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O Brasil (ou o Chile) de 2018 pelos olhos do cinema

Em sua 28ª edição, que prossegue até o dia 11, em Fortaleza, festival ibero-americano exibe filmes que radiografam questões latentes, de memória à atualidade, na América Latina

TEXTO LUCIANA VERAS, DE FORTALEZA*

06 de Agosto de 2018

Cena do filme paraibano 'Sol Alegria'

Cena do filme paraibano 'Sol Alegria'

Foto Divulgação

Em sua 28edição, o Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema vem se esmerando, desde o começo da sua jornada, no sábado (4/8), para fazer jus ao formato que adotou em 2006, quando abandonou a exclusividade da produção nacional para abarcar outras cinematografias da América Latina. Ou seja, operar como uma janela para o que se tem produzido nos idiomas que abraçam a ideia de um continente hermano – a flor do Lácio e o espanhol, ambos provenientes dos colonizadores europeus –, mas sem perder a perspectiva de funcionar como uma vitrine de curtas-metragens.

Têm disso assim, portanto, as noites no Cine São Luiz, inaugurado em 1958 e atualmente em melhor estado de conservação do que seu primo-irmão homônimo da Rua da Aurora, no Recife, seis anos mais velho: com filmes que ora puxam o olhar para as novidades no circuito dos festivais, como O barco (2018), o mais recente longa-metragem do realizador cearense Petrus Cariry, ora nos levam a mirar a história recente da América do Sul, como o chileno Cabros de mierda (2017), de Gonzalo Justiniano – os dois estão na mostra competitiva, ao lado de outros seis filmes.

E, como um evento cinematográfico que leva a sério a busca por reciclagem, nos três dias iniciais, o Cine Ceará ainda propiciou uma experiência única com a sessão, promovida em parceria com a Associação Cearense de Críticos de Cinema, de Sol Alegria (2018), do paraibano Tavinho Teixeira. Dá quase para traçar um diagrama do que é o Brasil de 2018 por intermédio dessas três obras ficcionais, de estilos, abordagens e execuções completamente distintas, mas que se aproximam a partir do enlace promovido pelo festival.

Como um triângulo escaleno, no qual todos os vértices apresentam medidas diferentes, o conjunto ofertado pelos três filmes espelham temas que tenderiam ao desperdício se discutidos nas efêmeras rodas da contemporaneidade, mas que ganham amplidão e ressonância quando tragados pelo cinema, esse espelho dos doces e agrestes mistérios da vida. O barco, por exemplo, tem a assinatura de Petrus Cariry, uma cria do festival (foi aqui, por exemplo, onde estreou O grão, seu primeiro longa, em 2007, e onde seu pai, Rosemberg Cariry, impulsionou vários dos seus filmes), e uma história inspirada num conto do escritor cearense Carlos Emílio Gomes.


O barco, de Petrus Cariry. Foto: Divulgação

No filme, em uma comunidade à beira-mar, Esmerina (Veronica Cavalcanti) cuida dos 26 filhos, cada um denominado por uma letra do alfabeto, enquanto seu marido Pedro (Nanego Lira), um pescador, opta por silenciar após uma perda da qual pouco se sabe. Quando A (Rômulo Braga), o primogênito, encanta-se após a chegada de uma misteriosa náufraga (Samya de Lavor), instaura-se um abalo sísmico na reclusão. O cenário é de uma natureza que o diretor define como “opressora”: as falésias da Praia das Fontes, a 80 km de Fortaleza. O tempo da narrativa não trafega pela vida do realismo – “é uma fábula”, sintetizou Petrus.

Então, onde está o ponto de correlação entre O barco e o que se vive hoje no Brasil? “Como realizador, sou totalmente aberto a possibilidades durante as filmagens, sabe? Invento cenas na hora, acrescento algo ao roteiro, mexo com os atores. O que aconteceu é que quando a gente estava filmando, o processo de impeachment de Dilma Rousseff estava tramitando. Ou seja, era a gente filmando na praia, sob aquele sol, e aquela votação na Câmara Federal. Adaptei o roteiro por causa da realidade”, contou Petrus. A personagem de Ana, a mulher que vem do mar, conta uma história, tal qual Sherazade em As mil e uma noites, e nesse enredo de abuso, violência e usurpação, percebem-se ecos do que estava acossando o país. “Acho que um filme não precisa ser panfletário para ser político. Toda a angústia do impeachment da Dilma entrou em O barco. Acho que ficou uma obra atemporal”, pontuou o diretor, que assumiu, ainda, a fotografia e a montagem.

