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Criação: O dono da história

Fragmentação promovida pela cultura digital e debate sobre a nova Lei do Direito Autoral instigam a pergunta: e agora, o que é o autor?

TEXTO FÁBIO LUCAS
ILUSTRAÇÕES ÍNDIO SAN

01 de Janeiro de 2011

Ilustração Índio San

Para o português José Saramago, o escritor é um lugar em que o tempo escreve: a Ilíada não poderia ser concebida hoje, assim como as obras de agora não poderiam ter surgido antes. Aproveitando o raciocínio, todo trabalho autoral seria cria legítima de sua época. E o nome, dessa maneira, a principal referência cronológica dos frutos do espírito humano. Qual o papel do autor e o seu valor, no século 21? Como se encaixa num cenário de múltiplas assinaturas em sobreposição, típica da cultura tecnológica atual?

A essa altura do ponteiro da criação artística no Brasil, o governo federal e o Congresso se debruçam sobre a revisão da Lei de Direitos Autorais, tida como ultrapassada com apenas 12 anos de vigência. E o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) finalmente começou, em dezembro de 2010, a distribuir a arrecadação de R$ 1,2 milhão para cerca de oito mil músicos. O dinheiro é referente à música veiculada na internet. A distribuição inédita deve se repetir e crescer este ano. A porcentagem cobrada pelo Ecad é de 3,75% sobre o faturamento das empresas que comercializam músicas na rede mundial de computadores.

Nesse cenário de mudanças é que se insere o debate sobre o conceito de autoria. Ainda mais quando um dos traços da chamada pós-modernidade é justamente a quebra do paradigma autoral, em contraponto à tese da obra aberta, interativa, construída a várias mãos. Pós-modernidade, ou hipermodernidade – caso se prefira o argumento de Gilles Lipovetsky de que os fundamentos modernos, longe de terem sido superados, foram acentuados nas últimas décadas.

Confirmando o cenário de paradoxos coexistentes, desenhado por Lipovetsky, em livros como A sociedade pós-moralista e A sociedade da decepção, o que vemos é o duelo de duas correntes que se opõem sobre o tema, representando visões de mundo divergentes. Visões baseadas, de um lado, no imperativo do dever rígido que reprime e, de outro, na autonomia do indivíduo que quer a liberação de antigas amarras morais. Duelo que também se anuncia no debate sobre a nova Lei de Direitos Autorais.

A primeira corrente solicita o respeito aos direitos do autor e da imagem como valor absoluto, quase sem levar em conta a fruição da obra pelo público. Nesse sentido, trata-se de um movimento conservador, contrário ao uso sem regras e à mistura proporcionada pelas novas tecnologias da informação e comunicação, mistura que resulta em um mosaico cuja atração está mais na fusão do que na originalidade. Criação e consumo se fundem, mas ainda a esse respeito há dois aspectos a serem isolados. Um, a influência das práticas de colagem sobre o conceito tradicional de autoria, em grande parte carregado da ideia romântica de originalidade. Outro, tem mais a ver com o direito de uso (ou não) do que é produzido, com a limitação (ou não) da distribuição num ambiente cultural em que cada vez mais vale a regra do compartilhamento. É como se a autoria estivesse se diluindo em meio à profusão de informações e novas experimentações – que quase nunca são novas em si mesmas. Essa seria a segunda tendência, num contexto em que o autor perde relevo em detrimento do resultado de uma obra “sempre em aberto”.

O jornalista e mestre em Teoria da Literatura, Cristiano Ramos, lembra que o debate passou por diferentes ciclos. “Há cerca de um século, a discussão seguia rumo inverso: vanguardas tentavam minimizar o papel mediador da linguagem (e estetizar a própria existência) e questionavam ou mesmo violentavam a autoria.” Ontem e hoje, polêmicas semelhantes. “Especulações sobre o futuro da arte, do livro, anúncios de profetas-coveiros. Decerto, algo nesse universo de informações há de perder sua autoria. Mas, também não existem casos de grandes obras cujos autores mal conhecemos? Na ‘Era do Ctrl C, Ctrl V’, do mundo em rede, quantos livros nós diríamos que têm autoria duvidosa?”, questiona Ramos.

