Arquivo

Mark Sandman: Evocação do bardo

Há 15 anos, morria o compositor e músico, membro-fundador de uma banda de rock bastante peculiar, a Morphine

TEXTO Fernando Athayde

01 de Agosto de 2014

Mark Sandman

Mark Sandman

Foto Divulgação

Nos 10 anos de existência, terminados com a morte do líder e vocalista Mark Sandman, em 1999, a Morphine gravou cinco discos e foi lembrada como um trio de rock sem guitarra, formada por um baixo de duas cordas, bateria e sax barítono. Na verdade, a banda, muito além dessa configuração pouco usual, foi o epicentro de uma ruptura da forma de produzir, tocar e, sobretudo, escrever canções.

Sandman, detentor de uma grande sensibilidade poética e de uma percepção encantadora da natureza, relacionava-se com a arte simbioticamente. Ele necessitava dela da mesma forma que ela o possuía a todo instante. Como mostrado no documentário Cure for pain: the Mark Sandman story (2011), de Rob Gordon Bravler, o músico era uma pessoa fechada, cujas grandes dores nunca foram confidenciadas a um ombro amigo – algo constatado com o melancólico depoimento do saxofonista Dana Colley, que, mesmo sendo uma das pessoas mais próximas a Mark, levou décadas para descobrir que o companheiro havia perdido um irmão mais novo também saxofonista quando jovem.

Assim, ao nos depararmos com versos como “All around the world/ No one understands me/ No one knows what I’m trying to say/ Even in my home town/ My friends make me write it down”, de You speak my language, a relação de mutualismo que impulsionava a forma de trabalhar do compositor fica clara. A canção era o mecanismo que cadenciava suas emoções mais intensas e o mantinha em paz.

Morphine, por assim dizer, é exatamente o resultado da união fundamentada na troca entre o extravasamento psíquico do artista e a própria vida atribuída ao organismo instável que é a arte. A formação da banda, na verdade, é o reflexo disso. Em algum ponto de sua carreira, Sandman, indagado sobre o porquê de tocar um baixo com apenas duas cordas, responde: “Eu comecei com apenas uma. Numa corda só já é possível encontrar todas as notas musicais”. É óbvio. É tão óbvio que ninguém nunca havia percebido.

Platônica, a música da Morphine representa, antes de qualquer aparência, uma visão essencial daquilo que é necessário à sobrevivência da própria música: o som. Quase caminhando em paralelo aos 40 anos do rock’n’roll que o precederam, o trio era visual e sonoramente tudo aquilo que ninguém jamais imaginou, mas cujo espectro sonoro ainda hoje nos transporta para um estado de admiração instantânea. Um pulso que nos leva ao inconsciente auditivo.


Banda norte-americana Morphine era formada por Mark Sandman (voz e baixo), Billy Conway (bateria) e Dana Colley (sax). Foto: Divulgação

E se o grupo era completado pela alternância entre Billy Conway e Jerome Deupree, na bateria, e pelo virtuosismo de Dana Colley, que por vezes tocava dois saxes ao mesmo tempo, é digno situar que a importância de Sandman na banda transcendia a densa e psicanalítica verdade que o fazia viver. Como instrumentista, ele era genial. Ao longo dos cinco discos que a banda gravou, o baixista e vocalista incorporou ao gênero, denominado por ele mesmo de “low rock”, elementos e sonoridades da música oriental, equipamentos customizados à mão e dissonâncias calcadas em uma infinidade de técnicas e ruídos produzidos sob a total entrega à música e aos processos criativos de composição e gravação.

Mark, que costumava utilizar um slide para tocar alguns arranjos de contrabaixo e frequentemente processava sua voz através de um microfone específico para a captação de gaita, chegou a gravar, produzir e mixar o último álbum da Morphine, intitulado The night e lançado postumamente em 2000. O disco legitima o legado deixado à eternidade na noite do dia 03 de julho de 1999, quando Sandman caiu morto em pleno palco da primeira edição do festival Nel Nome del Rock, em Palestrina, nos arredores de Roma.

A morte dele, intensa como foi a própria vida de alguém que decidiu sair de casa ainda muito cedo por não aceitar a visão de mundo dos pais, e viveu sete anos migrando de um país para outro, é um marco na história da música. Talvez não soe tão apoteótica e catártica quanto o suicídio de Kurt Cobain, ou o misterioso óbito de Jim Morrison, mas é o desfecho que condiz com a aura que permeia a obra.

Terceiro filho morto dos quatro de Guitelle Sandman, que viria a contar sua história através do excruciante livro Four minus three: a mother’s story (Quatro menos três: a história de uma mãe), em 2007, Mark Sandman viveu quase 20 anos a mais que os cabalísticos 27 dos rockstars e nunca atingiu o sucesso absoluto no mundo inteiro. Como ele mesmo escreveu na letra de Super sex, última canção que começou a tocar antes de morrer,“Yes, hello, my name is Mark/ I’m not rich/ I’m not super star”. 

FERNANDO ATHAYDE, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

Publicidade

Banner Prêmio Cepe

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”