Arquivo

Zurique: A terra dos dadaístas

Cidade suíça guarda antigo clima boêmio e festivo, que atraiu jovens artistas e até soldados desertores em plena I Guerra Mundial

TEXTO LUCIANO VELLEDA
FOTOS ROBERTO SEBA

01 de Setembro de 2013

Foto Roberto seba

Dezenas de garrafas brancas de vidro pendem do teto quase escondendo canhões de luz apontados para um pequeno palco existente no ambiente. As paredes ao redor são cobertas por pinturas velhas e descascadas, frases escritas à mão, quadros, grafites e retratos. Uma pequena lareira aquece o local, iluminado por uma luz fraca irradiada de alguns poucos lustres misturados às garrafas e um punhado de velas postas em candelabros.

Um grupo de jovens ocupando duas mesas toma cerveja e se diverte com um irreconhecível jogo de cartas de baralhos especiais. A noite está começando e o salão no 2º andar do antigo casarão ainda está vazio. Mas, assim como há quase 100 anos, a atmosfera de contestação e rebeldia já está montada, à espreita. Não se trata de um salão qualquer e a noite promete ser quente: este é o Cabaret Voltaire, em Zurique, entre cujas paredes nasceu o Dadaísmo, o movimento que desestruturou a arte ocidental, no começo do século 20.

Em 1916, enquanto bombas devastavam a Europa na I Guerra Mundial, iniciada dois anos antes, músicos, pintores, escritores, poetas, dançarinos e até soldados alemães desertores encontraram na cidade suíça o abrigo seguro. Revoltados diante da situação política que conduzia o continente a uma batalha fratricida, desiludidos com os rumos econômicos que privilegiavam alguns poucos e alijavam a maioria, e contrários ao pensamento racionalista que se estendia às manifestações artísticas, um pequeno grupo de jovens decidiu expurgar a insatisfação e fundar o Dada, movimento artístico radical de contestação que negava as experiências formais da arte até então, sem aceitar preceitos, enquadramentos, e tampouco pretender formar um novo modelo. Até mesmo o nome, Dada, é fruto da intenção de não significar nada – embora a palavra tenha tradução no francês, romeno, alemão e italiano, em cada língua com significados discordantes.


O rio Limmat é um elemento integrador da paisagem
da cidade centenária

Fazer arte de maneira espontânea, desordenada, de preferência chocante e escandalosa, foi a motivação dos dadaístas. As longas noites movidas por poesia, música e dança no Cabaret Voltaire atraíam artistas europeus com a mesma intensidade que o movimento se expandia para além das fronteiras da Suíça, espalhando suas ideias por Barcelona, Berlim, Paris e Nova York. O movimento contestador durou oficialmente até 1919, embora sua influência seja perceptível na obra de franceses e alemães de anos seguintes, como Max Ernst, defensor do Dadaísmo na Alemanha e ícone do Surrealismo.

“Hoje, eles querem só provocar”, diz Monika Ghidoli, guia de turismo em Zurique, referindo-se aos atuais ocupantes do Cabaret Voltaire. Usado para diferentes fins durante longas décadas do século 20, o casarão da Rua Spiegelgasse 1, na zona histórica de Zurique, foi invadido e ocupado ilegalmente por artistas numa tarde de 2002. O ato reacendeu o interesse da mídia e da comunidade literária internacional, voltando seu foco uma vez mais para o lugar.

Após meses de ocupação, a rebeldia venceu. Seguiram-se processos políticos, judiciais e trabalhos de restauração, até que o local de nascimento do Dadaísmo reabrisse suas portas ao público, em 2004. Hoje, a histórica casa apresenta, em seu 1º andar, exposições artísticas, interpretações e releituras do movimento. No andar superior, há o café-bar, o lounge com poltronas espalhadas desordenadamente e o hall principal. O salão onde tudo começou, impulsionado pela ação de homens como Hugo Ball, Tristan Tzara, Hans Arp, e muitos outros, é um ambiente por excelência despojado, criativo, inspirador.


Exclusivo para o público feminino durante o dia, o Clube Frauenbad é procurado no verão

ORDEM DIURNA
Curiosamente, ou talvez justamente por isso, para além do casarão da Rua Spiegelgasse, Zurique é uma cidade fiel ao estereótipo suíço. Durante o dia, nada parece estar fora do lugar. Tudo parece perfeitamente ordenado. A cidade é extremamente limpa, os trens de superfície deslizam silenciosamente – e são pontuais. As ruas da Old Town ostentam prédios antigos muito bem-cuidados, com fachadas preservadas, sacadas floridas, e chamativos “puxadinhos”, de gosto duvidoso para uns, e charmoso para outros. Os habitantes de Zurique dão bastante importância à moda: homens e mulheres vestem-se elegantemente, o que não significa exagero, pelo contrário, discrição.

Há, contudo, exceções. Nos dias ensolarados de verão, algumas mulheres aproveitam as elevadas temperaturas para exibir-se com shortinhos e vestidos provocantes, atraindo olhares. As lojas de roupas são predominantemente caras e de marcas mundialmente famosas, com os produtos meticulosamente expostos na vitrine.

Embora seja uma cidade antiga, e preserve bem sua história, Zurique impressiona mesmo é por sua modernidade – ou justamente pela harmonia do ontem com o hoje. E nada reflete melhor essa busca pelo novo quanto a valorização do design. “Os suíços e os moradores de Zurique gostam muito de design”, confirma Peter Vauthier, há 30 anos trabalhando na linha de frente do Hiltl Restaurant, o mais antigo restaurante vegetariano da Europa, inaugurado em 1898.


