Artes Cênicas

A criativa engrenagem de A máquina volta a girar

Peça escrita por Adriana Falcão e dirigida por João Falcão, que revelou ao país talentos como Wagner Moura, retorna para comemorar 25 anos de sua aclamada estreia, com um novo elenco

TEXTO Duda Martins

29 de Setembro de 2025

Foto Divulgação

O que faz de uma obra de arte inesquecível? Aristóteles, quando falava em catarse, dizia que a obra inesquecível é aquela que purga emoções. Já Nietzsche via a grande arte como aquilo que afirma a vida, mesmo diante do sofrimento – o que permanece na memória é aquilo que nos faz encarar a existência com intensidade. Para Eduardo Galeano, a obra memorável é aquela que mantém viva a memória coletiva, transformando dor em poesia e resistência. Há 25 anos estreava no Recife o espetáculo A máquina, uma das obras mais marcantes da dramaturgia brasileira e que até hoje mora no imaginário coletivo de muita gente. 

Há ainda outros indícios que apontam a relevância de uma obra: o quanto ela pode reverberar desde a sua gênese. Nesse caso, desde 1999, quando a então iniciante escritora carioca, radicada no Recife, Adriana Falcão escreveu o que viria a ser seu primeiro romance literário. Nasceu com ele a fictícia cidade de Nordestina - uma espécie de Macondo de Garcia Márquez - e Antônio, personagem central que vê a sua amada Karina em vias de abandonar a vida provinciana e partir para “o mundo”, com o objetivo único de se tornar artista de televisão. Para não perder o amor da sua vida, Antônio, então, decide inventar uma máquina do tempo, e trazer “o mundo” até Karina. 

No processo de escrita, Adriana entendeu que o texto havia nascido mesmo para ser livro. E assim foi publicado pela editora Objetiva naquele mesmo ano. A máquina foi o prefácio de uma carreira repleta de livros e roteiros premiados de Adriana, também autora do best seller Mania de explicação (2001) e roteirista de séries como O Auto da Compadecida (adaptação para a TV), A Comédia da vida privada (1995) e A grande família (2001)”. 

A engrenagem de A máquina também girou a vida do diretor e roteirista pernambucano João Falcão - então companheiro de Adriana - que já vinha de sucessos no teatro como O Burguês Ridículo (1996) e Uma noite na lua (1998), com Marco Nanini, e A Dona da História (1997), com Marieta Severo e Andrea Beltrão. João enxergou no livro uma versão daquela obra para os palcos e montou o espetáculo que foi responsável por revelar ao Brasil um quarteto pouco modesto: Wagner Moura, Lázaro Ramos, Vladimir Brichta e Gustavo Falcão. 

“Sempre gostei desse lance de trabalhar com novos talentos. Era muito bom dirigir figuras como Marieta e Nanini, mas sempre me atraí pela pulsão da descoberta. Dirigi Vlad em A ver estrelas (1995), que me apresentou a Wagner, que me apresentou a Lázaro. E tinha Gustavo e Karina Falcão, irmãos, que também me impressionavam no teatro. Eram jovens atores até então desconhecidos”, conta João, que junto com o elenco também viu naquele espetáculo um divisor de águas na sua carreira.

Ensaio da nova montagem de "A Máquina". Foto: Leonardo Bonato/Divulgação 

Dali em diante, assinaria outras produções emblemáticas para o teatro brasileiro como Cambaio (2001), em parceria com Adriana, Chico Buarque e Edu Lobo; Clandestinos (2008), Gonzagão - A lenda (2012); Gabriela - Um musical (2016). Além do seu trabalho com Cinema e TV que caminhava paralelo ao teatro, com obras como A Comédia da vida privada (1995), O Auto da Compadecida (1999), Sexo Frágil (2003) para citar algumas parcerias com Guel Arraes. 

A máquina estreou em 2000 no antigo Armazém 14, do Porto do Recife, e fez temporadas memoráveis no Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte. Foi sucesso absoluto de público e crítica por sua inventividade, encenação inovadora, texto e atuações acachapantes. O espetáculo mora na memória de muitos brasileiros, que não necessariamente assistiram à obra, mas ouviram falar pelo estrondo que fez.  

