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O humor nos tempos de cólera

TEXTO Miguel Falcão

01 de Julho de 2011

Ilustração Miguel Falcão

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 127 | julho 2011]

Em plena virada do milênio,
estávamos às voltas com uma epidemia do cólera. A ironia de uma doença com um ranço tão medieval, fazendo vítimas no limiar do século 21, deixava indóceis os cronistas da imprensa, que se encolerizavam com o secular descaso das autoridades com a saúde pública, em geral, e com o saneamento básico, em particular. E nós, chargistas, claro, também éramos frequentemente agraciados com motes e temas para os calungas nossos de cada dia. E eu, além do mote, fui contemplado também com um episódio que beirou o surreal.

O cólera, se não chega a ser assim uma peste negra, que dizimou um terço da população da Europa, no início da Idade Média, é uma doencinha muito chata, que deixa o freguês feito um rei, sentado no trono o dia todo, e, se der bobeira, vai ele também de água abaixo e entra pelo cano desta para melhor. Não é transmitida nem por vírus nem por bactéria, mas por um vibrante vibrião que se esconde nas cascas das frutas e verduras, e que só morre se a diligente dona de casa lavar as mesmas ditas cujas numa sherlockiana solução a 7% de água sanitária diluída numa bacia d’água. Talvez até menos que 7%, mas, ainda assim, haja água sanitária para lavar tanta fruta e verdura do almoço de todos os dias. E quem tinha restaurante ou lanchonete, coitado, não podia se dar ao luxo de arriscar não lavar, pois poderia se tornar conhecido como o vendedor da refeição “jesus-me-chama”.

Aí é que entram na história os nossos gloriosos políticos, pois o pânico já havia se generalizado e instalou-se um clima de apocalypse now. As populações carentes, sempre elas, não tinham dinheiro para comprar nem as verduras, quanto mais a água sanitária para lavá-las, e alguns vereadores tiveram a brilux ideia de distribuir água sanitária de graça para a população carente, a fim de que esta não ficasse assim tão carente – pelo menos, não de água sanitária. Mas, com um significativo detalhe: a garrafa de água sanitária trazia colado, à guisa de rótulo, um singelo “santinho” do vereador.

Foi uma festa. O Ministério Público caiu em cima e a imprensa jogou alface no ventilador, pois se aproximavam as eleições municipais e logo se farejou propaganda eleitoral ilegal.

Eu desenhei, e o Jornal do Commercio publicou, uma charge em que uma dona de casa, bem típica, com lenço na cabeça e sacola na mão, chega a uma venda e pergunta ao balconista:

-Seu Zé, tem água sanitária Ladrão?

-Não seria água sanitária Dragão, minha senhora?

-Não, é Ladrão mesmo, aquela que tem o retrato do vereador colado na garrafa.

No dia seguinte, quando cheguei à redação do jornal, já foram me dizendo que um sujeito tinha passado o dia todo ligando para mim. Pensei que era algum frila, fui cuidar da vida e esperar ele ligar de novo.

Daí a pouco me chamam para atender a uma ligação. Reconheci imediatamente a voz de bode rouco, que tinha ficado muito em evidência na televisão, uns tempos atrás:

-Aqui, quem está falando é o vereador Fulano de Tal. Foi você que desenhou a charge de hoje?

-Foi, sim senhor, fui eu mesmo.

-Pois prepare-se para matar ou morrer, seu canalha. Você atingiu a minha honra e me chamou de ladrão, e eu o desafio para um duelo. Escolha as suas armas!

Duelo? Ao pôr do sol no faroeste, feito Clint Eastwood e Randolph Scott? Ou seria mais um duelo medieval, com armadura, lança e cavalo, à Dom Quixote? Não ia eu agora discutir com um louco desse naipe, que o doutor disse para não contrariar.

-Que é isso, excelência, aquilo foi uma brincadeira...

-Eu exijo uma retratação, e só um de nós poderá sobreviver! Escolha as suas armas!

-Deixa isso pra lá, excelência, eu não me referi especificamente ao senhor...

-Diga o dia e a hora, e escolha as suas armas, porque a minha honra eu vou lavar com sangue!

Aí também já era demais, que se dane o instinto de sobrevivência:

-E quem já viu sangue lavar alguma coisa? Não seria melhor lavar com água sanitária?

Aproveitei o momentâneo e apoplético silêncio do outro lado da linha para desligar. Passei algum tempo indo ao jornal olhando por cima dos ombros. Até o fechamento dessa edição, continuo vivo. 

MIGUEL FALCÃO, chargista do Jornal do Commercio.

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