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Exaltação a Hermila

TEXTO José Cláudio

01 de Abril de 2011

Imagem Reprodução

Que não precisa ser exaltada por ser já em si uma exaltação da natureza. Já faz mais de quinze dias que vi o filme e ainda continuo exaltado. Fiquei anotando coisinhas em qualquer pedaço de papel, como esse aqui por cima de uma recomendação de Emmanuel, do Núcleo Espírita Aristides Monteiro, “Ante o golpe da ofensa,/Não te vingues. Perdoa” etc., escrito atravessado por cima da letra azul do impresso: “arrancam a blusa e os peitos pulam em sua dupla divindade dignos dos versos de um poeta persa ou do Cântico dos Cânticos”. No verso de outro impresso: “Bendita a invenção da fotografia, bendita a invenção do cinema, bendita a invenção da cor no cinema”. Noutro: “A cara dela é serena, de quem está tranquila porque sabe que tem bom guardado”. Ainda: “Olha a cara dela, a perna no ar, vê se não é o retrato da felicidade de ser, da glória de existir”.

Eu nunca tinha visto Hermila Guedes pessoalmente e nem em filme ou televisão, apenas em fotografia de jornal, sempre muito discreta, numa entrevista ou numa ou outra notícia sem maior relevo. Natural de Cabrobó ou Ouricuri, não lembro. Assim, pude reconhecê-la na calçada do restaurante em Olinda. Eu ia saindo, cedo da noite, que eu durmo cedo, e a dona do restaurante, numa mesinha na calçada, ofereceu-se para me chamar um táxi. Fiquei esperando. Nisso, sai uma moça que por acaso estivera sentada perto de mim dentro do restaurante, costas com costas, ela um tanto caladona numa mesa grande onde todos falavam ruidosamente. O poeta Garibaldi Otávio cumprimentou-me, também ele nessa mesa grande e também meio de costas para mim. Aí, enquanto eu esperava o táxi, ela saiu para fumar. Caiu uma pecinha do sapato dela e entrou numa brecha do piso no batente da porta. Coisa sem importância. Procurei ajudar. Acho que era a ponteira do salto. Sumiu. Perguntei: “Você é Hermila?” Ela disse: “Sim”. Estava vestida com muita simplicidade, sem nenhuma pintura, uma blusa branca sem mangas tomara-que-caia arrochada no sutiã duro, não dando para adivinhar o busto, e calças jeans. Eu lera que era casada e caseira, gostando de ficar em casa com a filha de poucos meses, ou poucos anos. Mas isso serviu para identificá-la, aumentando a emoção do Baixio das bestas: “É ela!”

Era como se o incêndio do canavial, o maracatu de Nazaré da Mata, o velho sem dentes de boca para cima torcendo a cana para espremer o caldo (depois de bater o gomo com o cabo da foice, como fazia Seu Afonso, avô de Breno, lá em Ipojuca), o pessoal do maracatu vestido a caráter em cima do caminhão contra o vento, a mocinha de cara emburrada com a trouxa na cabeça, tudo ali comparecesse como circunstância terrena, brilhante, atores escolhidos, mas terrena, para a chegada de Hermila, aparição descida do céu.

A cena passa-se naquela luz exata, meia-claridade ideal para mostrar uma obra de arte, que modela delicadamente e revela melhor do que às escâncaras, momento de recato que se isola no meio da algazarra e escangalho a lhe servirem de moldura, mas sem hiato. A diferença é que, as outras cenas, sabe-se que não passam de simulação, enquanto nessa não há o que simular: o que é, é. Pare o filme, olhe a cara dela, não só o busto, veja quadro por quadro, cada um mais belo do que o outro, dessa sequência maravilhosa, o desenho, grão a grão como se executado a carvão: eu tentei algumas vezes com pincel e nanquim mas é no máximo uma referência medíocre, “qual pincel em tela fina debuxar jamais pôde ou nunca ousara”, arremedando nosso conterrâneo Maciel Monteiro, “qual se a natureza e a arte jamais soube imitar no todo ou em parte”.

Foi providencial ter visto a fita aqui em casa, solitariamente, em DVD, num fim de tarde de fevereiro 2011, aos 78 anos e meio, com a experiência estética que, independentemente de lastro cultural, a própria existência nos dá, nesse remanso, o tempo, onde a maré junta o cisco. Sempre fui, hoje mais ainda, pacato. A princípio, como menino do interior sem conhecer ninguém na cidade grande e, depois, com a sabedoria vinda com os anos. Não acreditava que nada mais me pudesse arrebatar, a um passo de ouvir as trombetas celestiais. Em cinema, tinha voltado aos filmes de caubói. Mas em vez de subir aos céus como o profeta Elias num carro de fogo, fui arrebatado de volta, reinserido no contexto do paraíso terreal, achando Jesus que ainda não esteja suficientemente pronto. Isto é, morto. Coisa que nem eu mesmo sabia.

Hermila acordou-me dessa letargia. Nesta croniqueta (faz como disse Emmanuel, Hermila, perdoa), minha carta de agradecimento, toda feita de obviedades, terminando por mais uma (“Honni soit qui mal y pense”): a beleza faz milagre. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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