“Os meios não deixam de existir, apenas perdem o status de únicos operadores, fazendo com que a comunicação seja problema de toda a sociedade. Sendo assim, o papel desempenhado antes pelos meios passa a ser desempenhado também por outros atores, sejam indivíduos ou instituições”, afirma o pesquisador Antônio Fausto Neto, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul. Ele toma como exemplo dessa mudança a doença e a morte de dois presidentes latino-americanos: Tancredo Neves, no Brasil, em 1985, e Hugo Chávez, na Venezuela, em 2013.
No primeiro caso, a situação de saúde de Tancredo é tornada em discurso pelo trabalho do porta-voz oficial, o jornalista e político Antônio Britto, que fala em nome do presidente, além dos próprios veículos de comunicação, que se constituem em mediadores entre o hospital e a sociedade. Essa fase é marcada pela centralidade da “sociedade dos meios”, na qual a mídia é protagonista na organização e tematização das questões sobre o presidente, afirma Fausto Neto. “O caso Tancredo se caracteriza por um corpo falado, uma vez que o presidente foi objeto de várias narrativas em circulação pelo porta-voz oficial e outras, escolhidas e disseminadas pelos meios de comunicação”, explica.
Já no caso de Chávez, as estratégias de enunciação sobre a saúde do venezuelano ocorrem de forma diferente, algumas acionadas pelo próprio presidente venezuelano ou pelo seu círculo governamental, através do Twitter e de outros dispositivos midiáticos. É a fase da “sociedade em vias de midiatização”, na qual as práticas comunicacionais de todos os campos sociais são afetadas, de algum modo, pela lógica midiática. “O hermetismo com que era tratada a saúde de Chávez fez com que o caso fosse levado adiante por meio de vários porta-vozes, que promovem a circulação de informações em diferentes processos discursivos, caracterizando um acontecimento-circulação, ao contrário do acontecimento-mediação que marcou o caso Tancredo Neves”, avalia Fausto Neto.
LULA E JOLIE
O professor toma como exemplo o caso do câncer de Lula para demonstrar como o ex-presidente deu visibilidade à sua doença. Em vez de delegar à mídia a função de “fazer saber”, foi o ex-presidente, junto com sua assessoria, que tratou de semantizar inicialmente o tratamento médico e o seu desenrolar, tornando-se, para além de uma simples fonte de notícia dos veículos, um operador de sentido.
Um caso recente e bastante emblemático, também para ilustrar as estratégias enunciativas da midiatização, é o da atriz Angelina Jolie. Em abril de 2013, ela resolveu se submeter a uma dupla mastectomia preventiva (remoção dos dois seios) para diminuir as chances de desenvolver um câncer de mama. O anúncio da operação foi feito por ela mesma num artigo escrito para The New York Times. Nele, a atriz fala do falecimento de sua mãe, em 2007, depois de passar 10 anos lutando contra um câncer, e justifica o fato de tornar pública a sua decisão no intuito de incentivar outras mulheres a fazerem o mesmo. “Assim que eu soube qual era a minha condição, decidi ser proativa e minimizar o risco tanto quanto eu pudesse. (...) Espero que vocês saibam que existem opções”, escreveu na época ao jornal norte-americano.
A decisão de tornar pública a sua atitude através de um artigo – um gênero discursivo de opinião – é revelador da sua estratégia de divulgação junto à imprensa. Em vez de convocar uma coletiva para tratar do assunto, como os artistas costumam fazer quando querem divulgar algo sobre sua vida e/ou carreira, Angelina expôs por escrito as razões que a levaram a se submeter a tal cirurgia. No caso dela, a midiatização passaria pelo uso de um espaço no qual os periódicos costumam informar não ter responsabilidade sobre os pontos de vista defendidos pelos autores dos artigos. Nesse sentido, a atriz teria relativa “autonomia” para discorrer à sua maneira sobre o assunto. Evidentemente, a atitude de Angelina gerou interesse da mídia, sendo capa dos dois principais semanários de informação brasileiros, as revistas Veja e Época.
Mesmo com essa mudança nas formas de interação, os especialistas destacam o papel importante dos meios de comunicação tradicionais no processo de midiatização. Por mais que a mídia pareça perder algo do status de saber e difundir primeiro sobre os fatos, é ela ainda a responsável por tornar públicos os acontecimentos para a sociedade, após um trabalho de ressignificação a partir das informações coletadas. A internet é um dos principais veículos nessa maior abertura para o processo de produção e circulação das mensagens.
AUTORREFERÊNCIA
Dentro do fenômeno da midiatização, as próprias práticas midiáticas vêm sendo afetadas, produzindo acontecimentos discursivos híbridos, baseados na própria enunciação, como no caso das atuais estratégias de autorreferencialidade da imprensa que enfatizam mais a operação de produção da notícia que o fato em si. Um exemplo disso, lembra Fausto Neto, foi a ênfase dada pela Rede Globo e pela Rede Bandeirantes na divulgação dos preparativos técnicos para a realização dos debates com os presidenciáveis em 2006 e nos dispositivos televisivos mobilizados para construção e manutenção da midiatização da campanha eleitoral naquele ano.
