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O rio como espaço a ser ocupado

Entusiastas do Capibaribe mantêm as suas águas frequentadas, com a prática do remo, as travessias e a realização de projeto de consciência ambiental

TEXTO Olivia de Souza

01 de Fevereiro de 2013

Seu Mita mantém a tradição familiar e faz o transporte de passageiros entre a Torre e a Jaqueira

Seu Mita mantém a tradição familiar e faz o transporte de passageiros entre a Torre e a Jaqueira

Foto Chico Ludermir

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 146 | fevereiro 2013]

Era praticamente impossível enxergar
a boneca gigante em meio àquele entulho de lixo que boiava lentamente, margeando o Capibar a uma distância considerável. Apenas duas pernas compridas apontando para fora da água indicavam o tamanho da criatura. “Ali, mulher! Tá vendo?”, insistia Socorro, sem esconder a empolgação. “Essa daí já passou não sei quantas vezes aqui na frente e eu nunca consigo pegar. Deixa eu ver se agora vai”, comentou, antes de descer as escadas correndo para agarrar, o mais depressa possível, o gancho de ferro preso a um tubo gigante de PVC, gambiarra utilizada para retirar objetos descartados no rio, que passam por ali eventualmente. Resgate tenso e complicado, tendo em vista o fato de o objeto continuar em movimento, e o risco de se cair dentro da d’água. Com paciência, perseverança, precisão, Socorro finalmente conseguiu prender a ponta de ferro no antes tão delicado vestido rosa da bonequinha, e puxá-la, feliz e satisfeita, para o chão seco do bar.

Moradora do local há 32 anos, Maria do Socorro Cantanhede já se habituou a realizar esse tipo de salvamento. A boneca é mais um ganho que fará parte da decoração do Capibar, recanto localizado na Zeis (Zona Especial de Interesse Social) Vila Esperança/Cabocó, às margens do rio Capibaribe, no Bairro de Monteiro, Zona Norte do Recife. Além de servir ao seu propósito, o lugar também é a sede do Projeto Recapibaribe, idealizado por ela e o marido, André Cantanhede. A iniciativa partiu da insatisfação do casal com as condições péssimas do rio. O espaço, já com 19 anos de existência, é totalmente decorado por objetos como garrafas PET, pneus e latinhas, e também conta com um enorme “orelhão”, aparelhos de televisão, máquinas de costura, capacetes de motociclistas (mais de 100, no total), entre outros utensílios, todos retirados do rio.

A iniciativa surgiu depois da proprietária trabalhar por nove anos como barraqueira de praia, quando então partia de casa para a Zona Sul da cidade, observando o grande fluxo de pessoas que usufruíam aquele bem natural, em detrimento de um rio que permanecia esquecido, e cada vez mais sujo. “O Capibar é o espaço em que transformamos o lixo do rio numa arte crítica, um lugar no qual as pessoas podem se sentir mais humanas em relação ao meio ambiente.” Filha de pescador de areia, e moradora desde os 10 anos de idade das comunidades ribeirinhas, tanto da margem esquerda, quanto da direita, Socorro desenvolveu uma relação bastante íntima com o Capibaribe, desde cedo, dedicando sua vida profissional também a ele.

“Tomei muito banho aqui. Gostaria de um dia poder voltar a enxergar meus pés dentro da água, essa é uma das coisas de que tenho mais saudade. Eu entrava com ela mais ou menos até o joelho e podia enxergar meus pés em cima da areia ou de algumas pedrinhas que existiam no rio na minha adolescência”, confessa. Conseguindo unir os três pilares da sustentabilidade – o social, o ambiental e o empresarial –, ela realiza um trabalho de “pesca” da consciência ambiental junto à comunidade: recebe grupos de estudantes, oferece palestras, entre outras ações feitas com o intuito de sensibilizar a população. Uma das mais importantes é a campanha realizada anualmente no dia 24 de novembro, Dia do Rio, quando pescadores de colônias de diversos pontos do Recife como Brasília Teimosa, Pina, Olinda, e Ilha do Maruim, se reúnem numa gincana de coleta de lixo. Em 2012, foram 42 participantes, totalizando três toneladas de lixo coletado. “A questão de transformar a nossa área numa Zeis foi fruto de um trabalho totalmente direcionado em respeito ao Capibaribe, pelo fato de vivermos numa comunidade de área ribeirinha. Começamos então a fazer um trabalho de limpeza com a Emlurb, e implantamos a coleta seletiva. Hoje, praticamente ninguém joga lixo no rio por aqui”, declara.


