Recife a bico de pena
Artistas plásticos de gerações distintas, Cavani Rosas, Jeims Duarte e Rafael Mont'Elberto registram em desenhos a paisagem urbana da capital pernambucana
TEXTO Marcelo Pereira
18 de Setembro de 2025
Interior da venda de Seu Vital, no Poço da Panela
Ilustração Cavani Rosas/Divulgação
Eles são artistas plásticos, de gerações distintas, mas que guardam afinidades entre si. Em uma época em que a Inteligência Artificial generativa cria e recria imagens de um realismo surpreendente, Ricardo Cavani Rosas, Jeims Duarte e Rafael Mont’Elberto não se deixam levar pelo encanto digital e preferem impor as suas próprias digitais nos desenhos que elaboram. Em comum, os três se dedicam à técnica do bico de pena, que remonta à Antiguidade Clássica da Grécia e ao Egito dos faraós; e ao nanquim, surgido na China há 4 mil anos. Um tema desperta especial predileção do trio: a paisagem urbana do Recife, de ontem e de hoje, ora preservada, ora em ruína, suas gentes, sua cultura e seu cotidiano.
Escultor, gravador, pintor e desenhista, Ricardo Cavani Rosas, 72 anos, é um dos mais requisitados artistas plásticos quando o trabalho é a bico de pena. “Meu interesse pela técnica surgiu a partir da paixão pela história em quadrinhos, seus personagens, a arquitetura, os espaços, os veículos, os temas de ficção científica e da Idade da Pedra, que permitem uma observação muito grande”, afirma. Quando começou a estudar Anatomia (fez trabalhos para o Curso de Medicina da USP), viu que os desenhos eram a bico de pena. Entre os grandes mestres, ele elenca Albrecht Dürer, Gustav Doré, M. C. Escher e Paul Klee. “Ando estudando com muita atenção a fotografia em preto e branco, com um grão mais aberto, feito aquelas de Sebastião Salgado, para ver se consigo chegar a algumas conclusões de luz e sombra”, diz Cavani. “O desenho a bico de pena tem que ser 100% a mão”, sentencia.
A iniciação de Cavani Rosas com a técnica do bico de pena teve início quando ele começou a estudar Anatomia e viu que nos livros antigos não havia fotografias de corpo humano, mas desenhos. "Quando eu fui trabalhar na Faculdade de Medicina da USP, tive a oportunidade de me iniciar na mesma forma que eles trabalhavam antigamente, olhando as peças (seres vivos e mortos) na minha frente". Para Cavani, a meditação é um aspecto importante para o seu desenho, que exige calma e concentração. "No desenho a bico de pena, em algumas situações, você tem que prender a respiração para sua pulsação não alterar o desenho na hora que você está com a pena no papel. A batida do seu coração pode influir no traço", explica. Segundo ele, há quem considere este tipo de técnica uma sentença. "Às vezes, é como uma prisão. Você passa meses preso num desenho".