Anúncio de que se submeteria a dupla mastectomia foi feito pela atriz Angelina Jolie em artigo no New York Times. Foto: Divulgação
Em 30 de julho de 2006, a Globo publicou no jornal O Estado de S.Paulo o anúncio: “Eu prometo”, informando as características da cobertura que seria realizada. Um dia depois, em 31 de julho, a Bandeirantes publicou um anúncio semelhante, no mesmo jornal, respondendo à concorrente com os dizeres “Eles prometem, a Band cumpre”. Responsável pelo último debate naquele ano, em 26 de outubro, a Globo ressaltou, ao longo dos telejornais daquele dia, as operações de produção dele em vez da realização do evento em si.
Outros espaços jornalísticos, como a coluna Por dentro dO Globo, são exemplos nos quais o produtor (nesse caso, o periódico) se torna parte da notícia, convidando o leitor a saber mais sobre determinados aspectos da produção da mensagem. Característica do jornalismo midiatizado, a autorreferência interfere na forma como os veículos constroem suas narrativas, instituindo diferentes contratos de leitura e complexificando os lugares constituídos por eles. “Cada vez mais, o jornalismo fala para o público de suas próprias operações, enquanto regras privadas de realidade de construção do que, necessariamente, da construção da realidade, produzindo uma espécie de enunciação da enunciação”, avalia Fausto Neto.
DRAMA E FICÇÃO
Sobre a midiatização da ciência, o linguista francês Patrick Charaudeau observa uma mudança importante que pode ser pensada para outras áreas do conhecimento tratadas pela mídia. De uma perspectiva pedagógica do discurso da divulgação, criado para explicar o fato, o contrato instituído pela midiatização é regido pela lógica da credibilidade e, sobretudo, da captação (que dramatiza a informação). “Muitas vezes, a lógica da captação sobressai-se à lógica da credibilidade. A ênfase no dramático seria uma forma de captar a maioria da audiência, ao invés de mostrar o aspecto sério, com base na presunção de que, ao mostrar o demasiadamente sério, perderia a audiência”, diz Charaudeau. “É esse o risco do populismo: apresentar a ciência como uma aventura leva o público a acreditar na ilusão do saber, quando, na realidade, não se explica nada”, diz.
No livro La médiatisation de la science (A midiatização da ciência), organizado por Charaudeau, ele aponta quatro exigências relacionadas à organização enunciativa do discurso da midiatização: visibilidade, legibilidade, seriedade e emotividade. A visibilidade diz respeito à seleção dos assuntos suscetíveis de ter maior impacto imediato na vida das pessoas, podendo ser observado na apresentação iconográfica, bem como nas estratégias de titulação. Já a legibilidade é marcada por duas características específicas: a simplicidade na construção linguística, a fim de tornar o fato mais fácil de ser “digerido”, e a figurabilidade por meio da disposição dos elementos verbo-visuais para uma compreensão mais imediata.
A seriedade, por sua vez, joga, em alguns momentos, com os mesmos procedimentos da legibilidade, só que funcionando como argumento de autoridade. Por último, a emotividade busca privilegiar os efeitos afetivos por meio de determinados procedimentos, tais como uma iconografia montada de tal forma, que produza um efeito insólito ou de ameaça, um jogo de títulos e subtítulos dramatizantes.
“Hoje, a atenção do outro é a coisa mais cara e isso é muito difícil de obter. Mas desde o início do jornalismo foi assim. Na verdade, o texto jornalístico compete e se esforça para pegar psicologicamente o outro. Assim, não é a melhor argumentação racional que atrai, mas aquela capaz de captar a atenção. Isso vem se tornando cada vez mais intenso, mais forte. Como é que eu capto a sua atenção? Se eu for mais resumido, mais claro, mais simples, mais esquemático e mais atraente em termos do que eu digo”, diz o professor Muniz Sodré.
Ele faz uma diferenciação entre o jornalismo impresso, ainda comprometido com a identidade do fato, e o jornalismo eletrônico, que vai perdendo de vista essa referência ao real e entrando na esfera da ficção, necessária para construir essa realidade segunda, que é a da midiatização. “O diferencial da retórica midiática é que, mais do que nunca, ela é pathos, que representa o emocional, e não o logos, que tem a ver com a razão. O importante não é o que se diz, não é a semantização do fato em si. O importante é a conexão. Esse é o êxtase, sobretudo da mídia eletrônica”, ressalta Sodré.
MARCELO ROBALINHO, jornalista, mestre em Comunicação e doutorando em Comunicação e Saúde.