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Blanche: O impressionista tardio ressurge

Pintor subestimado pela História da Arte ganha exposição e primeira publicação de estudo de sua obra

TEXTO Eduardo Duarte

01 de Março de 2013

Lucie Esnault foi retratada pelo pintor em cinco fases de sua vida

Lucie Esnault foi retratada pelo pintor em cinco fases de sua vida

Imagem Reprodução

As delicadas dobras do vestido de musselina branca se acendem, quando um feixe de luz atravessa a janela do toucador de Lucie Esnault. O olhar acompanha o pincel, que dispõe sua modelo quase de costas, desenhando-a em S no meio da tela. Lucie Esnault devolve um olhar perdido, algo distante e triste. Um olhar que a lança fora do tempo, para além do quarto de vestir, fora da moldura da tela de Jacques-Émile Blanche (1861-1942). O olhar de Lucie é um discreto sinal de que o último impressionista não entraria para a história. Um olhar que a abstrai do presente e a lança a um tempo imemorial. Lugar onde Blanche habita, para além dos fatos do seu tempo.

Jacques-Émile Blanche é um artista a cujas obras muitos já tiveram acesso, tendo sido tocados por suas telas, mas que se mantém estranhamente desconhecido, como se aqueles fossem quadros sem dono. Como ele mesmo profetizou em 1921: “Daqui a 50 anos, serão vistos nos museus os retratos que eu terei pintado, de tantos escritores, meus amigos; e sobre o autor desses retratos não haverá um traço sequer em qualquer livro dessa época. Eu sou, talvez, o único artista da minha geração que não tem ao menos uma monografia sobre a obra”. Uma obra tardiamente impressionista, vinda de um autor completamente esquecido, não celebrizado pela história, pairando fora do tempo, como o olhar de Lucie Esnault, em seu toucador de tom azul macio, rodeada de vazias poltronas Luís 16. Por sua beleza melancólica e profundamente expressiva, ele nutria um forte fascínio, vindo a retratá-la ainda outras cinco vezes, em fases distintas de sua infância e adolescência. Lucie, sempre solitária, contemplava espelhos escuros, esquecida nos vãos pouco luminosos da mansão da família Esnault.

Jacques-Émile Blanche pintou dezenas de senhoras e cavalheiros da aristocracia francesa e inglesa, entre as décadas de 1880 e 1942. Personagens postos em elegantes vestidos e ternos, nos salões das famílias europeias. Filho de família abastada, Blanche sempre conviveu em ambientes culturais sofisticados e, aos 16 anos, decidiu que seria pintor. Mas como pintor era pouco, para quem era amigo e retratista de Stéphane Mallarmé, Henri Bergson, Marcel Proust, Henri James, Thomas Hardy, James Joyce, André Gide, Max Jacob e Paul Valéry. Foi também contaminado pelo desejo da escrita e, durante sua carreira, sobretudo no entre guerras, publicou mais de 40 livros, além de críticas culturais nos jornais parisienses e londrinos. Mas como escrever também lhe parecia pouco, para quem foi retratista e amigo de Debussy e Stravinsky, a música soprou-lhe a disposição de tornar-se um pianista de nível profissional.

RETRATISTA
Entretanto, como pintor gostaria de ter sido lembrado. Um exímio retratista que emocionou seu mestre Edgar Degas, num retrato ao final de sua vida. Degas costumava guardar o quadro em seu quarto, ao lado de sua cama, entre um Delacroix e um Gauguin. A grande herança dos mestres do Impressionismo se fez na luz de Jacque-Émile Blanche, que reconstruiu os cenários da belle époque completamente alheio às duas grandes guerras que destruíram a Europa e às vanguardas artísticas do início do século 20. Blanche sentia-se testemunha de uma outra dimensão do mundo e passava tardes discutindo volume e formas, na escultura e na pintura, com Auguste Rodin, a quem retratou posteriormente.


Pródigo retratista, Blanche pintou vários de seus contemporâneos, como o
escritor francês Marcel Proust. Imagem: Reprodução

Um pintor de costumes e temas clássicos que dedicava horas de suas composições a retratar naturezas-mortas em recantos vazios de salões, detalhes de toucadores, quartos espelhados, vasos com flores, mesas após a refeição, jantares em família, encontros de amigos. Quando levava seu cavalete às ruas, plasmava imagens de cruzamentos barulhentos, portos e ruas movimentadas de diversas cidades europeias em plena era moderna; partidas de tênis no sábado à tarde; passeios de barcos de senhoritas. Retratos... muitos retratos de centenas de rostos e costumes do final do século 19, até a metade do século 20. Jacques-Émile Blanche foi um artista que testemunhou grandes mudanças e modernizações, mantendo-se suspenso num tempo e aura específicos, numa atmosfera aromatizada pelos charutos ingleses, ao som do farfalhar de longos vestidos arrastados nos salões.

O artista de múltiplas habilidades também não cedeu à novidade da fotografia. Para ele, a fotografia era uma mera ferramenta que o ajudava nos seus estudos de composição e iluminação, com resultados impressionantes, como na corrida de cavalos da tela Le Derby d’Epson, que foi pintada a partir de uma foto. Ou nos retratos que fez de Jean Cocteau, Gilda Darthy e Vaslav Nijinsky. Artistas fotografados em seu estúdio e jardim, e em seguida transpostos para a tela em cenários distintos aos da fotografia, numa livre reinterpretação do autor.

Depois de quase 90 anos, o pintor teve a primeira monografia dedicada à sua obra: Jacques-Émile Blanche, de Jane Roberts, pela editora francesa Gourcuff Gradenigo. A autora conseguiu catalogar 1.500 telas produzidas por Blanche. Em homenagem, e concomitante ao lançamento dessa monografia, a Fundação Pierre Bergé-Yves Saint Laurent montou a exposição Jacques-Émile Blanche, un salon à la belle époque, no início deste ano, em Paris.

Uma lembrança sempre justa, mas que infelizmente não chega a introduzir seu nome no panteão dos grandes nomes da música, do teatro, da literatura e pintura da belle époque. Um espaço já romanceado na construção do imaginário e da memória do século 20.

Entretanto, o Blanche redescoberto é como entrar devagar no toucador de Lucie, sem ser percebido. Contemplar o leve azul das paredes e poltronas tocados pela força dourada da luz de fim de tarde e ser dragado pela força mística, quase hipnótica, do olhar de uma moça sentada entre cadeiras vazias. O mundo fez-se outro, mas, de alguma forma, Lucie continua lá, à espera de ser descoberta. 

EDUARDO DUARTE, jornalista, professor da UFPE, mestre em Antropologia e doutor em Ciências Sociais.

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