A grande dúvida é: quem estará nessa coletiva? Podemos começar essa breve recapitulação mencionando quem deverá não estar. Houve 24 filmes na seleção oficial, 19 deles no páreo pelo Urso de Ouro. Será que o iraniano Khook foi escolhido para cumprir alguma cota geopolítica destinada ao Oriente Médio? Por que o filme de Mani Haghighi, que mostra um cineasta proibido de filmar e seu desapontamento por não ser alvo de um serial killer à cata de diretores, entrou na competição? A mesma pergunta pode ser estendida a Toppen av ingenting (em inglês, The real estate), coprodução Suécia/Reino Unido, na qual os diretores Axel Petersen e Mäns Mänsson mostram a corrosão de uma família após a morte do patriarca e a obrigação dos filhos de assumir os negócios imobiliários (daí o título) e lidar com inquilinos e afins. Em resumo, ambos os filmes não vão muito além de uma premissa-piada.
Nos últimos três dias, a Berlinale de uma certa forma foi chacoalhada por alguns filmes. Touch me not, da romena Adina Pintilie, foi um deles. Numa narrativa arrojada, ela entra em cena no papel de si própria na investigação sobre sexualidade, limites, afeto e como nos permitimos amar e ser amados. Seus personagens possuem o mesmo nome das pessoas que os interpretam – alguns deles com severas deficiências físicas. Na sessão para a imprensa, dezenas de jornalistas saíram antes do filme acabar. Na coletiva, a cineasta foi interpelada por críticos que gostariam que ela debulhasse tudo que havia posto na tela.
“Quando eu tinha vinte anos, achava que sabia tudo sobre amor, relações, companheirismo... Agora, vejo que estava enganada. Quis fazer um filme para investigar como as pessoas dão conta – dos relacionamentos, da vida. É possível amar alguém sem se perder no processo? O filme borra todas as fronteiras entre o documentário e a ficção, usando a ficção como uma rede de proteção para avançarmos naquelas histórias”, condensou a cineasta na coletiva.
Outros dois filmes que vieram com força foi Twarz, da polonesa Malgorzata Szumowska, e In den gängen, do alemão Thomas Stuber, radiografias em microcosmo da vida de trabalhadores nos seus respectivos países, porém com alcance no contexto sociopolítico em que se encontram cada nação e, em especial, a Europa. Em Twarz, Jacek (Mateusz Kosciukiewicz) é um jovem que adora dançar com a namorada e trabalha na construção de uma estátua de Cristo que pretende ser maior do que a do Rio de Janeiro (imaginem as gargalhadas dos jornalistas brasileiros nas diversas vezes em que isso era mencionado na exibição no Berlinale Palast!), mas que sofre um acidente terrível que o deixa desfigurado. Submetido a um transplante de rosto, volta para casa, mas poucos são os que de fato o aceitam.
“A partir da história dele, eu quis falar do estado de coisas na Polônia atual. O capitalismo exerce grande influência, assim como a igreja católica, e as pessoas parecem ser felizes assim. Queria falar disso de uma maneira simbólica, com um toque irônico, e por isso quis dar ao filme um aspecto de conto de fadas. É uma metáfora do meu país hoje”, comentou a diretora, que em diversos momentos da narrativa adota o jogo foco/desfoco para conduzir o olhar do espectador.
In den gängen observa um grupo de trabalhadores num supermercado – Christian (Franz Rogowski, que também está em Transit, de Christian Petzold), Marion (Sandra Hüller) e Bruno (Peter Kurth) – e o modo como suas existências estão atavicamente ligadas ao exercício daquela atividade laboral. Embora contenha passagens aqui e acolá com o rigoroso humor germânico, o filme ganha força ao mergulhar no drama e nas relações que se constroem apesar da opressão/obrigação do trabalho.
É uma bela composição dos personagens, o que o diferencia, e muito, se comparado ao outro filme alemão exibido também nesta terço final da Berlinale, Mein Bruder heißt Robert und ist ein Idiot(My Brother’s Name is Robert and He is an Idiot), de Philip Gröning. Com 3h de duração, mas sem o substrato político da proposta de Season of the devil, de Lav Díaz, com suas 4h, este filme narra o fim de semana de dois irmãos gêmeos em uma jornada com ânsia pela metafísica da filosofia, porém de carnificina e violência gratuitas.
Por fim, no pule informal dos jornalistas, os prêmios de atuação feminina devem sair de Figlia mia, de Laura Bispuri, com duas excelentes performances de Valeria Golino e Alba Rohrwacher, uma bela história ambientada na Sardenha sobre uma criança de dez anos (Sara Casu) e as duas mulheres a quem pode chamar de mãe. “Com esse filme, também quis ir além de uma noção de que a maternidade deve ser uma experiência perfeita”, apontou Laura na coletiva, arrancando aplausos e algumas lágrimas dos jornalistas.
Há quem lembre, contudo, de Isabelle Huppert em Eva, de Benoit Jacquot, ou da alemã Marie Bäumer, que interpreta o cânone Romy Schneider em 3 tage in Quiberon. Acaso ou não, Bäumer foi dirigia por Emily Atef, uma mulher, assim como Laura dirigiu Valeria em Alba em Figlia mia e Adina Pintilie estabeleceu uma relação epidérmica com sua atriz Laura Benson em Touch me not. Mulheres na direção: recorte de qualidade na Berlinale.
Já para melhor ator, há quem acredite em Joaquin Phoenix, o âncora de Don’t worry, he won’t get far on foot, de Gus Van Sant. Nesta cinebiografia, Van Sant reconstitui a vida de John Callahan, que sofre um acidente e fica tetraplégico aos 21 anos e, com o passar do tempo, supera o alcoolismo e vira um cartunista. Phoenix deu uma de si mesmo na coletiva e se recusou a responder qualquer pergunta sobre como se preparou para o papel. No entanto, se me fosse dada a chance de sentar na mesa com o júri presidido pelo cineasta alemão Tom Tykwer, eu apostaria no polonês de Twarz, em Milan Maric, de Dovlatov, e em Franz Rogoswki, por Transit mais do que por In den gängen - com seu olhar melancólico, que ancora o último plano do filme de Petzold, ele vislumbra algo que Road to nowhere, canção do Talking Heads, explode nos créditos finais:
Sabemos para onde vamos, mas não de onde viemos, e sabemos o que estamos conhecendo, mas não podemos dizer o que já vimos, e não somos crianças pequenas e sabemos o que queremos, e o futuro está certo, nos dê tempo para fazer funcionar.
Que os prêmios da Berlinale sejam capazes de reconhecer as discussões propostas pelos filmes nesses quase dez dias de imersão.