Cobertura

Subir ao palco e resistir

Apesar do caso de censura à atriz trans Renata Carvalho, Festival de Inverno de Garanhuns dá seu recado com uma programação que primou pela diversidade e livre expressão

TEXTO SAMANTA LIRA, DE GARANHUNS*

30 de Julho de 2018

Juventude negra e LGBT subiu ao Palco Pop para

Juventude negra e LGBT subiu ao Palco Pop para "tombar" junto à cantora Karol Conka

Foto Jorge Farias/Secult-Fundarpe

Após 10 dias com direito a uma multiplicidade de linguagens artísticas, empenhadas em dar visibilidade à livre expressão, Garanhuns se despede da 28ª edição deste que se configura como um dos maiores festivais culturais do Brasil. Numa curadoria que se equilibrou entre a novidade, o tradicional e o que tem grande apelo de público, a programação prevista buscou seguir, na prática, o tema Um viva à liberdade!, mote deste ano. Se inicialmente o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) pretendia estender o entendimento de liberdade às noções – além de expressão artística – de política e pensamento, de certo modo, foi escorregadio quando nos lembramos do caso de censura à atriz trans Renata Carvalho.

Com todos os poréns, diversidade foi uma palavra-chave evidente. Desde os que prestigiaram o evento, vindos de todos os cantos do país, às atrações e temáticas da programação. De uma forma geral, o público respondeu positivamente à realização deste ano, com exceção dos mais conservadores que apoiaram o veto à ida de Renata à Cidade das Flores e se incomodaram com performances como a do cantor Johnny Hooker. Do outro lado, quem estava a favor da liberdade, não economizou nas críticas direcionadas à censura.

Margarida Tenório, psicóloga da região, desabafou: “Moro em Garanhuns desde pequena e frequentar este evento é um ritual para mim. Considero uma oportunidade incrível para a população da cidade poder prestigiar grandes nomes da música nacional, além de ter contato com outras áreas culturais. Mas é muito triste perceber que um festival tão grande, que já é tradição, inclusive, tem que ceder a pensamentos tão retrógrados. Não era para ser um viva à liberdade?”.

Os recifenses, público assíduo do FIG, também falaram à Continente: “Sempre que posso, venho prestigiar o festival, e achei a edição deste ano uma das melhores, em relação a tudo. Às atrações, à organização e às pessoas que eu tive a oportunidade de conhecer. Sobre o tema da liberdade, acredito que foi bem-executado, sim. Porque é aquilo que dizem, né? O meu direito acaba quando o seu começa. Por mais que a atriz tenha o direito de se expressar, as pessoas precisam entender que aquilo pode, de algum modo, ferir a religião de alguém. E a liberdade foi expressada de muitas outras formas aqui”, defendeu a estudante Marcela Luna.

Alinhado aos dias anteriores, o encerramento no último sábado (28/7) retomou o debate da negritude e de pautas LGBTs, encontrando o ápice no show da cantora e compositora Karol Conka, um dos mais aguardados do FIG 2018. Diretamente de Curitiba para o Palco Pop do festival, com sua popularidade mobilizadora de um público que parecia não caber no local, a artista mandou o recado através de músicas como Você não vai e Lista vip. Tinha potencial para ser atração do palco principal, o Dominguinhos. Um grande fluxo de pessoas se espremeu pelos estreitos portões de acesso para ver Karol rodopiar incansavelmente, expressando uma plenitude inquestionável.


Karol Conka e o público do Palco Pop no FIG 2018. Foto: Jorge Farias/Secult-Fundarpe

Na apresentação, a artista fez referência ao clássico filme Mudança de hábito (1992), incitando a plateia a “brincar de coro” na repetição do conhecido “Lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá”, numa criativa forma de chamar uma de suas músicas mais polêmicas, a Lalá, que trata da liberdade sexual feminina. A representatividade não ficou de fora. Testemunhamos uma majoritária presença de jovens negros e gays subirem ao palco para “tombar” junto a ela. Ao afirmar que “não dá para tombar nesse show sem essas pessoas maravilhosas”, a artista levantou a bandeira LGBT, literalmente.

O destaque da noite também ficou para a nova geração de músicos da cena pernambucana, no Palco Mestre Dominguinhos, que, aliás, bateu recorde de público em relação aos dias anteriores: 35 mil pessoas. “Esse é apenas um dos vários recortes da música que se faz hoje em Pernambuco. São vários. O mais importante é dizer: existimos”, fez questão de afirmar o produtor e compositor Juliano Holanda, também responsável pela direção do espetáculo que integra nomes como Aninha Martins, Flaira Ferro, Isaar, Isadora Melo, Martins, Amaro Freitas, Almério e Romero Ferro. Um entrosamento contagiante marcou a apresentação do grupo. Inesquecível também foi a performance de Flaira Ferro, que demonstrou sua habilidade na dança, incorporando o tema instrumental de Amaro Freitas. Ao final, os artistas levantaram cartazes que se complementavam na frase: “Lula livre. Marielle vive. Amor xs trans”, no que relembrou o lamentável episódio, do dia anterior, de censura à peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, ainda repercutindo fortemente naquela noite. O rock da banda Titãs deu fechamento ao festival. Renovados, a desenvoltura no palco demonstrou que o grupo continua fazendo jus ao sucesso da longa carreira de 37 anos.


Show da Nova cena pernambucana. Foto: Felipe Souto Maior/Secult-Fundarpe

Para o secretário de Cultura de Pernambuco, Marcelino Granja, o evento refletiu a diversidade da cultura e da essência do brasileiro, consagrando-se como “um espaço de luta pela liberdade e pela expressão das mais diversas visões de mundo que conviveram nas ruas, praças, parques e ambientes públicos e privados em paz, alegria e segurança". Seria essa a marca que fica.

Ao menos, podemos levar muitas contribuições deste FIG. Se por um lado fomos agraciados com um repertório já conhecido e apresentados a muitas outras possibilidades, por outro, vivenciamos a crise política e de valores que vem se tonando cada vez mais evidente no país. Está enraizada, mas uma coisa é certa: a luta não para. Teve censura, mas também teve resistência. O maior viva à liberdade que podemos dar, então, é continuar lutando, resistindo, de preferência junto aos artistas.

SAMANTA LIRA é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.

*A repórter viajou a Garanhuns a convite do festival, realizado pelo Governo do Estado de Pernambuco.

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