Os simpáticos trens de superfície são pontuais e importantes meios de transporte na cidade

A idade mais que centenária não está evidente na aparência do local. O restaurante tem um ambiente despojado e moderno, com belos detalhes – como quase tudo em Zurique – em suas cadeiras, lustres, sofás e poltronas. Referência na alimentação vegetariana, desde 2007 funciona no local uma escola de culinária especializada em comida asiática, com aulas para crianças, e cujos mestres são os próprios cozinheiros.

À noite, quando o serviço do jantar é encerrado e a digestão começa, o Hiltl se transforma num agitado clube noturno. “Quando cheguei aqui, era só um restaurante. Um bom restaurante. Hoje ampliamos, a mentalidade das pessoas mudou muito nesse período, e somos mais que um restaurante”, atesta Peter.

Para além de sua vocação como um dos maiores e mais famosos centros financeiros da Europa, a ânsia por inovação é uma faceta pouco alardeada de Zurique. Não à toa, a gigante Google instalou na cidade seu quartel-general no continente europeu. Num passado não muito distante, a maior cidade da Suíça era notícia mundo afora devido ao grave problema das drogas e da prostituição, que dominava bairros mais afastados da zona central. Justamente nessa região, conhecida como Zuri-West, a transformação hoje é mais evidente. O que, antes, era decadência e degradação urbana e humana, agora, é um local estiloso, na vanguarda da arte de rua e do design contemporâneo. Durante o dia, também um local para famílias, como no uso dado ao parque diante do Viadukt.


No local onde funciona, desde 2004, uma badalada galeria-bar,
nasceu o Dadaísmo

Na manhã de um domingo ensolarado do mês de agosto, auge do verão, cada raio de sol é aproveitado ao máximo – pois a turma sabe bem o que a espera quando o inverno chegar. Crianças correm de um lado ao outro, jovens esparramam-se pela grama verde do parque ensaiando romances, casais bebem vinho enquanto embalam o carrinho do bebê, e até o chafariz, mais do que um objeto de enfeite, é motivo de festa para adolescentes e adultos, que nele se banham com alegria.“Zurique é uma cidade em que você pode fazer de tudo. Há muitos bares, festas, cultura. E, num dia de sol como este, você ainda pode fazer bons passeios”, diz a jovem Miriam Meier, de 24 anos, enquanto observa a paisagem da cidade emoldurada na janela do barco que lentamente desliza pelo Rio Limmat.

Miriam é de Davos e vive em Zurique para estudar. Por ser mulher, se ela quiser, pode ainda aproveitar o sol do verão suíço de um modo peculiar: num deque montado sobre a margem do Rio Limmat fica o centenário clube Frauenbad, exclusivo para mulheres, onde elas podem banhar-se com privacidade e bronzear o corpo livre da parte superior do biquíni.

Durante a noite, a exclusividade feminina é deixada de lado e ambos os sexos se encontram no Barfussbar, no mesmo local do Frauenbad – ainda que o número de homens permitido não ultrapasse os 150.

NOITE DE ARROUBO
As horas seguintes ao pôr do sol trazem, junto com a escuridão, a Zurique que pulsa num ritmo frenético. Se, durante o dia, a cidade é perfeitamente organizada e eficiente, à noite, o olhar mais atento começa a identificar curiosidades. As casas noturnas de Zuri-West sacodem ao ritmo do techno, house, hip hop e R&B.

No centro, na principal rua da Old Town, a Niederdorfstrasse, bares e restaurantes de diferentes estilos, e para distintos públicos, atraem moradores e turistas, que vagam de um lado a outro em procissão desenfreada. Vê-se de tudo um pouco: jovens recém-saídos da adolescência, casais maduros e garbosos, outros em idade mais avançada, para os quais os arroubos juvenis já impressionam menos. Arroubos como os cometidos por alguns grupos fantasiados de Fantasma da Ópera ou portando máscaras com o nariz em formato de pênis, mexendo com todos e principalmente com as mulheres, seus alvos prediletos.

À medida que a noite avança, junto à quantidade de álcool na corrente sanguínea, jovens com idade entre 18 e 30 anos parecem exorcizar, na madrugada, a vida ordeira e disciplinada que levam durante o dia. Falam alto, gritam, gesticulam, ensaiam passos de dança e se abraçam de modo efusivo, às gargalhadas. Garrafas, copos de plástico e papéis jogados no chão das ruas históricas da Old Town são o oposto da imagem recatada da Suíça. De repente, dois rapazes pulam pelados nas águas do Rio Limmat, enquanto suas amigas berram e riem.

Tal qual o famoso urinol de Marcel Duchamp, transformado em objet trouvé, alguns jovens chutam as garrafas jogadas ao chão nas ruas próximas ao Cabaret Voltaire.

Horas depois, em algum momento antes que amanheça, a eficiência e a precisão que caracteriza o país retorna, e as ruas estão outra vez impecavelmente limpas. Quando o sol surge, as marcas da agitada noite de verão de Zurique já estão varridas. Não há sinais da rebeldia vivida horas antes, não há vestígios de contestação. Mas a noite seguinte logo virá, o Cabaret Voltaire abrirá suas portas uma vez mais, a juventude sairá às ruas novamente, e os ecos do Dadaísmo parecerão ainda reverberar na ordeira cidade suíça. 

LUCIANO VELLEDA, jornalista especializado em viagem e turismo.
ROBERTO SEBA, fotógrafo.

Publicidade

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”