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Ernesto Sabato: O adeus ao último dos renascentistas

Autor de 'O túnel' e 'Sobre heróis e tumbas', escritor argentino, viveu e trabalhou, por quase 100 anos, com a inexorável consciência da solidão humana

TEXTO Fernando Monteiro

01 de Junho de 2011

Ernesto Sabato

Ernesto Sabato

Foto Divulgação

Ernesto Sabato quase chega aos 100 anos. Glória da literatura argentina, o décimo dos 11 filhos varões de um casal oriundo da Calábria, ele veio ao mundo em Rojas, província de Buenos Aires, no dia 24 de junho de 1911. O lugar passou a constar do mapa literário internacional como cenário da infância do escritor e pintor da perplexidade em face das dores humanas e do inconformismo perante as injustiças que agravam o “desconforto de existir”, o tema central da sua obra.

A trajetória do artista e do homem se confunde, em Sabato, com a história – politicamente conturbada – da Argentina ainda buscando a si mesma, entre golpes e crises que parecem fazer parte de algum tango com passos de dança forçados por populistas e generais de opereta. No campo artístico, o país é pródigo de altos talentos: Borges, Torre Nilsson, Sabato. Para muitos, Sabato é um escritor mais vital do que Jorge Luis Borges, ao menos para se compreender o que los hermanos viveram desde o “justicialismo” de Perón até a corte de militares que lhes impuseram uma das mais cruéis ditaduras da América Latina.

Nesse sentido, podemos dizer que o escritor foi uma consciência sobrevivente de si própria e das circunstâncias. Mais do que nunca solitário após a morte da mulher – Matilde, falecida em 1998 –, depois de ter perdido o filho mais velho, Jorge, em acidente de carro três anos antes, Sabato viu aumentarem as sombras em torno dos seus fantasmas, na mesmíssima casa de Santos Lugares apontada como a residência de uma espécie de herói. Explica-se: Sabato foi o presidente da já legendária Comissão Nacional sobre Pessoas Desaparecidas – Conadep –, criada por decreto do presidente Raúl Alfonsín, no dia 15 de dezembro de 1983. E o “herói” da denúncia dos militares que sequestraram e mataram adultos e até crianças é também o autor de pelo menos duas obras-primas indiscutíveis: O túnel (1948) e Sobre heróis e tumbas (1961).

Seja logo dito: quem “ama” Borges, tem menos empatia com a arte do comunista antistalinista que é esse escritor bem distante das fantasias borgianas imersas no universo de bibliotecas reais e imaginárias. “Comunista”? Sim, ninguém foi mais comunista, na juventude, do que o ancião que se declarou “anarcocristão”, com a plena consciência do que lhe custa ser uma consciência alheia às ideologias de rebanho.

Homem que sempre se sentiu metafisicamente só, Sabato escreveu ficções e ensaios de acordo com essa arraigada noção de que nascemos e morremos sozinhos com o nosso destino (möira) imerso em mistério, no sentido mais antigo da velha palavra.

Quando era um promissor cientista com doutorado em Física pela Universidade de la Plata, o inquieto Sabato abandonou a ciência para se refugiar em Pantanillo, nas serras de Córdoba. Recém-casado com Matilde, “mulher forte como as mulheres fortes da Bíblia”, ele abandonava o altiplano científico – para espanto de todos os seus colegas de pesquisas – a fim de se dedicar exclusivamente à literatura.

“Literatura?” O doutor Enrique Gaviola, físico notável, foi um dos mais inconformados com a súbita decisão do seu brilhante assistente. Anos mais tarde, depois da leitura de Sobre heróis e tumbas, Gaviola reconhecerá que a ciência perdeu um talento, porém as letras ganharam um gênio, cuja estreia se assinalara já com romance de primeira grandeza: O túnel.


