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A tradução como traço da memória cultural

TEXTO Denise Bottmann

01 de Julho de 2013

Ilustração Walter Vasconcelos

[conteúodo vinculado à reportagem de "Linguagem" | ed. 151 | julho 2013]

Quantos de nossos mais famosos autores
não traduziram obras estrangeiras para o português! Machado de Assis, por exemplo? Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, em circulação até hoje. Monteiro Lobato, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Rachel de Queiroz? E Lúcio Cardoso, Carlos Drummond de Andrade, Erico Verissimo, Mário Quintana, Millôr Fernandes? Todos eles e muitos mais colocaram a nosso alcance, em português, as obras de Shakespeare, Proust, Rilke, Lewis Carroll, Jane Austen, Dostoiévski, André Gide, Kipling, Jack London, Aldous Huxley...

Não é um ofício fácil, a tradução. Supõe conhecimento linguístico e literário, exige paciência e dedicação, demanda tempo. Lentamente, ao longo de 100, 150 anos, nossas bibliotecas podem ir se preenchendo com as obras do cânone ocidental em português acessível a todos nós, graças ao trabalho de tradução.

Em se tratando de uma obra estrangeira, para que o livro traduzido em português chegue ao leitor, é preciso, evidentemente, que uma editora o publique. Por vicissitudes várias da história do Brasil, apenas no século 20 é que o setor editorial tem um arranque em nosso país e passa a se desenvolver com solidez. E assim como há um arranque editorial, há também no entremeio algumas iniciativas oportunistas e inescrupulosas. A mais dolorosa e mais vergonhosa delas é o roubo de traduções já feitas e publicadas em alguma outra editora, brasileira ou portuguesa.

E como isso acontece? É simples, em sua desfaçatez: pega-se uma tradução já publicada, muitas vezes até esgotada, elimina-se o nome do tradutor e da editora inicial e publica-se a tradução, seja anonimamente, seja sob outro nome, fictício ou verdadeiro. Simples, não? Não é preciso pedir licença, nem dar nenhuma satisfação moral ou material à editora inicial, às vezes extinta, nem ao tradutor, às vezes já falecido. Quanto ao leitor, o que é que tem? Estando a obra em português, o que mais ele há de querer?

Não é uma prática nova. Já em 1903, vemos a editora H. Garnier, no Rio de Janeiro, publicar o primeiro livro de contos de Edgar Allan Poe no Brasil, sem dar o nome do tradutor, mas ostentando na página de rosto os dizeres “Traducção brasileira”. Ah, sim? Pois um leitor curioso não teria a menor dificuldade em reconhecer imediatamente a tradução feita pela romancista portuguesa Mécia Mousinho de Albuquerque, em 1889! Ou nos anos 1940, quando a editora Pongetti não tinha pejo em se apropriar de traduções feitas por Elias Davidovitch para a editora Guanabara e estampá-las sem qualquer licença ou autorização como “tradução revista por Marques Rebelo”.

E não eram apenas a H. Garnier ou a Pongetti a proceder assim: o Clube do Livro, desde os anos 1940 até finais dos anos 1980; a W. M. Jackson, também nos anos 1940 a 1960; a Cultrix e a Edigraf, nos anos 1950; a Hemus, nos anos 1970...

Mas é nos anos 1990 que essa prática adquire dimensões assustadoras, em quantidade de obras e em número de exemplares. Se, antes, a prática existia em alguns títulos esparsos do catálogo daquelas editoras, a partir de 1995, o Círculo do Livro e a Nova Cultural passam a encher as bancas de jornais e as vendas domiciliares com traduções espúrias de literatura e filosofia. E, a partir de 1999, a editora Martin Claret passa a publicar um número significativo de obras com fraudes de tradução. No caso das edições do Círculo do Livro e da Nova Cultural, em particular na coleção Obras-primas de 2002 e 2003, trata-se de tiragens altíssimas, cada uma delas de 70 a 120 mil exemplares em cada edição. No caso da Martin Claret, mesmo em tiragens mais modestas, tal problema afetou muitas dezenas, até centenas de traduções alheias publicadas sob nomes espúrios, em diversas reedições ao longo dos anos.