O livro, que virou peça, virou filme em 2005 (Globo Filmes), ganhou música de Chico Buarque, foi objeto de pesquisa de mestrados e doutorados, e ainda é tema de discussão em escolas e universidades em diversos estados do País. 

Gustavo Falcão, que viveu Antônio nos palcos e no cinema, assina a codireção da nova montagem com João Falcão. Foto: Leonardo Bonato/Divulgação

Na história, Antônio viaja 25 anos, seis meses e dezessete dias para o futuro e lá descobre muita coisa. O tempo, também protagonista da história, tratou de passar rápido demais também na vida real, e os 25 anos do futuro chegaram. Em 2025. E com ele, a vontade de remontar esse clássico teatral. “Tentamos muito reunir novamente o elenco original, mas a vida de todos mudou drasticamente. Não estávamos conseguindo encaixar as agendas”, conta João. 

Enquanto isso, em São Paulo, quatro jovens atores acabavam de ser premiados com sua primeira peça enquanto coletivo. Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto formam o Coletivo Ocutá e com sua adaptação de O avesso da pele, de Jeferson Tenório, despontaram como promessa no meio artístico. 

“Estávamos muito felizes com o resultado do que construímos com o Avesso [da pele]. Foi um processo longo de pesquisa e dedicação e estávamos colhendo os frutos disso”, conta Vitor Britto. Mas sentiram que era hora de buscar um novo texto. Se no Avesso da pele se debruçaram sobre a temática racial e as denúncias levantadas por Jeferson Tenório, perceberam que agora queriam provocar outras sensações nos espectadores, e no próprio grupo. “Começamos a ler autores brasileiros e chegamos na Adriana Falcão. Li Mania de explicação e amei. Quando li A máquina, fez todo sentido. Era um uma peça feita para quatro atores, dentro de um universo lúdico, com humor, lirismo, um texto poético, e ao mesmo tempo mega inteligente. Foi um marco na história do teatro brasileiro e seria uma honra para a gente remontar essa peça”.  

O produtor Clayton Marques, que assina as produções de João, ficou sabendo do desejo do grupo paulistano e em pouco tempo agilizou uma primeira leitura na casa de ninguém menos que João Falcão. “Todos os dias chegam mensagens de pedidos de direito para remontar A Máquina. Estávamos aguardando o tempo certo, e um elenco que fosse surpreender o público”, conta Clayton. O coletivo precisava encontrar a atriz que interpretaria a Karina da história e chegaram ao nome de Agnes Brichta (Quanto mais vida, melhor!), filha de Vladimir Brichta, um dos Antônios da montagem original. 

Agnes Brichta, filha de Vladimir Brichta, do elenco original, interpreta a personagem Karina. Foto: Leonardo Bonato/Divulgação

Desde o início de agosto, o elenco está imerso no universo da ‘nova A máquina’. Os ensaios contam com a preparação física de Gustavo Falcão, que viveu Antônio nos palcos e no cinema, e assina a codireção da nova montagem junto com João. "Me emociona muito estar vivendo isto: a reconstrução de algo poderoso, com um elenco incrível e surpreendente, que é rememória de tempos marcantes pra mim. É também confirmação: A Máquina foi e segue sendo pulsão - de vida, de abrir caminhos, de transformar o destino de quem se encontra com ela.". 

“O tempo é um personagem constante em tudo que realizo. É o tempo que transforma os acontecimentos em História ou poesia. O que rolou com A máquina virou História, e agora vamos contar um novo capítulo dela”, afirma João Falcão.

A rotina de ensaios é de mais de 8h por dia e se divide entre estudo de texto, exercícios acrobáticos e dança popular. A nova montagem já tem data para estrear: 8 de outubro, no novo TeatroIquê, em São Paulo. O espetáculo segue em cartaz até dezembro, e deve circular nas principais capitais do país a partir de 2026. 

DUDA MARTINS, jornalista e atriz

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