Depois da morte da sua mulher Matilde, em 1998, Sabato se afastou da vida pública e tornou-se cada vez mais recluso. Foto: Reprodução

Em Heteredoxia, o autor fala sobre o livro: “Enquanto eu escrevia esse romance, arrastado por sentimentos confusos e impulsos inconscientes, muitas vezes me detinha, perplexo, para avaliar o que estava saindo, tão diferente do que havia previsto. E, sobretudo, me intrigava a importância crescente que iam assumindo o ciúme e o problema da posse física. Minha ideia inicial era escrever um conto, o relato de um pintor que enlouquecia ao não conseguir comunicar-se com ninguém, nem mesmo com a mulher que parecia tê-lo entendido por intermédio de sua pintura. Ao acompanhar o personagem, porém, constatei que ele se distanciava consideravelmente desse tema metafísico para ‘descer’ a problemas quase triviais de sexo, ciúmes e crimes. (...) Mais tarde compreendi a origem do fenômeno. É que os seres de carne e osso não podem jamais representar as angústias metafísicas sob o estado de ideias puras: fazem-no sempre encarnando essas ideias, obscurecendo-as com sentimentos e paixões. Os seres carnais são essencialmente misteriosos e se movem em impulsos imprevisíveis, mesmo para o próprio escritor que serve de intermediário entre esse estranho mundo da ficção, irreal, mas verdadeiro, e o leitor, que acompanha seus dramas. As ideias metafísicas se transformam, assim, em problemas psicológicos, a solidão metafísica passa a ser o isolamento de um homem concreto numa cidade concreta, o desespero metafísico se transforma em ciúme, e a história que parecia destinada a ilustrar um problema metafísico se transforma em romance de paixão e ciúme. Castel procura apoderar-se da realidade-mulher por intermédio do sexo. Mas esse é um empenho tão vão!”...

Castel é o pintor cujo “eu” enclausurado assume a nervosa voz narrativa de O túnel, fazendo ecoar as interpolações que vão desenhando o interior do personagem e o entorno magnificamente compostos das mesmas tumultuosas impressões que dão ao livro a carnadura viva de um túnel de sangue, de uma veia aberta para misturar plasma e literatura, material algo biográfico e invenção em grau superlativo. Desde as primeiras linhas, o leitor se sente atraído para um tipo de “confissão” direta e sem truques: “Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne; suponho que o processo está na lembrança de todos e que não serão necessárias maiores explicações”...

Nesse momento em que se ensinam tantas tolices – principalmente nas “oficinas” de criação literária que começam por duvidar da eficácia do narrador na primeira pessoa –, Ernesto Sabato dá sua lição de mestre: “Adotei a narrativa na primeira pessoa em O túnel, depois de muitas tentativas, porque era a única técnica que me permitia passar a sensação da realidade externa tal como a vemos cotidianamente, a partir de um coração e de uma cabeça, a partir de uma subjetividade total...”

Autor que se examina com a lente do cientista, o romancista argentino seguiria no caminho do aprimoramento da sua arte durante os anos de elaboração do épico Sobre heróis e tumbas, narrativa construída sobre três planos que se interpenetram e logram transmitir tanto os “impasses” tipicamente sabatonianos quanto o substrato do passado de uma nação que se plasmou a partir do zero do pampa, com a ajuda – fundamental – dos emigrantes, cuja melancolia, para Sabato, estaria na raiz do tango:

“Aqui, nós não tivemos civilizações indígenas, como no Peru e no México. A Argentina foi levantada sobre o pampa, essa metáfora do nada. Olhem para Buenos Aires: ela atraiu milhões de emigrantes, em poucas décadas. A cidade passou dos 200 mil habitantes do fim do século 19 para se tornar esse monstro contemporâneo. Ninguém pode viver sem pátria, sem terra a que fixar-se e a que amar. Os que vieram para cá buscavam algo sólido a que se agarrarem, ou seja, necessitavam de uma pátria com urgência. E naquele crepúsculo da passagem do novecento, chegaram a estas praias de lama multidões de gentes corroídas pela miséria das aldeias italianas, espanholas, polacas, russas, alemães, libanesas... Elas vinham alentadas pela esperança. A maior parte encontrou outro gênero de pobreza, agravada pela solidão. Haviam deixado mães, noivas, irmãos. Como não teria que nascer, de toda essa melancolia, a dramaticidade do tango?”