Como tais fraudes grassavam e prosperavam livremente, vemos, a partir de 2004, uma meia dúzia de outras pequenas editoras enveredar por esses descaminhos. Felizmente, a partir sobretudo de 2008, milhares de leitores, tradutores e docentes começaram a protestar por meio de manifestos e abaixo-assinados, houve denúncias ao Ministério Público, investigações e inquéritos, até que essa onda de aproveitamento espúrio de traduções antigas começou a ceder.

ALVO DAS FRAUDES
As obras mais afetadas nesse tipo de falsificação editorial costumam ser livros de saída certa e mercado garantido: na grande literatura universal, desde Homero a Shakespeare, Jane Austen e Oscar Wilde, e na história do pensamento, desde Aristóteles e Santo Agostinho a Schopenhauer, Nietzsche e Weber, tanto para o público em geral quanto para os cursos universitários de Ciências Humanas, Filosofia e Letras.

E qual o problema para o leitor? Para além da abominação ética e da má prática empresarial, muitas vezes acontece, a partir dos anos 1990, que o texto das traduções vem a ser adulterado, como maneira de procurar disfarçar a cópia.

É fato que algumas das fraudes são meras reproduções ipsis litteris da tradução legítima e, nesse sentido, o texto da tradução em si prossegue inalterado.

Em muitas das fraudes, porém, há tentativas de mascarar o uso ilícito, trocando palavras aqui e ali, adulterando o conteúdo e, em alguns casos, mesmo a coerência e inteligibilidade do texto. Há também casos de alterações ainda mais grotescas, resultando em passagens que não fazem o menor sentido, e outras ainda podem afetar conceitos centrais de um autor.

Contem-se também os casos de montagem de duas traduções diferentes, para compor uma terceira espúria, resultando numa obra de texto irregular, descontínuo e, às vezes, se não contraditório, um tanto disparatado.

Outro aspecto relevante para o leitor, quanto à identidade correta do autor da tradução, é um pouco mais sutil, mas nem por isso menos importante: mesmo para o leitor mais imediatista, faz diferença saber que tal tradução foi feita por Manuel Odorico Mendes ou por Monteiro Lobato ou por Lúcia Miguel-Pereira, sem dúvida – não só pelo valor das contribuições dessas pessoas ao nosso patrimônio cultural, mas também até para entender melhor aquele tipo de texto, aquele tipo de construção e uso da língua portuguesa, dentro de um quadro histórico muito específico e determinado. Uma tradução feita em 1870, ou em 1930, ou em 1940 carrega traços de sua época, o que ajuda o leitor a compor um quadro mais geral da cultura correspondente, em vez de supor que todas essas traduções teriam sido feitas em 2001, 2002 ou 2003.

Para concluir, vale a ressalva: uma tradução legítima não significa necessariamente que ela seja de boa qualidade. Porém, uma tradução espúria é sempre e necessariamente uma fraude.

Como as pessoas, em geral, não gostam de ser enganadas, há maneira de se precaver contra essas práticas inescrupulosas? Não há receita certa, mas alguns conselhos podem ser úteis: ao comprar um livro, é importante que o leitor verifique quem o traduziu. É recomendável sempre recusar toda e qualquer obra traduzida que não traga o nome do tradutor. E sempre fugir de traduções em nome de fantasmas como “Enrico Corvisieri”, “Pietro Nassetti”, “Jean Melville”, “Alex Marins”, “Leopoldo Holzbach”, “Peter Klaus Ivanov”, “Pedro H. Berwick”, entre outros – são sinais certos de fraude.

Por fim, como várias dessas obras pilhadas e saqueadas são traduções antigas e esgotadas, o melhor seria que um dispositivo previsto na legislação brasileira referente aos direitos autorais realmente entrasse em vigor: que essas obras de tradução órfãs e abandonadas passassem a ser de domínio público. O acesso a elas seria livre, qualquer editora interessada poderia publicá-las sem falcatruas. Dando os devidos créditos e nomes verdadeiros, os leitores não seriam ludibriados e a memória de nossa história cultural – que tanto passa pelo trabalho de tradução – seria mais bem-preservada. 

DENISE BOTTMANN, historiadora, tradutora e doutora em Filosofia da História pela Unicamp.

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