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Raul Bopp: Uma pele nova para 'Cobra Norato'

Edição bilíngue publicada na França acende o interesse, fora dos círculos literários, pelo mítico poema modernista dos anos 1930

TEXTO Saulo Neiva

01 de Agosto de 2012

A artista Sandra Machado assina ilustrações da edição francesa do livro

A artista Sandra Machado assina ilustrações da edição francesa do livro

Imagem Reprodução

A edição mais recente de Cobra Norato, longo poema narrativo do gaúcho Raul Bopp (1898-1984), data de 2005 e foi publicada na cidade francesa de Nantes. Trata-se de uma primorosa edição bilíngue e ilustrada dessa verdadeira micro-odisseia amazônica e modernista que foi lançada como uma das várias manifestações ligadas ao Ano do Brasil na França. Uma série de gravuras de Sandra Machado, que se inspira na arte caiapó para evocar passagens do poema, dá vida a praticamente cada página. À medida que folheamos o volume, percorremos primeiro a tradução de Ciro de Morais Rego, que ultrapassa com talento os inúmeros obstáculos da escrita boppiana, com suas onomatopeias, adjetivos insólitos ou verbos no diminutivo.

Em seguida, podemos ler os versos originais de Bopp, acompanhados de outras ilustrações. Uma breve apresentação da obra e do autor, além de um glossário – utilíssimo para o leitor estrangeiro – completam o livro. Descobrimos assim – primeiro em francês, depois em português – o percurso iniciático do herói que, após matar a Cobra Norato, com a astúcia de um Ulisses tupiniquim (“Brinco então de amarrar uma fita no pescoço/ e estrangulo a Cobra”), entra na “pele de seda elástica” dela para, por amor, arrastar-se até as terras do Sem Fim; ele sobrevive a diversas provas, peripécias e metamorfoses, com o intuito de liberar a filha da rainha Luzia do poderio da Cobra Grande.

O original e a tradução não aparecem “em espelho”, uma defronte da outra. É uma escolha editorial que, no começo da leitura, podemos até lamentar. Por que não deixar que o leitor confronte confortavelmente, verso após verso, o poema e sua tradução, colocando-os na mesma página ou, um na página da esquerda, outro na da direita? Por que isolar um do outro? Só aos poucos percebemos que o livro nos convida a travar outro tipo de relação com o texto e sua tradução. O que se quer aqui não é levar o leitor desde o começo a uma comparação progressiva do original com sua versão em língua estrangeira. E, sim, que ele desfrute inicialmente a tradução, ao lado das belas ilustrações de Sandra Machado, para em seguida se deliciar com o original e com outras ilustrações da mesma artista. No final, uma releitura do original em confronto com a sua tradução terá ainda mais sentido.

O livro, lido e relido assim, de cabo a rabo, nos guia por diferentes viagens, trajetos complementares em que vamos sendo levados por um triplo fio condutor, que é fornecido pelo poeta, seu tradutor e a artista. Viagens quase tão surpreendentes quanto a que conduz o protagonista do poema às paradisíacas terras do Sem Fim.

CAPAS RENOMADAS
Esta cuidadosa edição de Cobra Norato tem um mérito inegável por duas razões pelo menos. Antes de tudo, ela enriquece a história editorial de um texto que, ao longo das suas diferentes edições, se beneficiou de um tratamento gráfico privilegiado, com capas assinadas por artistas de renome, como o húngaro Zoltan Kemeny (1947) e o catalão Joan Miró (1954), além dos brasileiros Aldemir Martins (1956) e Poty (1973).


Trabalhos do xilogravurista Oswaldo Goeldi figuram na edição de 1937. Imagem: Reprodução

Duas outras edições merecem um destaque ainda maior. A primeira traz uma bela capa do artista e arquiteto Flávio de Carvalho, em que o vermelho e o verde dominantes contrastam com o preto dos contornos, dos detalhes e das letras, para apresentar uma figura feminina enigmática, cuja longa cabeleira sugere tanto a silhueta ondulada e negra da serpente quanto o fluxo agitado do rio. Já a belíssima edição de 1937, de 150 exemplares, ficou famosa por trazer letras capitulares e xilogravuras expressionistas em cores de Oswaldo Goeldi, artista que, em 1945, também ilustraria outro longo poema narrativo do Modernismo: Martim Cererê, de Cassiano Ricardo.

Segunda grande razão para nos debruçarmos com interesse sobre a edição francesa de Cobra Norato: através de uma tradução benfeita e com ilustrações de qualidade, ela tem colocado o longo poema amazônico entre as mãos do leitor francês leigo em poesia brasileira, divulgando-o para além do círculo exíguo de especialistas no assunto. O livro tem dado novo fôlego ao poema modernista, já que suscitou diversas iniciativas, dirigidas tanto a um público adulto quanto infantojuvenil. Foi o caso de leituras ou oficinas realizadas em bibliotecas, em geral para crianças, às vezes acompanhadas da exposição itinerante dos batiks usados por Sandra Machado para ilustrar o livro.

