pretende ser compreendido, o que é, a meu ver, muito saudável. A maioria das pessoas que sai da academia, enquanto ganha em profundidade, perde em comunicabilidade, porque frequentemente a sua linguagem é cifrada, seus textos são críticos, caudatários de teses e conceitos, não circulam e não são acessíveis em uma primeira leitura. Há problemas e vantagens dos dois lados. E existe uma terceira via, que são os textos de catálogos. Eles também são problemáticos porque, embora possam conter carga reflexiva de alto nível, são afinados com o trabalho que tematizam. Eles são escritos de um ponto de partida positivo, pois ninguém faz um catálogo de uma exposição criticando o que está nela. O que não os impede de serem relevantes. No entanto, eles são textos superficiais também. Essas são as três grandes vias que nós temos hoje aqui no Brasil. Em que pesem todos seus problemas e suas qualidades, eu acho que a situação melhorou muito. Existe um número crescente de pessoas interessadas em arte contemporânea, e os jornais começaram a noticiá-la mais, ainda que focados em escândalos, fofocas. Isso não é um traço só das artes plásticas – de um modo geral, a imprensa tem essa abordagem.

CONTINENTE Como anda a produção artística contemporânea de Pernambuco?
AGNALDO FARIAS Pernambuco é extraordinário. Nos últimos 15 anos, disparou. Começou com Gil Vicente e Marcelo Silveira, e agora tem Rodrigo Braga, Carlos Mélo, Jonathas de Andrade. É uma grande quantidade de gente de ótima qualidade também no campo da música, do cinema, da literatura. Isso não vem do nada. É um lastro, um caldo, já tem esse suporte, essa tradição, esse legado. Existe uma inteligência acumulada. Nas minhas passagens pelo estado, conheci o grupo ligado ao João Câmara, ao Francisco Brennand, ao José Cláudio, ao grande Gilvan Samico e ao próprio Ariano Suassuna, um grupo histórico significativo, de qualidade. Nem todos os lugares podem ostentar nomes como esses. A entrada em cena do Mamam e da Fundaj fez aparecer Oriana Duarte, Paulo Meira, Márcio Almeida, Manoel Veiga, Renato Valle, gente boa, ativa, inquieta. É um grupo grande. Até chegar nesses jovens de agora. Isso também acontece no âmbito da curadoria e da crítica: Janaína Melo, Júlia Rebouças, Clarissa Diniz, Ana Maria Maia, que está agora no Rumos

DIOGO GUEDES, repórter da Continente Online.

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