Para o músico Silvério Pessoa, o mercado da música – e, poderíamos estender, toda atividade artística – precisa lidar com a emergência de novos paradigmas. “Isso envolve olhares diferenciados sobre a questão da autoria, da propriedade privada, do que se cria e se coloca no mundo para ser consumido.” Silvério reconhece que o ato de criar exige subjetividade, e as canções, ritmos e linhas melódicas da música não constituem exceção. No entanto, “a contemporaneidade coloca em xeque o que é propriedade no momento em que os samplers, os DJs, as montagens, os remixes, decalcam partes de obras, que, ressignificadas em beats, em levadas, passam a ser criação sobre a criação. Essa é a tendência, e é sem volta”, diz o músico. Para ele, novas relações devem ser criadas, principalmente envolvendo o artista, o que se cria, e o que se pensa sobre propriedade. “O compartilhamento do que é criado faz da obra de arte um elemento socializante, não tratado como mais-valia.”

ARTE É EMPRÉSTIMO
O filósofo da Universidade de Campinas (Unicamp), Roberto Romano, possui visão semelhante. “Devemos ter em mente que a cultura não é propriedade desse ou daquele indivíduo, grupo, classe ou povo. André Leroi-Gourhan, etnólogo brilhante do século 20, mostra que toda e qualquer mudança tecnológica, artística, científica, se faz por meio de dois processos aparentemente contraditórios, mas complementares. Cada ato e cada artefato exige, para sua finalização, o empréstimo e a invenção. Só é capaz de inventar quem é capaz de emprestar, e vice-versa.”

Onde mora a originalidade, então? Certamente fora da aura de ineditismo que acompanha o imaginário sobre o gênio criativo.

“A noção de originalidade, sobretudo quando absolutizada pelo Romantismo, trouxe graves mutilações para a compreensão das ordens culturais”, avalia Roberto Romano. “Não por acaso, pensadores apegados ao coletivo, em detrimento do individual (Hegel, entre outros), indicavam no Romantismo uma sede tão grande de originalidade, que, finalmente, o trabalho artístico ficava melancolicamente inacabado.” O também filósofo Pablo Capistrano, do Rio Grande do Norte, tampouco sacraliza a ideia de autoria. “Essa é uma noção histórica, como todas as noções que se constroem nas sociedades humanas, e por isso tem uma determinação temporal. Na antiguidade, não fazia sentido pensar em autoria”, lembra Capistrano, citando como exemplo o caso de Aristóteles, cujos textos foram editados e reeditados por alunos que modificavam os manuscritos. “É compreensível, porque o nome Aristóteles fazia referência mais a uma escola de pensamento do que a um autor.”

A tradição das escolas filosóficas foi resgatada, ainda que sob diferentes princípios, pela indústria editorial contemporânea. Escritores cujos nomes se transformaram em marcas famosas continuam a ter livros assinados, mesmo depois de mortos. É o caso do best-seller Sidney Sheldon. Agora, quem produz as histórias que são vendidas com seu nome na capa é a inglesa Tilly Bagshawe. Outro campeão de vendas que tem a obra continuada é Harold Robbins, cujo “herdeiro autoral” chama-se Junius Podrug. De acordo com Pablo Capistrano, vivemos numa época de “dissolução da visão romântica de gênio, da ideia moderna de ‘Eu’, e aí a autoria e o domínio do autor (ou da indústria) sobre sua obra vão para o ralo dos conceitos históricos”.

A dissolução tem componente tecnológico perceptível. Para Capistrano, autor de Simples filosofia, não há como imaginar alguém que possa, sozinho, superar os impasses que as novas tecnologias impõem ao escoamento do seu trabalho. O domínio sobre a própria obra está cada vez mais difícil. “Eu mesmo passei por um processo de redimensionamento de minhas expectativas em relação à minha produção literária, porque sou um cara do século passado, que começou escrevendo numa Remington, mas que já não tenho controle sobre meus textos desde que entrei na internet.”

O integrante da Bande Ciné, Filipe Barros, reforça esse aspecto dizendo que o grande nó da autoria, hoje, está relacionado ao compartilhamento e acesso a conteúdos nas mais diferentes mídias e suportes. “O que antes acontecia de maneira mais lenta (gravar uma fita, copiar um DVD, esperar horas para baixar) agora acontece no tempo de um clique. Basta clicar no download ou compartilhar em uma rede social e, pronto, qualquer conteúdo artístico já foi enviado para centenas de pessoas simultaneamente.” Para o guitarrista e vocalista da banda, cujo trabalho faz a releitura da música francesa, a cultura de compartilhamento atual é incontrolável. “Essa cultura também leva consigo outras ideias, a de colaboração e a de criação derivada, ou seja, de remixar, criar novas versões. Nenhuma empresa que administra sites de postagem de conteúdos teria condições de fiscalizar todo conteúdo enviado e compartilhado nos seus servidores.”

