Cobertura

No tempo das palavras friamente calculadas

Diante do momento no qual estamos vivendo, da ausência de diálogo e escuta, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MIT 2018) no convida a entender o papel da fala através da arte

TEXTO PEDRO VILELA, DE SÃO PAULO

05 de Março de 2018

Com jeito peculiar de ser, a escritora e atriz Denise Stoklos foi a mestre de cerimônias da abertura da MITsp 2018

Com jeito peculiar de ser, a escritora e atriz Denise Stoklos foi a mestre de cerimônias da abertura da MITsp 2018

Foto Guto Muniz/Divulgação

No princípio era o verbo”. Estas são as primeiras palavras do evangelho de João.

Gostaria de começar este texto citando algo relacionado à Gênesis, algo sobre a Torre de Babel. Mas tenho a sensação de que acabaria remetendo a um lugar-comum.

Revisito o catálogo da MITsp – 5ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, e logo confirmo. O artigo dedicado à Suíte nº 2, espetáculo do francês Joris Lacoste, responsável por abrir a programação do evento no dia 1º de março, traz em seu título A babel em cena…

Revisito as palavras. Sobre o que desejo falar? A quem desejo comunicar? Voltemos ao princípio. Iniciemos com a solenidade de abertura.

Polida, objetiva.

Como mestre de cerimônias, a escritora e atriz Denise Stoklos carrega toda “sua forma” de “enunciar”. “Faaaííííscaaa”. Palavra entrecortada, gesto ajustado à fala. Dos seus quase 50 anos de ofício, Denise construiu uma forma quase única de prosódia.

Não houve protestos. Não houve fala oficial dos governos municipal, estadual e federal. Se no ano anterior as vaias cobriram qualquer tentativa de comunicação protocolar, neste a escolha foi pela ausência. Tempo de baixa aprovação no Ibope, tempo de eleição, tempo em que palavras são friamente calculadas.

Lacoste, então, nos oferece sua Suíte. Uma babel demarcada por 15 línguas, extraídas de um projeto macro intitulado Encyclopédie de la Parole (Enciclopédia da Fala), no qual o francês tem se debruçado nos últimos anos. A partir de gravações de depoimentos e situações reais, o diretor busca orquestrar discursos que produziram impactos no mundo, cada qual ao seu modo. Entenda-se, nesse caso, as possibilidades de impacto sobre o campo privado e público. Uma conversa de família, uma ligação de telemarketing ou o discurso de George Bush ao invadir o Iraque, tudo estará lá.


Espetáculo Suíte. Foto: Guto Muniz/Divulgação

Uma Suíte (termo de origem francesa que significa série ou sucessão) designa um tipo de composição musical que consiste numa sucessão de peças ou de andamentos instrumentais, caracterizados pelo seu carácter diferente, mas escritos na mesma tonalidade. No Pensamento em Processo, ciclo de conversa com os artistas participantes da MITsp, Lacoste afirmou ser uma das motivações para o trabalho a existência de uma pobreza da fala em cena.

Não se trata de uma obra arrebatadora, como alguns espetáculos pautados para abertura do evento em anos anteriores. A formalidade imposta pelo espetáculo francês, que por vezes remete a uma obra radiofônica, gera certo distanciamento do público. Mas, sem dúvidas, um aviso nos é dado: a ausência da fala poderá nos sucumbir.

Só agora percebo que remeti a Babel nesta tentativa de composição. Retorno à sensação de que todas as palavras já foram ditas em algum lugar do mundo...

DIAS SEGUINTES
No segundo dia da mostra, me dirijo ao Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Artistas de diferentes nacionalidades realizarão ali seu Pensamento em Processo e convidarão o público para a ação AudioReflex. Reunindo artistas de diferentes linguagens, atuantes no Brasil (José Fernando de Azevedo, Alejando Ahmed e Rita Natálio) e na Alemanha (Ariel Efraim Ashbel, Suli Kurban e Claudia Bosse), a diretora Sigrid Garei constrói audioturs que possibilitem os espectadores percorrerem trajetos dentro do museu, ouvindo narrativas ligadas às questões da migração.

Novamente a fala assume papel fundamental. Como presentificar, através de um elemento fixo (um áudio pré-gravado), narrativas? Como tornar vivo um museu, esta “arma ideológica, arma importante de conhecimento”, de acordo com a definição da artista Claudia Bosse?

Se no passado a migração esteve ligada à fuga de países em guerras, as mazelas parecem pouco se renovar. A Alemanha procura, com urgência, uma maneira de lidar com a presença de sírios e albaneses, enquanto que o Brasil dialoga (?) com os africanos. Fluxo vivo, intenso, dinâmico e bastante contrastante com museus.

Os percursos construídos no Brasil se intitulam Planet oh the shapes, de Ariel Efraim, Witnessing of the tress, de Claudia Bosse, e Não existem fronteiras nas bananeiras, de Rita Natálio. O vazio, a ausência estará lá. O espectador, seu fone de ouvido e a fala.

“Acabaremos um dia mudos de tanto comunicar; nos tornaremos enfim iguais aos animais, pois os animais nunca falaram, mas sempre comunicaram muito, muito bem”, afirma o escritor francês Valère Novarina. É também de Novarina o primeiro texto que escuto lido em plena Avenida Paulista fechada para a população em dias de domingo. O coreógrafo do Grupo Cena 11 (SC), Alejandro Ahmed, está sentando, livro na mão e microfone na outra, nos ofertando a “palavra”.


Leitura aberta na Av. Paulista no último domingo (4/3).
Foto: Guto Muniz/Divulgação

Você tem um minuto para ouvir a palavra? é uma ação proposta pelo Festival Panorama, sediado no Rio de Janeiro, e adotado pela MITsp. Nela, durante um intervalo de tempo (em São Paulo, 5h30), um microfone estará aberto para quem desejar realizar a leitura de algo que julgue interessante. Para esta edição da mostra, o tema pré-definido para fala estão ligados a liberdade de expressão, arte e política.

Minutos antes, a caminho desta maratona de leituras públicas, sou interpelado por um cidadão intervencionista que me dedica um panfleto solicitando a volta da ditadura militar em nosso país. Minha fala é suprimida. Algo angustiante me invade, ofertando apenas um sorriso de canto de rosto. Algo suficiente para ouvir que “os comunistas estão voltando”. Algo tão 1964. Realmente, todas as palavras já foram ditas.

O ato de leitura pública carrega consigo uma potência revigorante. Neste país que se acostumou a perseguir artistas e intelectuais, onde escolas são sucateadas. A palavra é ofertada sem mediação de publicações tendenciosas ou redes de televisão falaciosas.

Não nos furtemos de pensar que todos esses discursos da mostra carregam consigo também um lugar ideológico. O ciclo parece se completar. Em tempos de polarização, da ausência de diálogo e escuta, a MITsp no convida a tudo isso, sem deixar de demarcar uma posição.

A arte mais uma vez salta à frente como questionadora do tempo que se insere. Que falas possam ser proferidas e palavras, repetidas inúmeras vezes, pois nesta liberdade reside o encantamento da democracia.

PEDRO VILELA é diretor, curador, ator e um dos idealizadores da Trema! Plataforma de Teatro.

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