Arquivo

“Ele passou-me a crença na arte como vital”

A carioca Vera Pedrosa conversa com a Continente e refaz lembranças e comenta o legado do pai, o pernambucano de Timbaúba Mário Pedrosa

TEXTO Olívia Mindêlo

01 de Setembro de 2015

Vera Pedrosa

Vera Pedrosa

Foto Bel Pedrosa/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Visuais" | ed. 177 | set 2015]

A carioca Vera Pedrosa é uma pessoa
a quem podemos atribuir diferentes predicados: diplomata, poeta, crítica de arte, defensora e gestora da cultura. Entre esses, no entanto, há um decisivo em sua vida: ser filha de Mário Pedrosa. Única filha, aliás, de um dos principais pensadores brasileiros do século 20, sobretudo no que concerne a reflexões sobre arte e política. Junto à família, Vera segue responsável pelo zelo e pela difusão da obra do pai, para ela um exemplo de solidariedade. A seguir, acompanhamos um pouco de sua fala sobre as memórias e as influências do pai, nascido em Timbaúba, Pernambuco, de onde partiu, ainda bem jovem, para o mundo afora.

CONTINENTE Vera, como era a sua relação com o seu pai?
VERA PEDROSA Meu pai foi de convívio estimulante, afetivo e jovial. Tinha hábitos simples, advindos da herança familiar nordestina austera e espartana. Em casa, mostrava-se alegre e brincalhão. O entorno doméstico era vibrante e nunca opressivo ou tedioso. Dava apelidos de pássaros do Nordeste aos familiares e aos netos, que o adoravam.

CONTINENTE Que memórias de sua vida com ele são para você cruciais?
VERA PEDROSA Foi um eterno otimista, de espírito aberto às conquistas e contradições da época. O diálogo corria livre e intenso à sua volta. Ouvia com atenção. Foram cruciais para mim muitos aspectos de sua personalidade: a sua integridade e coragem, o renascer das cinzas nos momentos difíceis em que o avanço da harmonia e da justiça social parecia perigosamente regredir a tempos de trevas. Não esqueço o entusiasmo na defesa de seus ideais, a rapidez de pensamento, a fina ironia. Penso que exerceu influência sobre artistas e intelectuais de seu tempo graças à qualidade do contato pessoal e à transmissão oral e direta de conhecimentos. Sabia abrir perspectivas sem imposição de rotas. Outra característica que o distinguia era a solidariedade humana, que se evidenciava tanto na ação política, como no convívio. Tendo atuado de forma pioneira numa sociedade eivada de arcaísmos, são ainda hoje impressionantes a sua antevisão e perspicácia.

CONTINENTE Quando passou a se interessar pelo trabalho de seu pai? Como foi descobrir Mário Pedrosa?
VERA PEDROSA Era impossível desinteressar-me de seu trabalho. Trabalho e vida se confundiam. Desde criança, acompanhava-o a museus, exposições e visitas a ateliês de artistas. No Rio de Janeiro, adolescente, era convocada a comparecer a vernissages, a assistir a reuniões e debates. Atuei como secretária em circunstâncias nas quais minha mãe estava impedida de fazê-lo. A não ser quando me refugiava a portas fechadas para estudar, vivia numa casa em que era raro o dia sem a presença de visitantes com interesses culturais. Lembro-me de ter sido convidada a vê-lo organizar o que penso haver sido a primeira mostra individual de Volpi no Rio de Janeiro, no tempo em que o Museu de Arte Moderna (MAM) estava instalado nos pilotis do prédio do então Ministério da Educação.

CONTINENTE Ele falava de Timbaúba? Que lembranças, observações e sentimentos tinha ele sobre Pernambuco e o Nordeste?
VERA PEDROSA Orgulhava-se de ser pernambucano e gostava muito de falar de Timbaúba e do engenho onde nasceu, Jussaral. As lembranças circunstanciadas eram mais de João Pessoa, onde a família se instalou sendo ele ainda criança. Seu pai, Pedro da Cunha Pedrosa, eleito senador pela Paraíba, veio morar com a família no Rio de Janeiro, quando Mário, despachado para estudar na Bélgica, foi parar em Lausanne, na Suíça, em decorrência do estado de guerra na Europa. Voltou ao Brasil para cursar a Faculdade de Direito no Rio de Janeiro. Era muito ligado à família. Sentia grande respeito e admiração pelos pais, e tinha muito carinho pelos irmãos e sobrinhos. Seus contatos com Pernambuco foram mais decisivos na idade adulta. Adorava o Nordeste, que considerava o fulcro da real brasilidade. Encantado com uma visita que fez ao Recife, em companhia de Aloísio Magalhães, dizia que sonhava ser vice-rei de Itamaracá “numa existência idílica antes dos tempos”. Lembro quando comentava que os brasileiros mais cultos e inteligentes que conhecia chegaram ao Rio “feitos e completos” do Nordeste ou do Norte e, entre outros, citava seus amigos Livio Xavier, Evandro Pequeno, Jorge de Lima e Jayme Ovalle.

CONTINENTE Você acredita, como ele, que a arte pode transformar o mundo? Por quê?
VERA PEDROSA Não sei se pensava que a arte movimentaria a dinâmica de transformação no sentido da superação das contradições e iniquidades da sociedade planetária. Passou-me a crença na arte como necessidade vital do ser humano, como possibilidade universal, suporte de realização individual ou coletiva, independentemente das circunstâncias de inserção social, tempo, cultura e civilização. Há quem lhe atribua, no final da vida, um desencanto com a arte. Acredito, antes, que nunca se desfez da percepção da inevitabilidade da arte. Achou-se descrente, em dado momento, de algumas manifestações que lhe vinham sendo apresentadas como de “vanguarda” e nas quais não identificava maior pujança. O conceito mesmo de “vanguarda” nas artes tornava-se relativo e talvez esgotado.

CONTINENTE Como podemos mensurar o legado de Mário Pedrosa?
VERA PEDROSA Não me sinto apta a mensurar o legado de Mário Pedrosa. Não me entendo bem com a palavra “legado”. Estou convencida de que a leitura de seus textos por quem ainda não os conhece será enriquecedora. Alguns dos artistas brasileiros que hoje alcançam projeção internacional, e cuja relevância artística continua atual, foram por ele estimulados em sua criatividade e desenvolvimento. Refiro-me a Lygia Clark, Helio Oiticica, Lygia Pape, Mira Schendel e outros. A obra de Lygia Clark acaba de ser exposta no Museu de Arte Moderna de Nova York (o MoMa) e Hélio Oiticica terá uma individual importante no novo Museu Whitney, na mesma cidade. 

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista e mestre em Sociologia pela UFPE.

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”