CIDADÃO
Este escritor foi também um cidadão que jamais renunciou a se posicionar politicamente. Tal exercício vigilante dos deveres cívicos, ele se impôs muito cedo, desde a “descoberta” dos males sociais, quando ainda era um ginasiano. Na ideologia, Sabato encontrou o bálsamo para as dores precoces do ser consciente. Deixemos que mais uma vez fale o próprio protagonista de um tempo diferente deste atual, no qual “é difícil ser Homem” (tomando-se essa investidura também como o compromisso com o Outro):

“Na escola secundária, me vi diante de uma encruzilhada de ordem social, já não pessoal, ao tomar súbita consciência da injustiça que rege nossa sociedade. Refiro-me a um lapso de cinco anos, entre 1924 e 1929. Para mim, foi como dar entrada num recinto maravilhoso; nós nos sentíamos como eleitos, falávamos com entusiasmo durante horas e líamos folhetos que transmitiam a boa-nova; participávamos de manifestações de rua a favor de Sandino, de Sacco e Vanzetti, e em geral terminávamos correndo da polícia em nosso encalço”.

O jovem Ernesto chegou a ser secretário da Federação Juvenil Comunista, e foi preciso ir a Paris, viajando na clandestinidade, para ver ruir a sua primeira confiança na ideologia, ao tomar conhecimento dos crimes stalinistas ignorados pela orientação do partido. O passo seguinte do militante foi endossar o clamor de denúncia desses crimes que a fidelidade canina a Moscou evitava enxergar. Divulgá-los era, já, “traição” – aos olhos do segmento estudantil do PC cuja ortodoxia, de imediato, fez cobrar a Sabato o preço pago pelo exercício da liberdade de pensamento.

Mais tarde, outros lhe cobrarão da mesma maneira, na Era Perón: como professor de escola pública, será demitido por haver assinado documento de repúdio à violência policial contra estudantes dispostos a comemorar a vitória das Forças Aliadas sobre o nazifascismo. E as contradições não pararão aí. Quando cai o regime de Juan Domingo e Sabato fica sabendo que muitos peronistas (das antigas hostes inimigas) estão sendo torturados em nome do movimento “libertador” etc., o escritor assume o ônus de condenar a violência contra os ex-violentos. Será preciso dizer mais sobre as imposições da consciência a esse “homem que luta só”?

O poeta e jornalista Franco Mogni – um dos escritores dos quais Sabato jamais se apartou– lhe fez justiça, nesta apresentação de entrevista para a revista Che, nos anos de 1970:

“Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com uma camisa azul escura que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo tempo. Ernesto Sabato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos grossos, num rosto que mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E nos diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Quanto termina as frases – às quais não falta uma ponta de ironia –, tira os óculos e sorri meio de lado, acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O último dos moicanos.”

Perto dos 100 anos e da morte, esse último dos moicanos chegou a uma idade bem longeva para um quase suicida. Já havia posto o ponto final num livro de memórias intitulado Antes do fim. Em mais de uma oportunidade, o homem que lutou contra si mesmo pensou em acabar com a vida ameaçada pela dúvida, pela precariedade financeira e pela angústia que clama contra Deus – e o resto. Dessas lutas, ele saiu na verdade vitorioso, como o último dos renascentistas, no seu périplo amplo desde o terreno das ciências exatas até o território movediço das artes, como humanista, pintor de talento e escritor mundialmente reconhecido.

Nos últimos 15 anos, os pincéis substituíram a caneta na mão do autor de Notícia sobre cegos. Não apareceu mais nenhum inédito do autor de Abaddón, o Exterminador, e, desde 2005, os vizinhos não mais avistaram o viúvo que avisou não poder sobreviver à morte de sua Matilde. Seja como for, Sabato agora pertence ao mais seleto lugar da literatura: aquele que garante a imortalidade artística como luz no fundo do túnel. 

FERNANDO MONTEIRO, escritor.

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