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Fotografia: Uma abertura para o mundo

Com o projeto Windows of the World, que já passou por diversas cidades, o português André Vicente Gonçalves registra as mais diversas culturas através das janelas

TEXTO Daniela Lacerda

01 de Março de 2016

Coleção de Veneza é rica em texturas

Coleção de Veneza é rica em texturas

Foto André Vicente Gonçalves

Metafórica em essência, a janela é tema recorrente no universo da arte, abrindo-se a um panorama de interpretações e reflexões geralmente associadas à ideia de passagem. No trabalho de André Vicente Gonçalves, ela se basta: não é percurso, e, sim, destino. O olhar não atravessa, para. Não importa o que está além, mas a fronteira. O fotógrafo português já clicou quase 4 mil delas em diversas cidades europeias. E o projeto – de vida – é alargar o olhar até contar com registros de todos os países.

André Vicente é autor de Windows of the World, conjunto de ensaios sobre janelas que começou a ser publicado no site do fotógrafo, em meados de 2015, e logo viralizou. O trabalho chamou a atenção da imprensa e foi apresentado em diversas publicações e continentes, incluindo títulos como CasaVogue, CNN, The Telegraph e The Washington Post – ele conta que, nas primeiras semanas, chegava a receber cerca de 15 solicitações de entrevista por dia. “É uma forma diferente de viajar. Tento captar a identidade de cada região a partir de suas janelas”, define. No momento, há 20 álbuns online: Albufeira, Atalaia, Ericeira, Évora, Guimarães, Lisboa, Montemor-o-Novo, Porto, Santa Susana, Sesimbra e Vendas Novas (em Portugal); Burano, Veneza e Trento (na Itália); Barcelona (na Espanha); Bucareste (Romênia); Londres + Notting Hill (Reino Unido); Alpes europeus (duas colagens).

Antes de partir, o fotógrafo faz uma pesquisa sobre a cidade, identifica elementos típicos da arquitetura local e escolhe um deles como guia – em Lisboa, por exemplo, o ponto de partida foi o azulejo. Em cada viagem, chega a fotografar de 100 a 200 janelas por dia, uma a uma, na luz da manhã e da tarde. “Costumo me afastar da parte turística; o que dá mais prazer é descobrir a cidade como ela é”, afirma. Nesse enveredar, a percepção inicial incorpora novos olhares e sentimentos, que tanto podem render ensaios extras (o bairro de Notting Hill, em Londres, acabou ganhando uma série exclusiva), como modificar o enredo original, passando a funcionar como fio condutor. “Não há nenhum conjunto que chegue do princípio ao fim com aquilo que eu tinha imaginado. Às vezes, tenho uma ideia com relação a uma cidade, mas, quando olho todas as fotografias, vejo que há um padrão no qual não tinha pensado anteriormente e que faz mais sentido.”

O processo de edição consome, usualmente, três semanas. André Vicente desloca as imagens escolhidas para uma fachada fictícia com 32 janelas (e apenas janelas): quatro na vertical, oito na horizontal, avizinhadas de acordo com suas cores, traços, texturas. São essas composições, chamadas de coleções, que ele apresenta ao público. Inicialmente, o trabalho só podia ser visto na plataforma digital, mas novas frestas foram se abrindo. Em agosto de 2015, realizou uma exposição em Brasov (Romênia), durante a terceira edição do festival de cultura urbana Boehmian Square. Neste 2016, planeja lançar o primeiro livro do Windows of the World, focado apenas em Portugal – se tudo der certo, cada país clicado pelo fotógrafo ganhará uma versão impressa. O projeto também se materializa em painéis montados para clientes, que podem ser encomendados no site, e assim passa a viajar independentemente do autor, redesenhando o mapa inicialmente traçado.

Esse reconfigurar de rotas e desejos é familiar para André Vicente. Natural do Alentejo, no Centro-Sul de Portugal, ele cursou Engenharia Informática na cidade de Évora, onde nasceu, e estudou alguns meses em Trento, na Itália, por meio de um programa de intercâmbio. Talvez o curso fosse mais interessante por lá, disse a si mesmo. Não era. Decidiu ter uma conversa com os pais, matriculou-se numa nova graduação, dessa vez em Fotografia, e começou a trabalhar como freelancer para publicações de vários países, muitas vezes associando as demandas profissionais à paixão por viagens, por aventura, pela natureza e, claro, por janelas.

“Reuni as milhares de fotos que havia feito de acordo com cada cidade ou região e comecei a criar as coleções que deram origem ao projeto Windows of the World. O resultado é um estudo sobre arquitetura e estética urbanas, salientando a singularidade das janelas mundo afora”, explica André Vicente, na apresentação da série em seu blog.

Para nós, espectadores, é como se, ao emoldurar tão assertivamente o nosso olhar, o fotógrafo nos instigasse a fantasiar, conjecturar, supor. Porque embora funcione, em certa medida, como um registro documental, o projeto satisfaz menos a curiosidade e mais o deleite visual e mental. Não se aprofunda, nem pretende, na história de cada cidade, estilo, endereço, janela. Apenas sugere e suscita: a vontade de contemplar, de pesquisar, de visitar ou de simplesmente divagar pelas possibilidades insinuadas em cada imagem, isoladamente ou como parte do mosaico desenhado por André Vicente. Talvez resida aí, na provocação às aventuras intelectuais do espectador e nessa “rancièriana” autonomia do imaginário, a mais luminosa superfície do projeto. 

DANIELA LACERDA, jornalista.

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