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Reedição: Encontro com Murilo Mendes

Tem início, este ano, o relançamento da obra do poeta mineiro. Entre os quatro tomos já publicados, encontra-se uma inédita 'Antologia poética'

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Novembro de 2014

Murilo Mendes

Murilo Mendes

Foto Divulgação

No texto escrito por Murilo Mendes para o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em 25 de julho de 1959, existe um fragmento que parece traçar uma ponte entre dois momentos importantes de resgate deste autor. No pequeno ensaio, ele desabafava: “Penso mormente na atual geração brasileira que conhece pouco meus livros, esgotados há vários anos; geração a que me sinto ligado por tantos motivos. Penso em certos críticos que às vezes apressadamente me rotulam de surrealista e hermético sem ter em conta que a minha obra mergulha as raízes da tradição, e que toda poesia válida é num certo sentido hermética”. Naquele ano, era a editora José Olympio que relançava a sua produção poética e, por esse motivo, ele foi convidado para escrever sobre o cenário literário do país e o seu lugar à mesa do modernismo brasileiro.

Em 2014, é a Cosac Naify que se empenha em dar visibilidade à obra de um escritor que, em vida, teve prestígio e relevância similar a Carlos Drummond ou Manuel Bandeira, mas muito menos lido nos dias de hoje. Antes disso, datava de 1994 a compilação mais recente dos trabalhos de Murilo Mendes, editada pela Nova Aguilar com o título Poesia completa e prosa. Iniciando a reedição do seu legado, a Cosac preparou para este ano as publicações Poemas (1930), primeiro livro do autor; A idade do serrote (1968), que rememora sua infância e adolescência em Juiz de Fora, cidade em que nasceu; e Convergência (1970), seu último livro publicado em vida, repleto de elementos concretistas. Completando os primeiros exemplares dessa coleção, os especialistas Júlio Castañon Guimarães e Murilo Marcondes de Moura também organizaram, sob a coordenação editorial de Milton Ohata, uma nova Antologia poética.

Com esses relançamentos, a crítica tem a chance de rever aquilo que o poeta considerou rótulos apressados “de surrealista e hermético”, uma vez que sua produção, tal qual a dos seus contemporâneos, abraçou o coloquialismo e o cotidiano, mas de forma singular e com uma profusão de imagens que ainda hoje gera estranhamento. Intelectual de amplo conhecimento da música e das artes plásticas, Murilo Mendes trazia esses elementos para sua criação não só como temas, mas também como norteadores da organização formal do poema, ora tão imagético quanto uma pintura, ora musicalmente potentes. Nesse último caso, o próprio escritor reconhecia a influência mencionada: “Certos versos meus são de alguém que ouviu muito Schönberg, Stravinski, Alban Berg e o jazz”.

Apesar de muito se falar no aspecto da diversidade e experimentação na obra do mineiro, é possível observar alguns eixos temáticos que se fazem presentes em quase todas as suas fases, como o já citado diálogo com outras expressões artísticas. Os deslocamentos geográficos e imaginários, por exemplo, são outra constante na sua escrita, que se tornam ainda mais frequentes quando o poeta, já com mais de 50 anos, passa a morar na Itália. Siciliana, Tempo espanhol e Contemplação de Ouro Preto não negam a experiência das viagens, que também se metamorfoseiam em versos como “Quando criança pretendia ir de Juiz de Fora à China a cavalo./ A viagem se completou./ Ninguém se deu conta./ Nem mesmo eu”.

Mas, sem dúvida, o tema que impregna sua obra de forma enfática, a partir do momento em que o poeta retorna à vida católica, é a religiosidade. Tal qual Adélia Prado, Murilo Mendes joga com a dualidade do sagrado e do profano, porém em forma muito diversa da proposta pela conterrânea. O que o torna uma figura peculiar na literatura brasileira é ser ele, justamente, esse lugar de religião e tradição, combinado com preocupações sociais e históricas sob o estigma de rebelde, insubmisso e iconoclasta.

Em termos de forma literária, muitos dos seus poemas considerados “surrealistas” ou, outras vezes, criticados pela necessidade de melhor aparo de arestas, carregavam intencionalmente essa proposta ruidosa. O especialista na obra do escritor e colaborador dos relançamentos Murilo Marcondes de Moura considera absurda a sugestão de uma negligência artesanal por parte de Murilo Mendes: “O que talvez devesse ser colocado é a forte vizinhança ou a quase fatalidade do inacabado, como se o impulso totalizante dessa lírica colocasse em crise a própria ideia de arredondamento harmônico”, defende o pesquisador, no posfácio da Antologia poética.

ESPECIAIS
Os relançamentos de nomes consagrados são sempre excelentes oportunidades de trazer um autor para o centro das discussões e apresentá-lo às gerações de leitores mais jovens. Já para aqueles que são familiarizados com os livros de Murilo Mendes, os textos complementares podem ser a principal novidade dessa coleção. A Antologia poética contém posfácios dos organizadores, fotografias em preto e branco do escritor e o texto A poesia e nosso tempo, assinado pelo próprio poeta. No entanto, essa mesma publicação foi lançada em versão especial, com capa dura e acrescida de um caderno de imagens pessoais e de sua coleção de arte particular, além de um CD em que o escritor lê oito textos.

O livro Poemas traz um posfácio de Silviano Santiago intitulado Poesia fusão: catolicismo primitivo/mentalidade moderna e duas cartas inéditas enviadas a Mario de Andrade, datadas de 1930 e 1931. Em A idade do serrote, consta uma crônica sobre o livro assinada por Carlos Drummond de Andrade, que foi publicada em 1968, no Correio da Manhã, seguida pela carta de resposta à apreciação. Ainda nessa edição, é possível conferir o posfácio O universo cortado em fatias, da professora de Teoria Literária da Universidade de São Paulo, Cleusa Rios Passos.

Encerrando os materiais complementares, temos, em Convergência, um texto inédito em português, escrito pelo crítico italiano Ruggero Jaccobbi, que foi o responsável pelas traduções de Murilo Mendes na Itália. 

GIANNI DE PAULA MELO, jornalista.

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