Socorro Catanhede, dona do Capibar, mantém projeto ambiental. Foto: Divulgação

Numa cidade totalmente entrecortada por rios, e que cresceu e se desenvolveu em função do Capibaribe, cabe perfeitamente a ele o posto de coração da cidade. “O descaso permite uma política de verticalização às margens do rio, sem nenhuma educação ambiental, nem consciência. Os responsáveis pelos projetos habitacionais permitem o despejo de toda a carga de esgoto dentro do rio. Estamos de passagem aqui por esse mundo, e ele vai permanecer, por isso nós é que devemos nos adaptar ao Capibaribe, e não o contrário. Se ele morrer, o Recife morre junto.”

REMADAS
Um dos esportes mais tradicionais da cidade, o remo vem, paulatinamente, perdendo o glamour de tempos passados, prejudicado pelo alto grau de poluição do Rio Capibaribe, que causa mau cheiro e desestímulo aos praticantes e simpatizantes. Ex-atleta e atual coordenador do departamento de Remo do Sport Club do Recife, Marcos Souza tem o rio como parte de sua rotina diária – são mais de 40 anos dedicados ao esporte –, tendo testemunhado diversas mudanças durante esse período. “A qualidade da água não era tão boa, mas muito melhor do que é hoje. Já cheguei a avistar botos nadando próximo à gente. A diferença grande é que, da época que remei (década de 1970), até 20 anos atrás, quase não se via o mangue às margens do Capibaribe. Foi feito um trabalho de replantio, e ele floresceu bastante, mudando a qualidade da água impressionantemente”, aponta. As raízes desse ecossistema funcionam como um filtro de retenção de sedimentos, e somado à sua alta concentração nas margens do rio, influi positiva e negativamente na cidade, segundo ele. “Melhora muito a visibilidade do rio, deixando-o mais bonito, no entanto, esconde muita sujeira, pois acumula todo o lixo nas margens. Quem está do lado de fora não vê”, revela.

Com apenas três equipes na cidade – Sport, Náutico e a Liga Pernambucana de Remo e Canoagem –, o remo tem perdido seus atletas para outros esportes que não necessitam do contato com o rio. “Com certeza, o alto grau de poluição afugenta os praticantes. Tem pessoas que chegam e se deslumbram com a beleza do nosso esporte, mas ao se depararem com animais mortos passando, dejetos e o mau cheiro, desistem. E fatalmente o atleta tem que ter contato diário com o rio. É um elemento complicador, embora nunca tenhamos documentado alguém doente por conta da qualidade da água.” No entanto, apesar dos problemas apontados, o esporte proporciona um contato inigualável com a natureza, oferecendo aos seus praticantes o privilégio de poder sentir a cidade através do olhar de quem passa e observa, lenta e atentamente, suas diversas nuances, camadas, mazelas, e (por que não?) belezas. “O Recife é muito bonito de se ver de dentro do Capibaribe. Vivo dentro do rio há praticamente 40 anos, e mesmo com toda a sujeira, ainda me surpreendo com o raiar do dia. Com maré cheia, então, fica mais bonito ainda”, confessa Souza.


Família de Seu Mita (no centro, sem camisa), durante a construção da casa na beira do rio. Foto: Reprodução

TRAVESSIAS
Quem passar rapidamente pelo calçadão da Avenida Rui Barbosa – na altura do Parque da Jaqueira –, sem reparar na imensidão das águas do Capibaribe, não vai perceber o pequeno barquinho azul localizado do outro lado da margem, no Bairro da Torre. Também não vai saber que, entre pontes e viadutos, se encontra ali um dos atalhos mais agradáveis para os moradores dos edifícios e casas do entorno, que facilitam a vida de quem quer pegar um caminho mais rápido para o centro da cidade, a um custo baixíssimo. Zomilton Tomé Porangaba, mais conhecido como Seu Mita, de 63 anos, é o dono do pequeno “sítio”, que começou há 80 anos com seu avô, chamado de Manoel da Bal, na região.

