Perfil

As mediações de Raphael Escobar

Em seu trabalho, realizado em estreita relação com a educação não formal, o artista paulista coloca em discussão tensões que interseccionam cultura, arte e conflitos de classe

TEXTO Sofia Lucchesi

03 de Abril de 2023

O artista Raphael Escobar

O artista Raphael Escobar

Foto SOFIA LUCCHESI

[conteúdo na íntegra | ed. 268 | abril de 2023]

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São Paulo, 26 de dezembro de 2016. Era uma segunda-feira e 30 pessoas se reuniam em roda no meio da Cracolândia, região conhecida nacionalmente pela concentração de usuários de drogas, para entender o que poderia ser feito dali em diante. Dois meses antes, o então prefeito da cidade, Fernando Haddad (PT), havia perdido a eleição municipal para o empresário João Dória (na época, do PSDB), interrompendo a continuidade da gestão iniciada em 2013. Chegava ao fim, portanto, o programa De Braços Abertos e sua política de reabilitação de usuários baseada na redução de danos. A mudança dava lugar à ação higienista, marcada pela forte violência policial, comum à gestão Gilberto Kassab (2006-2012).

Estavam presentes na reunião 15 moradores e 15 pessoas de fora da “Craco” – muitos eram ex-trabalhadores que atuaram no programa de Haddad, como o artista visual, ativista e educador de rua Raphael Escobar. Recém-saído do De Braços Abertos na ocasião, ele trabalhava na Cracolândia havia quatro anos. Primeiramente, fez parte do Projeto Quixote, ONG que lida com crianças e jovens em situação de risco, à época sediada no entorno da Praça Júlio Prestes, no Bairro da Luz, onde fica a Cracolândia. Durante a gestão Haddad, Escobar trabalhou como educador social na Secretaria de Direitos Humanos, acompanhando de perto os resultados do DBA (abreviação para o programa petista).

Segundo pesquisa de avaliação do DBA feita em 2016 pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas, 67% dos beneficiários afirmavam ter diminuído o consumo de crack, com uma redução percentual média de 60%, com pessoas chegando a parar por completo. Iniciado em janeiro de 2014, o programa ficou conhecido na mídia conservadora como bolsa-crack, por conta da oportunidade de trabalho e renda através de serviços oferecidos pela prefeitura, como a varrição das ruas. Além do trabalho, a ação era complementada pelo fornecimento de moradia em albergues da região, além de atividades sociais, acompanhamento médico e psicológico. Em etapa mais avançada, a iniciativa passou a incorporar cursos profissionalizantes em áreas como beleza e zeladoria.

Hoje, sete anos após o fim da gestão petista e mais de 10 anos depois do seu primeiro contato com a Cracolândia, Raphael Escobar nunca mais trabalhou para alguma organização, seja ela governamental ou não. Descreve-se como persona non grata pelas organizações sociais (OS) que atuam no local, tendo sido detido durante a mesma gestão Haddad em conflito com a GCM (Guarda Civil Metropolitana), sendo liberado após intervenção de Eduardo Suplicy, na época Secretário de Direitos Humanos, ordenando que a GCM escrevesse para ele um pedido de desculpas.

Apesar de não ter emprego formal na Cracolândia desde que Dória assumiu a prefeitura – e, posteriormente, o governo do Estado –, Escobar segue como um dos militantes mais ativos no território e, também, como uma voz importante para a questão das drogas e dos Direitos Humanos no Brasil. Daquela reunião em dezembro de 2016, fundou-se a Craco Resiste, movimento que inicialmente atuava contra a repressão policial. Mais tarde, desdobrou-se em diversas outras ações sociais, muitas delas promovidas pelo artista.

Foi representando a Craco Resiste que, a convite da então vereadora Erika Hilton – agora, deputada federal –, discursou na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) na última audiência pública de 2022. O ano havia sido marcado por algumas das mais violentas e severas operações policiais na Cracolândia realizadas pela polícia militar do governo estadual de Rodrigo Garcia, o “herdeiro” de João Dória, a quem substituiu após pedido de exoneração do cargo de governador para concorrer à presidência da República – eleição que Dória acabou por não participar, apesar de seu afastamento do governo.