Outro exemplo de ações em torno da obra de Boop é o CD que o jornalista e compositor Frédéric Pagès lançou, em que musicaliza trechos da versão francesa de Cobra Norato, em cumplicidade com o percussionista Xavier Desandre-Navarre. A música de Pagès, que foi divulgada através de shows em diferentes cidades do país, pode ser consultada no site do artista. Ela recria o texto de Bopp e, ao mesmo tempo que assume um parti pris narrativo, baseia-se no burburinho “amazônico” do poema para envolver o ouvinte numa atmosfera sonora sugestiva.

Inspiradas em Cobra Norato, essas iniciativas vão divulgando aspectos da cultura brasileira em terras gaulesas, de maneira discreta mas segura. Poucos livros brasileiros tiveram esse tipo de circulação na França – ao mesmo tempo fecunda, discreta e constante. E nenhum outro poema brasileiro, em todo caso, recebeu tal acolhida.

INTERESSE E ENCANTO
Como explicar o interesse do leitor francês atual por esse poema escrito por um autor que o leitor brasileiro já se acostumou a tratar como um mero coadjuvante do Modernismo – seja por sua frequentação do grupo Verde-Amarelo, liderado por Plínio Salgado, seja por sua colaboração ativa junto a um movimento antropofágico estrelado por Oswald de Andrade? Como entender que, ao atravessar o Atlântico, o poema de Raul Bopp, que recorre a lendas e mitos da Amazônia, tenha seduzido o leitor pouco conhecedor do modernismo brasileiro, e que ignora as diferenças entre o verde-amarelismo e a antropofagia cultural?


Capa de autoria do desenhista e arquiteto Flávio de Carvalho.
Imagem: Reprodução

Sabemos que, quando lançado, o poema de Bopp foi recebido com entusiasmo por nomes célebres da nossa literatura: Oswald de Andrade julgou que, “pela primeira vez, se realizou a poesia brasileira grandiosa e sem fraude”; Jorge Amado viu em Cobra Norato “o maior poema que o Modernismo nos deu”; enquanto Drummond, duas décadas mais tarde, o considerou “o mais brasileiro de todos os poemas brasileiros”. Ora, apesar de tão louvado e de ter sido reeditado diversas vezes, Cobra Norato foi aparentemente relegado entre nós a um lôbrego limbo, em que convivem obras admiradas e citadas por muitos, mas que no fundo são parcamente lidas. Os outros livros do poeta tiveram destino semelhante, senão pior, já que, como lembra Augusto Massi, Bopp foi o último dos poetas modernistas cuja poesia completa foi reunida em um volume.

O que encanta tanto o leitor que descobre Cobra Norato? Ele é, antes de tudo, fisgado pela maneira como Bopp narra uma historinha com um forte teor mítico-lendário, criando uma atmosfera onírica e até mágica. O herói conta as suas próprias aventuras à medida que as vive e dialoga com os demais personagens, estabelecendo uma proximidade viva com um universo bastante fantasmagórico. Não temos nenhuma descrição detalhada ou realista do mundo exterior que ele atravessa – somente evocações inabituais que se sucedem, tanto de “sapos beiçudos” quanto de “rios afogados”, “águas defuntas” e “árvores grávidas”. Um universo também feito de ruídos e silêncios diversos que “se dissolvem”, “se escondem” e “se respondem”, num constante claro-escuro sonoro. Em suma, o personagem-narrador faz com que o leitor acompanhe e vivencie “por dentro” a sua trajetória em direção às terras do Sem Fim.

Mas o tipo de história contada e o modo como ela é enfocada não explicam tudo para se entender o impacto da obra. A preocupação de Bopp em burilar o seu texto é, provavelmente, o segundo segredo para o interesse que, apesar do tempo, o poema ainda suscita em nós. Depois de ter publicado trechos do poema em revistas e jornais a partir de 1927, ele lança a primeira edição integral em livro no ano de 1931. Desde então, a cada nova edição o autor emendou minuciosamente seus versos, até a nona, que data de 1973 e traz o texto considerado como definitivo.

O poeta reescreveu a sua saga ao longo dos anos com um grande zelo artístico, detalhe que, duas décadas após a primeira edição do livro, Drummond, que acabara de lançar o seu exigente Claro enigma, descreveu com entusiasmo: “Numa pesagem de miligramas, atento ao ritmo, ávido de precisão vocabular, cioso de composição, consciente enfim das obrigações literárias que o Modernismo aparentemente desprezava, mas a que, na realidade, não podia esquivar-se”. Preocupado em melhorar a sua obra, Bopp detém a chave, para que ela não fique toscamente presa ao contexto imediato do Modernismo, como explica o poeta de Itabira: “O velho livro de versos modernistas, aparentemente tão datados, ressurge em toda sua novidade, e o amadurecimento do poeta mais o apurou”.

A edição francesa do poema trouxe uma contribuição importante para a história desse “velho livro de versos modernistas”, fazendo com que mais uma vez ele volte a ressurgir “em toda sua novidade”. Ela levou a poesia de Cobra Norato a um público que a desconhecia, vestindo-a com mais uma pele nova. Tomara que, assim, contribua para que o leitor brasileiro redescubra algumas facetas injustamente esquecidas da arte de Raul Bopp. 

SAULO NEIVA, professor de Literatura Brasileira e Portuguesa na Universidade Blaise Pascal.

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