Sol Alegria também poderia ser descrito assim, sem amarras no tempo, como uma alegoria repleta de desbunde, iconoclastia e paródia. “Mas, na verdade, o que era para ser uma distopia, que era nisso em que estávamos pensando quando começamos a fazer, virou realidade. Escrevemos quando a Dilma ganhou em 2014. Quando o filme sai, estamos falando do país de agora”, observou a codiretora e atriz Mariah Teixeira. Ela e seu pai, o diretor e ator Tavinho, propuseram a horizontalidade na criação (com dezenas de colaborações no roteiro) para narrar uma trama singular: num Brasil de 2018, uma família (Tavinho, Mariah, Joana Medeiros e Mauro Soares) assume o papel crucial de difundir a resistência.


A atriz e codiretora Mariah em Sol Alegria. Imagem: Divulgação

Como se estrutura essa resistência? Através da falange Sol Alegria, um conjunto de freiras que moram num convento isolado na selva, lideradas pela Madre Superiora (Everaldo Pontes), onde performatizam a política no corpo através de canções, atos de sodomia e uso de entorpecentes naturais. Logo no início do filme, o espectador se dá conta de que estamos no Brasil de 2018 e um pastor é candidato à presidência – plano interrompido pela ação diligente da família transgressora. “Pelo menos no filme, conseguimos matar esse candidato, né?”, brincou Mariah.

Sol Alegria mescla referências do cinema marginal à estética do Super 8, combina freiras à Pedro Almodóvar com deboches metalinguísticos e, o que é mais salutar, não anseia por permanecer em rótulo algum. “É um filme anarquista na história e no modo de fazer. É debochado e era para ser uma distopia, mas o que estamos vivendo, nessa era de polarização, já é muito ridículo. Estamos todos descrentes, mas não estamos fazendo nada. Vamos esperar o Bolsonaro ganhar para chorar?”, indagou Mariah. Num futuro próximo, a depender dos resultados das eleições presidenciais de outubro, o caos aparente de Sol Alegria há de ser traduzido como uma subversiva desordem ficcional ou como um mergulho premonitório. 

CHILE
De um jeito ou de outro, contudo, será um filme, por mais alegórico, sobre o Brasil. Da mesma forma que Cabros de mierda, de Gonzalo Justiniano, é sobre o Chile. Embora a ficção seja ancorada em 1983, ao narrar o encontro entre Samuel (Daniel Contesse), um missionário mórmon que chega a uma comunidade pobre de Santiago, e Gladys (Nathalia Aragonese), uma mulher destemida que participa de uma rede de resistência à ditadura do general Pinochet, ela se volta a 2018.

Cineasta Gonzalo Justiniano. FOTO: Thiago Gaspar/Cine Ceará
O cineasta chileno Gonzalo Justiniano. Foto: Thiago Gaspar/Cine Ceará

Justiniano, como disse aos jornalistas presentes à coletiva da manhã da segunda (6/8), exilou-se na França entre 1976 e 1983 para escapar ao que classifica como “ditadura cívico-militar”. Ao retornar, foi gravar imagens na mesma comunidade, La Victoria, que serve de cenário para Cabros de mierda, e acompanhou o que aconteceu posteriormente ao assassinato de um padre francês. O regime cobrou o material gravado, ele escondeu; anos depois, ao rever as imagens, já após um pedido do Museu Nacional da Memória e dos Direitos Humanos, resolveu recontar o que viveu.

“O filme é baseado em pessoas que conheci, nas histórias que ouvi. Mas, no Chile, é quase como se fosse proibido recordar isso tudo. Só querem fazer filmes de amor, para fazer hahaha ou hihihi. Tem gente que tem medo da memória, mas é preciso resgatar esse direito e incentivar outros artistas a fazerem o mesmo. Precisamos reconstruir o que foi vivido. É preciso defender a memória. É uma necessidade”, ponderou.

Há trechos de Cabros de mierda em que o que há de mais brutal no regime, como a tortura, é evidenciado sem filtro. “Essa não é uma história política, e sim policial, criminal. Sabemos que o que aconteceu foi muito pior. Me lembro dos brasileiros que chegavam em Santiago falando da tortura, do que quanto sofriam, e nós, os chilenos, respondíamos: ‘Mas isso não vai acontecer no Chile, somos um país democrático, estável’. Allende caiu, veio a ditadura, começaram a tortura, os desaparecimentos. Há um lado obscuro do regime que não pode ser esquecido”, ressaltou o cineasta chileno.

O barco Sol Alegria não têm previsão de estreia comercial – o primeiro deve chegar às telas em 2019, o segundo “dependerá dele mesmo, do futuro que estamos construindo agora”, nas palavras de Mariah. Cabros de mierda, por sua vez, estreou no Chile e passou cinco meses em cartaz. “Mesmo com elementos não comerciais, como essa história sobre um passado que nem todo mundo quer lembrar, fomos bem de público. A ficção é uma soma de mentiras que, às vezes, conta uma verdade”, alinhavou Gonzalo Justiniano.

LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.

*A repórter viajou a convite da organização do festival. 

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