Instalação Usuário foi apresentada em 2019, no 36º Panorama da Arte Brasileira, no MAM(SP). Imagem: Raphael Escobar/Divulgação

Em sua fala, Raphael Escobar afirmou: “A gente veio (na Assembleia) discutir os últimos quatro anos, mas podemos discutir pelo menos os últimos 12. Queria, aqui, até fazer um apelo. Na verdade, é praticamente um pedido de socorro, porque, enquanto a gente está aqui conversando, o pessoal da Cracolândia está andando com a polícia batendo atrás deles todos os dias, todas as horas, 24 horas por dia, sete dias por semana. É isso que está acontecendo. Só no último ano, dos defensores de Direitos Humanos da região da Cracolândia, já foram seis processados. Se isso não é um número emblemático, eu não sei o que é. (...) São esses tipos de violações que a gente está vivendo lá, há muito tempo. Ou, coisas do tipo, a polícia falar: você quer ser preso ou quer ser internado? Se isso não é internação compulsória, eu não sei o que é. [...] Isso não é de agora, não é dos últimos quatro anos; mas, lógico, piorou, não consigo dizer que não piorou. É desse jeito que vivemos nos últimos anos”.

As ações da polícia militar descritas pelo artista apenas fizeram com que a Cracolândia saísse da Praça Princesa Isabel, onde estava concentrada até o início de 2022, e se espalhasse por pontos diversos nas imediações do Bairro da Luz. Não é de hoje, no entanto, que se tenta afastar a população pobre do centro de São Paulo. Esse processo de gentrificação vem acontecendo antes mesmo do termo cracolândia aparecer pela primeira vez nos jornais, em 1995, ou mesmo antes da primeira apreensão de crack noticiada no Brasil, em 1990 – ambas as reportagens foram veiculadas na Folha de S.Paulo.

Desde os anos 1970, o Bairro da Luz e suas imediações vêm sendo objeto de diversos projetos de recuperação urbana. Boa parte dessas iniciativas tem em comum a abordagem da cultura como agente da transformação na área. É nesse contexto que acontecem as principais ações nos equipamentos culturais da região: a reforma da Pinacoteca de São Paulo (1998), a inauguração da Sala São Paulo (1999), da Estação Pinacoteca (2002), do Museu da Energia (2005), do Museu da Língua Portuguesa (2006), entre outros.

“A discussão da Cracolândia nunca foi a droga. O que se discute há muitos anos é sobre território, sobre quem consegue tirar os pobres do centro de São Paulo. A Cracolândia virou tema de verdade na cidade a partir dos anos 2000. Foi quando o centro gentrificou. Nos anos 1990, via-se pouca matéria nos jornais sobre a Craco. Isso pegou pesado em meados dos anos 2000, com forte investimento nos equipamentos culturais. É muito difícil isso, porque quem vai reclamar de abrir museu?”, opina o artista.

As tensões que interseccionam cultura, arte e conflitos de classe são temas que Escobar conhece bem. É nesse contexto que ele se coloca como mediador entre “defesas” e “ataques” imbricados nas relações entre instituições culturais, rua e povo.

No momento pandêmico, quando a situação foi agravada, Escobar ajudou a fundar o Birico, projeto que reúne 40 artistas de diferentes linguagens e condições sociais, entre artistas “institucionalizados” e outros da própria Craco, para obter recursos através da comercialização de obras de arte. Assim, criou-se um fundo para apoiar medidas urgentes na Cracolândia e outro para ser repartido igualmente entre os participantes. O termo birico é uma gíria utilizada entre os usuários para se referir à pedra de crack repartida, e foi apropriada pelo coletivo como alusão a uma estratégia de solidariedade e parceria. Onde o Estado se fez ausente, ex-trabalhadores, militantes e frequentadores uniram-se em prol de fomentar a geração de renda, profissionalização, socialização e o lazer no território, incentivando a economia colaborativa e solidária.

O projeto ganhou desdobramento em uma exposição no Sesc Bom Retiro, em 2021, além de exposições de artistas da Cracolândia, como Dentinho e Seu Yori, em espaços da cena independente da capital paulista, como Massapê Projetos e Gruta. “O Birico tem uma escola também, é a ideia da formação. Por exemplo, pega as poesias do Fábio Poeta, faz serigrafia e sai vendendo na rua. A Laura se descobriu na pintura, de repente. Vão acontecendo coisas assim no projeto, além de pagar moradia. Hoje, paga moradia para seis pessoas. São seis pessoas que não estão dormindo na rua há dois anos, graças ao Birico”, ressalta Escobar.