Cavani é rigoroso com o que faz. Seja por desejo próprio ou por encomenda. "Eu busco a fidelidade, mas também faço a reconstrução do passado e tenho liberdade nas escolhas e na abordagem. Estou com uma encomenda de vários desenhos da Ilha do Bairro do Recife da década de 1920. Estou reconstruindo a cidade naquele período e um pouco antes também. A arquitetura do Recife que me atrai e a de qualquer cidade que esteja próxima do mar. Espero que todos os museus e até o meu acervo guarde muito isso. Um dia, isso tudo vai desaparecer, não tem como escapar. Essa verticalização excessiva está mudando tudo."
Com o domínio da técnica a seu favor, o desenhista permite-se também buscar novas soluções. "Eu, muitas vezes, não utilizo os pontos de fuga tecnicamente estabelecidos. É como se eu estivesse olhando o local e, cada vez que eu mexesse a cabeça, pudesse haver modificações de direcionamento dos traços. Então, nos pontos de fuga têm uma parte evidentemente técnica, mas há também o componente emocional da observação in loco, porque as deformações da técnica precisa são muito grandes. Por exemplo, no Palácio do Governo, que fiz internamente, muita gente diz que aquelas fugas estão todas erradas. Mas não é uma fuga que está errada. Eu, que estava sentando naquele local, observava de várias maneiras mexendo os olhos e a cabeça, então, dava essas deformações."
A arquitetura do Recife ou de outras cidades cede também espaço para outras abordagens do artista. "Entre as coisas que me dão muito prazer de documentar a bico de pena são os espaços interiores, como eu fiz com a venda de Seu Vital, no Poço da Panela, por exemplo, e o Botequim do Hugo, em São Paulo; e os exteriores, com os vegetais. Tenho feito muito baobás. Estou inclusive para iniciar um trabalho sobre as árvores sagradas da umbanda em Pernambuco, que são cinco árvores que estão em terreiros". Cavani não apenas vai visitá-los como também frequentá-los, para conseguir levar ao desenho suas impressões sobre aquele território.
JEIMS DUARTE
Artista plástico doutorado pela UFPE, há 25 anos investigando as paisagens que habitamos e projetamos, em suas próprias palavras, Jeims Duarte, 50 anos, teve sua vocação despertada cedo, mesmo que de forma inconsciente. “Desenho desde que me entendo por gente, vitimando várias paredes de condomínio", recorda, com humor. As formas mais delicadas de desenho, como o bico de pena, vieram na faculdade de Artes Plásticas (UFPE, 2001). "O bico de pena, na verdade, é para mim uma abordagem técnica entre outras. Costumo, inclusive, mesclar técnicas variadas num mesmo trabalho. O mais importante para mim realmente é o efeito alcançado pela técnica. Vejo o desenho como particularmente apto a tratar a paisagem urbana como veículo de uma dinâmica social e econômica específica, traduzida no aspecto mesmo desta paisagem, num aporte que tenho denominado de 'poética da construção de ruínas'”. Jeims se define “100% paleozoicamente analógico”. Tem pouca ou quase nenhuma interação com a Inteligência Artificial (IA). “Por enquanto, apenas me informo sobre IA como um ser humano qualquer! Sem preconceito artístico; apenas sem vontade mesmo”.
Filho de pais alagoanos, nascido em João Pessoa, Jeims se mudou para o Recife ainda bebê. "Sou mais um falso recifense." Não há uma particularidade da capital pernambucana que o atraia em seus trabalhos. "Como acontece em qualquer cidade, há vários Recifes no Recife. Variados e sucessivos tempos da cidade coexistem na paisagem atual. O centro, especialmente e neste momento, é um cenário fortemente marcado pela velocidade dos ciclos de apogeu e decadência, visíveis no estado de abandono das edificações. Neste sentido, por exemplo, a Avenida Guararapes se apresenta para mim atualmente como um universo simbólico mais rico do que a Avenida Conselheiro Aguiar".

Seu desenho tem uma abordagem "basicamente expressionista". "[O filósofo e teórico da arte italiano] Giulio Carlo Argan disse certa vez que o expressionismo é um realismo. Concordo com isso na medida em que evidencio e intensifico, no meu trabalho, o aspecto de arruinamento efetivamente presente na paisagem".
Sendo assim, Jeims vai além da representação imagética da paisagem-objeto retratado. Tem uma forte carga simbólica, semântica, sociológica e política. "A paisagem urbana é, em certo sentido, antropomórfica! Imagino que a dinâmica que faz a Conde da Boa Vista, por exemplo, encerrar suas atividades pelas 19h imprime nesta paisagem uma 'tristeza' que reverbera nas pessoas. Cidade e pessoas formam um sistema, neste sentido. São receptáculos distintos de uma mesma atmosfera".

Atento à realidade brasileira contemporânea, em suas viagens, Jeims procura analisar a relação das cidades com o Recife. "No Brasil, a região central de várias cidades passa por uma situação muito semelhante de abandono. Na última ida a São Paulo, percebi estas diferenças e semelhanças. O centrão paulistano está também bastante 'triste', mas ainda exibe uma vitalidade, pelas 20h, que não vemos no Recife por este horário. A tristeza dos lugares realmente me atrai. Freud deve explicar."
A gentrificação também é um aspecto importante investigado e que está refletida em seus desenhos. "Certos aspectos da paisagem podem ser mais bem evocados pela ausência mesma deles. O retrato do Centro como desolado sinaliza também que agora outras áreas da cidade estão atraindo os fluxos de recursos e a própria presença humana em maior grau. Há certamente uma poética também nestes outros ambientes: algo como 'learning from Las Vegas'. Mas é preciso escolher, ou, o que dá quase no mesmo, ser escolhido por este ou aquele aspecto da paisagem.
RAFAEL MONT'ELBERTO
Filho do artista plástico e designer Alex Mont'Elberto, Rafael, 28 anos, é desenhista, artista visual e o caçula do trio. Sua formação, no entanto, é em Arquitetura pela UFPE, turma de 2019. Nada mais natural, portanto, que a paisagem urbana, esteja no centro de sua produção. “Sempre me interessei pela área desde criança, apesar de não ter seguido na profissão, me encanta os detalhes dos edifícios, da cidade, do movimento cotidiano urbano”. A desenhar, Rafael começou ainda era criança. O pai é uma influência forte, mas não a única. “Herdei uma caixa de canetas antigas de bico de pena do meu avô, que era engenheiro, e um livro de desenho em perspectiva. Desde então comecei a desenhar e não parei”.
Quem olha os desenhos de Rafael Mont'Elberto logo identifica suas preferências temáticas. "Eu gosto muito de retratar as paisagens de Pernambuco, no geral, e o Recife, em especial. Meus lugares favoritos são os mercados públicos e igrejas da cidade. Me encantam os detalhes dos edifícios, da cidade, do movimento cotidiano urbano. Gosto de caprichar em detalhes como lodo, texturas, acabamentos. Inicialmente, eu fazia paisagens imaginárias, mas desde 2011 treinei meu olho para retratar o Recife."