São dois barcos a remo, “Samaritana” e “Sayonara” (ambos registrados na Capitania dos Portos), revezando-se na travessia que já entrou para a história da cidade. Enquanto muitos barqueiros da cidade se aposentaram ou trocaram de profissão, desestimulados pela criação de pontes e linhas de ônibus que diminuíram severamente o número de passageiros, a família de Seu Mita continuou o negócio, hoje dividido com o filho mais velho, Antônio Marcos, o Marquinhos. O serviço funciona de 5h30 às 20h, fazendo cerca de 60 viagens por dia a R$ 1 cada.

Criado ali nas margens do rio, na pequena “prainha”, localizada entre a antiga fábrica da Torre (hoje Conjunto Residencial Privê Bosque da Torre) e o Hospital Evangélico, Zomilton foi testemunha do rápido processo de urbanização do Recife, e da consequente degradação de seu maior cartão-postal. “Já tomei muitos banhos nesse rio, mergulhava para tirar areia dele, pegar camarão, peixe. Peixe ainda dá, o que mais vem é o camurim, mas os que pego hoje em dia vêm com gosto de cloro, detergente, por conta do despejo do lixo no rio”, comenta.


O remador Marcos Souza viu qualidade da água mudar nos últimos 40 anos.
Foto: Reprodução

Ele acredita que as obras de dragagem do rio Capibaribe, iniciadas em janeiro, podem melhorar um pouco a situação. O projeto do governo do estado prevê a criação de sete estações de transporte hidroviário. A primeira etapa consiste na recuperação de 17 quilômetros do rio, desde a BR-101, até o limite entre o Recife e Olinda, para a circulação de 12 embarcações que farão o transporte da população entre os bairros de Santana, Torre, Derby, área central do Recife, e Tacaruna. “Já houve muitas promessas para limparem o rio, mas agora parece que estou um pouco mais perto de ver realizado esse sonho”, comenta o barqueiro, que, por conta disso, ainda não sabe como ficará a situação do seu negócio. “Não posso entregar isso aqui de mão beijada, depois de 80 anos por aqui. Além do mais, não estou ilegal, meus barcos são registrados pela Marinha, deve haver algum acordo”, afirma.

A pequena casa de alvenaria, onde já morou, hoje serve como ponto de apoio. Seu Mita, que praticamente nasceu dentro dos barcos, pois a mãe, mesmo grávida dele e dos irmãos, rendia o pai durante os almoços, sempre se emociona quando fala do Capibaribe. “Esse rio, pra mim, é a minha vida. A gente chamava essa área do mangue que fica por trás do hospital de ‘Copacabana’, porque a areia era bem branca e a água bem limpinha. Corríamos atrás dos botos que nadavam aqui na frente”, afirmou o barqueiro, que, para complementar sua renda, realiza passeios um pouco mais longos com passageiros interessados em conhecer outros trechos do rio, da foz até a Várzea.

Outros serviços semelhantes são realizados por barqueiros e por companhias maiores. Na altura da Companhia Industrial de Vidros, na Várzea, uma pequena balsa presa por uma corda de um lado a outro do rio faz a travessia. Já a Marola Travessias, empresa de propriedade de Felipe Santos, atravessa do Marco Zero até o Parque das Esculturas em duas embarcações de madeira (baiteiras), com capacidade para quatro pessoas, a R$ 15. Duas empresas maiores oferecem passeios longos em catamarãs de fibra de vidro. A Veneza, capitaneada por Lydia Kelly, embarca 40 pessoas, começando no Marco Zero. A viagem é acompanhada por uma apresentação musical ao vivo. A Catamaran Tours, atuando no mercado desde 2000, possui dois barcos, com capacidade para até 120 pessoas, com embarque no Cais das Cinco Pontas. A proprietária, Solange Britto, confirma que a maior parte do público é de moradores locais. “São recifenses trazendo pessoas de fora e são as pessoas daqui que mais valorizam o passeio. Ficam comovidos, surpresos, passam a ver a cidade com outros olhos.” 

OLIVIA DE SOUZA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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