Para o público, é o melhor dos mundos. Mas, e para os artistas? Segundo Filipe, a tendência é que o artista cada vez mais possa ter o controle de seus direitos autorais, longe de intermediários, e se responsabilize pela produção, divulgação e distribuição das obras. “Pessoalmente, acredito no modelo em que o público escolhe o grau de envolvimento com o artista. Se ele quer ir ao show e baixar o disco, ótimo. Se quiser comprar vinil, camisa e qualquer coisa relacionada à gente, maravilha também. Essas pessoas repassam nossas informações, fazem vídeos, fotos, escrevem sobre a gente. Isso tudo só faz com que o nosso som chegue mais longe do que poderíamos esperar. Fico muito feliz se alguém posta uma frase, no Twitter, de uma música da Bande Ciné ou produz algum conteúdo com nossas músicas.”

Um dos mais claros fenômenos da facilidade atual de empréstimo e reinvenção vem do universo musical. São os mashups, quando duas músicas são recortadas e unidas para dar origem a uma terceira. É o que faz o DJ Faroff – como ficou conhecido mundialmente o economista Leonardo Bursztyn, com doutorado em Harvard e professor universitário da UCLA, na Califórnia. Suas versões trazem os vocais de uma composição e os instrumentais de outra. Além de juntar músicas, ele costuma colar videoclipes. Alguns foram retirados do You Tube pelas gravadoras. Mas Leonardo nem se abala. “Ao se fazer mashup de um artista, você está na verdade divulgando-o – muitas vezes para um público novo. Hoje em dia, é impossível evitar que terceiros se apropriem e reciclem sua música – e a indústria vai ter que se adaptar a isso. Estamos em uma era onde tudo é reaproveitável e misturável. E acessível. Isso é ótimo”, declarou o DJ, em entrevista ao jornal O Globo, no último novembro.

Nesse mesmo mês, foi realizado no Paraná o 4º Congresso Internacional de Direito Eletrônico, no qual foi mencionada a importância da reformulação na lei de direito autoral brasileira. Ao fim do encontro, foi divulgada a Carta de Curitiba, com sugestões sobre o monitoramento eletrônico de presos, o ensino jurídico, a certificação digital e os direitos autorais. Em seu trecho final, o documento aponta para a descriminalização da pirataria: “Os direitos autorais, tradicionalmente concebidos como um monopólio das editoras e gravadoras, precisam ser pensados hoje sob a perspectiva prioritária de proteção do autor, sem, no entanto, dificultar o acesso das obras à significativa parcela da população que não pode pagar por elas”.

Segue a polêmica em torno do assunto. Alguns meses atrás, um tribunal de Nova York ordenou a retirada do ar do Limewire, site de troca gratuita de conteúdos, que funcionava desde o ano 2000. O Limewire utilizava a tecnologia P2P – ou peer to peer –, que possibilita aos usuários o download e compartilhamento de arquivos em rede. A decisão do tribunal nova-iorquino foi fundamentada na violação dos direitos autorais do material compartilhado. Batalha judiciária semelhante tirou do ar o pioneiro Napster, em 2001, e retornou em 2004 realizando downloads legais e pagos.

RESPEITO AOS CRIADORES
No ano passado, o mundo literalmente parou para assistir ao drama de 33 mineiros soterrados no Chile. Todos foram resgatados com vida após 69 dias, numa operação que contou com a ajuda de uma cápsula da Nasa e maciça cobertura da mídia. A expectativa do público foi disparada por uma frase: “Estamos bem, em um refúgio, os 33”, escreveu o mineiro José Ojeda, em um bilhete que chegou à superfície por meio de uma sonda, 17 dias depois do desastre. O resgate aconteceu no dia 14 de outubro. Uma semana mais tarde, aconselhado pelo escritor Pablo Huneeus, Ojeda registrou a frase e se tornou o seu proprietário intelectual, para evitar que outras pessoas lucrem com ela.

Terá sido um exagero? Na discussão sobre o direito autoral também se insere o direito de imagem, em que as distorções se evidenciam. A divulgação de uma foto, que continha a imagem de Manuel Bandeira sem autorização da família, foi suficiente para que os herdeiros solicitassem a retirada de um livro – que nem tratava do poeta – do mercado.

Em caso recente, um documentário sobre o compositor Walter Alfaiate, produzido quando ele estava vivo, com seu consentimento e participação, foi proibido de ser exibido até que a sua herdeira entre num acordo com os produtores. Para o poeta e cronista Affonso Romano de Sant’Anna, casos como esses não podem interferir na essência da discussão. “Sou artista, exijo respeito pelos direitos autorais do que produzo. Posso ou não conceder a alguém o direito de utilização, mas isso é prerrogativa minha. Por causa de meia dúzia de herdeiros neuróticos, que devem ser tratados à parte, não se pode punir todos os criadores”, afirma, em referência aos novos proprietários de obras de artistas falecidos que dificultam a sua divulgação.