Ele sabe bem o momento da virada de sua vocação ao desenho: quando estava participando de uma feira de ciências da escola, cujo tema era o movimento Manguebeat. "Resolvi homenagear a cidade com cenas do mangue da cidade, contrastando com as construções. Não parei mais de desenhar o Recife. Gosto muito de desenhar cenas do Carnaval e das demais manifestações culturais de Pernambuco. Então, em momentos assim combino as pessoas nas composições. "
Como Cavani Rosas e Jeims Duarte, Rafael prefere o trabalho de campo, embora possa recorrer também a imagens fotográficas. Além de flanar pela cidade, aproveita também as viagens que faz e compartilha no Instagram (@desenhosderafael). "Sou apegado às cidades históricas mas também a metrópoles que conseguem mesclar a atmosfera cosmopolita com uma identidade forte da cultura local, conferindo um charme único. Isso aguça meu interesse", confessa.
Com bloco, canetas e lápis na mochila, ele desenha o que vê, quando pode. Ou então, fotografa. "Desenho das duas maneiras, por fotos ou em campo, e entendo que cada método tem sua particularidade. Em campo, há a possibilidade de captar mais movimento e dinamismo, já no ateliê trabalhando com fotos, consegue-se caprichar mais nos detalhes que a incerteza do calor, da segurança, luz, chuva e demais fatores do campo poderiam atrapalhar. De toda forma, dou preferência a sempre que possível ir a campo capturar o máximo de imagens possíveis de ângulos diferentes para conceber um desenho detalhado. Por uma foto só, o desenho tende a sair chapado e pobre em detalhes, e como eu sempre trabalho com a perspectiva, entender de onde vem a luz, as linhas que formam a imagem, e quais detalhes ocultos na imagem mas que pertencem à cena e precisam ser representados é fundamental."

Apesar de ser um observador atento e detalhista, Rafael não se considera um realista, muito menos um hiper-realista. "Meu desenho vem muito da técnica do desenho de observação, oriundo dos croquis da minha formação arquitetônica, então eu utilizo muitos traços mais soltos que lembram rabiscos, mas em conjunto formam a imagem. Meus traços carregam uma identidade muito forte, autoral, fácil de apontar e dizer que é meu trabalho. Dizem que o efeito dos meus desenhos muda pra quem vê de longe e de perto. Gosto também de hachuras e pontilhismo", assinala o artista.
A Inteligência Artificial generativa é uma realidade e há artistas, designers e fotógrafos experimentando, testando seus prompts. Rafael não despertou ainda o interesse em enveredar pelo caminho, que ele considera perigoso para a arte. "É um assunto que me preocupa bastante enquanto artista tradicional. Entendo que atualmente é possível para alguns artistas administrarem em equilíbrio a IA com o desenho (como usar de referencial para a concepção do esboço), apesar de não me interessar a aderir a isso e de ser um artista mais 'analógico', mas simular e substituir completamente a técnica de anos de um artista tradicional pela IA acho perigoso. A IA vem tentado cada vez mais se aproximar do bico de pena, mas gera um resultado muito mecânico, mesmo que um dia a técnica se equipare, acredito plenamente que a sensibilidade e a emoção do traço de um artista são insubstituíveis".
Rafael começou a dar seus primeiros passo em direção a repassar os seus conhecimentos como desenhista, oferecendo aulas particulares. Abriu a primeira turma de oficina, recentemente. "Meu público, normalmente, tem a faixa dos 35 anos. Mas para as oficinas, a busca é predominantemente de pesssoas mais velhas, que querem descobrir ou revisitar a técnica, aposentados ou mesmo pessoas que ainda trabalham e buscam um hobby para preencher o tempo".
MARCELO PEREIRA, coordenador de edição das revistas Continente e Pernambuco