Lia Letícia sintetiza sua iconoclastia no Mamam
Tudo dá, que abre no sábado (27), reúne cerca de 30 obras, com curadoria de Clarissa Diniz, articulando várias linguagens, para questionar disparidades sociais, ecocídio colonialista e a própria arte como instituição
26 de Setembro de 2025
Foto Priscila Buhr / Tudo Dá / Divulgação
Radicada entre Recife e Olinda desde 1998, Lia Letícia é dona de uma ampla trajetória na qual inscreve a arte e suas práticas para além de seus muros e instituições mais oficiais. Ao longo desses anos, tem convocado camelôs, artistas de rua, usos não-especializados da ideia de arte e práticas políticas ativistas em seus trabalhos. Em articulação com a curadora Clarissa Diniz, a artista Lia Letícia apresenta, a partir do dia 27 de setembro, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), na Rua da Aurora, uma panorâmica com cerca de 30 trabalhos exemplares desta poética.
“A ideia de apropriação e subversão da frase ‘Nesta terra em se plantando, tudo dá’, também pode ser pensada como uma certa infidelidade que tenho quanto às categorizações da arte: minhas obras nascem de inquietações quanto a questões de vida, quais suportes e linguagens em que as proponho são fruto do que o trabalho pede. Nesse sentido, se é pintura, fotografia, performance… é essa provocação que vai definir. Tudo dá”, diz a artista.
Natural de Viamão (RS), Lia Letícia mora e trabalha em Pernambuco desde os anos 1990. Artista visual, cineasta, curadora, educadora, diretora de arte e produtora, atuante em diversas linguagens há quase três décadas em diversas regiões do país, a artista pensa seu trabalho autoral a partir de um campo ampliado da arte, na tensão entre práticas artísticas e a sua pretensa autonomia. Suas criações transitam entre festivais de cinema e exposições de arte. Seu mais recente curta, Mar de dentro, recebeu os prêmios de Melhor Curta e Melhor Direção no Festival de Brasília em 2025, e de Melhor Curta do Zózimo Bulbul de Melhor Curta, 2025. Nas artes visuais, nos anos 2000 integrou o coletivo Molusco Lama, explorando a pintura em diversos suportes, inclusive o audiovisual. Participou de diversas coletivas nacionais e internacionais, e realizou diversas exposições individuais.
Ao longo dessas décadas, Lia Letícia fez performance, pintura, objeto, instalação, vídeo, fotografia, intervenção, serigrafia, direção de arte, gestão de espaços independentes, ilustração, cinema, militância, cenografia, curadoria, educação. Sua prática nunca se restringiu a galerias e museus: ao contrário, esteve fundamentalmente lastreada nas ruas, sets de filmagem, comunidades, salas de aula ou mesmo em grupos de WhatsApp. “Não à toa, passaram-se muitos anos até que sua obra pudesse ser apresentada em conjunto numa instituição cultural de relevo: um gesto que, sem qualquer ambição de contemplar toda a sua trajetória, tem, entretanto, a intenção de compartilhar forças norteadoras de sua poética com os públicos do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães”, observa Clarissa Diniz.
A exposição das obras e a série de ações que compõem o projeto Tudo Dá, homônimo de uma das obras apresentadas, traz consigo singularidades do percurso da artista, tentando redimensionar e representar corpos que, de diversas formas, foram invisibilizados ou excluídos da história oficial da arte. Sua obra, portanto, problematiza a linguagem e o campo social da arte. “Através de uma atitude de desconstrução, esta situação evidencia os elementos que compõem o constructo social ‘arte’, expondo-os provocativa, irônica e humoradamente - revelando que, entre a genérica ‘arte’ como convenção social e os artistas em particular, bem como entre a crítica de arte como instituição, há um território de emergente diferenciação: o da subjetividade e da criação”, observa a curadora.