Affonso Romano condena o que chama de face perversa da contemporaneidade, que estaria “deixando o sujeito atônito. Primeiro, dizendo que ele não existe. Segundo, que sendo ele um ‘objeto’ entre outros, é, sobretudo, mercadoria. Há também um conceito de que ‘todo mundo é artista’”. Para Affonso, é falsa a democratização que prega o acesso impune e livre às obras. De fato, quando tudo se assina por todos, perde-se talvez o que Julio Cortázar definiu como a felicidade da autoria: “Sentir que em torno da minha obra há uma grande quantidade de leitores, sobretudo jovens, para quem meus livros significam algo, são companheiros de estrada, me faz muito feliz”.

O cineasta Eduardo Coutinho declarou em entrevista sobre seu último filme, Um dia na vida, que seu trabalho não tem nada de criativo. “O princípio é o da pilhagem. Tudo a certa medida é plágio, cópia, referência. A figura do artista original é uma farsa romântica”, falou. O cineasta pernambucano Leo Falcão lança um olhar cauteloso sobre o problema. “Se, por um lado, não consigo entender a autoria como um bem material, dotado de um sentido de posse – de que não sou partidário –, por outro, não acho que se trata de uma pura e simples articulação de linguagem, desprovida de caráter subjetivo. Acho que ser autor é assumir um discurso, semântica e estilisticamente, especialmente diante de tanta impessoalidade na cultura.”

Filipe Barros, da Bande Ciné, afirma que a ressignificação – mencionada por Silvério Pessoa – tem se acentuado graças às facilidades tecnológicas. “Os programas estão aí, basta um pouco de tempo e criatividade. Mas é importante creditar sempre, dizer quem foi o autor da história e, se for usar comercialmente, pedir o direito de utilizar aquele conteúdo ao criador.” Em complemento ao que falou Leo Falcão, Filipe diz que a ideia de autor não morreu. “Em algum momento, alguém criou algo (seja isso possível de ser chamado de ‘novo’ ou não) e registrou em algum suporte. O autor está lá, a criação também. Se a obra usa samples, referências, aí vai depender da estética de cada um, mas existe uma singularidade naquela inscrição.”

DECISÃO AUTORAL
A singularidade do registro é o que se persegue na relação entre o nome e a obra. Para ordenar a selva de usos e abusos na internet, por exemplo, o que se tem disseminado é o conceito creative commons, em que o criador decide o que está liberado ou não. E a reprodução pode ser feita com a devida referência da autoria. “O importante é o artista se informar, conhecer os modelos de licenciamento e escolher o melhor para o seu trabalho”, pondera Filipe Barros. Mas o creative commons é criticado pelo presidente da Associação Brasileira de Direito Autoral (ABDA), José Carlos Costa Netto. Para ele, que também é compositor letrista, de músicas como Verde, interpretada por Leila Pinheiro, “o discurso liberatório dos teóricos desse sistema cai por terra com a exigência de que o upload da obra pelo autor seja precedido de cessão de direitos autorais em caráter definitivo: a situação é muito mais de abandono (pelo autor em relação à sua obra) do que da democratização de uso cooperado, alardeada pelos seus defensores”, declarou, em entrevista para o site do escritório de advocacia e consultoria em propriedade intelectual de Rodrigo Moraes, da Bahia.

O que a autoria pressupõe, além do reconhecimento da subjetividade, é a difusão da visão de mundo que ela compreende – do tempo em que a obra se inscreve, ou do tempo em que a obra escreve, para recordar Saramago. “É preciso que nos perguntemos: os artistas que têm obras sendo mais compartilhadas possuem menores rendimentos provenientes de seu trabalho? Creio que não. Para esses, qualquer perda é acompanhada também de um enorme público pagante. Quando sua produção deixar de ser compartilhada, aí, sim, deverão se preocupar, e muito”, analisa o jornalista Cristiano Ramos.

Afinal de contas, a obra é o elemento essencial, embora a autoria mereça respeito. O autor não é o que se expõe, o que se lê ou se escuta, para o deleite dos sentidos e o vagar da imaginação. O que se aprecia – a obra – antecede o nome, a despeito do prestígio conquistado pelo autor. 

FÁBIO LUCAS, jornalista, mestre em Filosofia e editorialista do Jornal do Commercio.
ÍNDIO SAN, ilustrador.

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