A mudança de Lia para Olinda há quase três décadas, como sublinha Clarissa Diniz em sua pesquisa, possibilitou a consolidação das práticas artísticas que haviam iniciado tempos antes, quando trabalhou na confecção de carros alegóricos no carnaval gaúcho. Em Olinda, Lia atuou no ateliê de Iza do Amparo e nas ações do coletivo Molusco Lama. “Aqui, Lia encontrou espaços, interlocutores e aliados tão instigantes quanto aguerridos para sua formação e atuação como artista. Desde então, tem desenvolvido uma obra vasta em contaminações e colaborações, hackeando e reinventando concepções elitistas de arte que, como velhas fortalezas, ainda hoje erigem muros que inocuamente tentam conter sua vocação ao múltiplo, ao outro ou ao avesso de si”.
Ocupando todos três andares do Mamam, a exposição se organiza em quatro núcleos. Neles, estão trabalhos de linguagens e períodos distintos que, todavia, transitam nas mesmas órbitas políticas. No térreo, Nesta terra, tudo dá reúne obras que denunciam o extrativismo (neo) colonial através de uma filosofia da abundância capaz de resistir aos seus projetos de escassez.
No primeiro andar, o núcleo Artista desconhecida explora a debochada iconoclastia que tanto identifica a obra de Lia Letícia; enquanto Arriar a bandeira desafia o triunfalismo do poder e suas presunções de progresso. Por fim, Desculpe atrapalhar o silêncio de sua viagem congrega obras que, a partir da experiência das cidades, insurgem-se contra as injustiças sociais do nosso tempo.
“A abundância é o principal conceito poético e político que preenche os espaços entre os trabalhos, de diferentes temporalidades, que apresento em Tudo Dá. Destarte a presença da colonialidade tensionar frequentemente a minha trajetória desde os anos 2000, é a partir da prática e tática milenar comunitária do compartilhamento e multiplicação que penso não só os trabalhos da exposição, mas também minha poética artística e de vida” sintetiza Lia Letícia.
Ao longo da exposição, alguns gestos e interesses revelam sua permanência na obra da artista: memórias insurgentes, posicionamentos irônicos, subversões de traços anárquicos, enfrentamentos políticos performativos, criações colaborativas, o caminhar como método, estéticas da abundância. Permeando diferentes temas e estratégias de linguagem, de forma transversal, testemunhamos a iconoclasta vocação da obra de Lia Letícia de arejar as tão estafadas concepções tradicionais de arte, aqui devidamente inscritas — e nutridas – na vida que tudo dá.
“Lia Letícia tem sua obra lastreada não na excepcionalidade e pretensa autonomia da arte, mas em seu oposto: sua ordinariedade, suas disputas, suas violências. Para Lia, a arte é parte dos conflitos e construções da cultura e, como tal, deve ser pensada, criticada e tensionada por práticas culturais que se situam à margem do coração de sua hegemonia econômica, política e simbólica”, diz Clarissa Diniz.
Tudo Dá foi viabilizado através da lei de incentivo do Funcultura, via Fundarpe, Secult-PE e Governo do Estado de Pernambuco, e da Lei Paulo Gustavo, por meio da Secretaria de Cultura, da Prefeitura do Recife, do Ministério da Cultura da Cultura e do Governo Federal do Brasil. A realização é de Dona Ledy Arte e Cultura e Rosa Melo Produções Artísticas. Conta com o apoio do Mamam - Museu de Arte Aloísio Magalhães, Box Preparação e Radar Equipamentos.
SERVIÇO
TUDO DÁ, de Lia Letícia
Onde: Mamam - Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães - Rua da Aurora, 265, Boa Vista
Quando: Abertura no sábado (27), a partir das 15h. Às 17h, haverá conversa aberta ao público com a presença da artista e da curadora e arriamento da bandeira Ordem de Cristo 1500. Visitação até 09 de novembro de 2025. De quarta a sexta, de 10h às 17h. Sábados e domingos, de 10h às 16h