O projeto Birico reúne artistas com o objetivo de obter recursos através da comercialização de obras de arte e já tirou pessoas da rua. Foto: João Leoci/Divulgação

Já o Pagode na Lata, outra ação que dialoga com a perspectiva da cultura e das formas de expressão como prática para a autonomia dos usuários, consiste numa roda de samba colaborativa que acontece no fluxo – local onde há maior concentração de usuários no território. A ideia era propiciar um espaço de alegria e felicidade, e, por consequência, possibilitar as conversas e trocas de informações sobre redução de danos entre os ativistas e frequentadores. Aos poucos, foi se transformando, também, numa ferramenta de economia solidária para os integrantes do coletivo que moram no local, através de apresentações remuneradas em museus e eventos, como aniversários e casamentos.

“Uma vez, rolou uma roda de samba no aniversário da (curadora) Carollina Lauriano. Só descobriram que eram usuários de droga e ex-trabalhadores da Cracolândia quando parou a música e a gente anunciou. Daí todo o mundo ficou doido, ‘que incrível, que maravilhoso’. Até então, eram pessoas comuns. Essas iniciativas têm como propósito também desconstruir o estigma que se tem do usuário.”

Atualmente, o Pagode na Lata realiza ensaios quinzenais no Bar da Nice, nas imediações da Craco. “Pra mim, o ápice foi quando a Nice estava precisando de uma grana emprestada pra pagar uma conta atrasada, e o Pirata emprestou mil reais da grana que tinha feito no pagode. Um morador de rua!”, conta. “Uma vez, chamei o Douglinhas pra tomar uma cerveja e ele quis pagar. Isso é ótimo. Tem gente que está alugando casa. Tem gente que comprou bike. Está todo o mundo ali tirando por volta de 500 contos por mês”, estima.

***

Essas ações são apenas duas entre as articulações em que Raphael Escobar está à frente. Em 2009, aos 22 anos de idade, trabalhava como educador na Fundação Casa (antiga Febem), dando oficinas de arte. Antes disso, dava oficinas para jovens numa ONG no bairro Jabaquara. Nunca parou de trabalhar com pessoas em contextos de vulnerabilidade social ou de escassez dos direitos humanos mais básicos.

Ao longo dos anos, outros projetos já aconteceram, foram pausados, reativados e encerrados: Cupins das Artes, Blocolândia, Canteiro de Obras. Em seu site oficial, eles estão listados na aba “fora”, classificação que atribui aos projetos que não são exatamente trabalhos artísticos, mas que têm a cultura e a arte como potências para devolver a dignidade a quem é invisibilizado ou categorizado como “lixo vivo” – referência à frase dita por João Dória em discurso para empresários no ano em que se elegeu prefeito.

“A arte é uma ferramenta, como diversas outras, assim como a mídia é uma ferramenta. Cada época que eu passo na Craco aprendo outras coisas, então é algo que se retroalimenta. Vou usando as estratégias que aprendi na rua dentro das artes, assim como uso as estratégias que aprendi nas artes, na cultura, nesse trabalho social. Eu acho que é uma malandragem pegar o aprendizado das duas áreas e fazer essas trocas”, diz Escobar.

Tal como as fronteiras entre a arte e a vida, os trabalhos de “fora” e de “dentro” vão se contaminando e adquirindo cada vez mais porosidade em sua produção. Como artista, uma de suas primeiras obras de destaque foi Open bar (2016). Realizada durante residência na Red Bull Station, em São Paulo, consistia justamente num objeto de mediação para a entrada de moradores de rua numa instituição artística: literalmente um open bar gratuito de cachaça artesanal. Panfletos foram distribuídos à população de rua do entorno com as datas e os horários marcados, e assim o convite estava feito. Mesmo após o fim da exposição, vez por outra, alguns moradores de rua passaram a frequentar o espaço.


Raphael Escobar toca pandeiro na ação Pagode na Lata. Foto: Luca Meola/Divulgação

Esse momento conflui com a dissolução do De Braços Abertos e a perda do emprego formal. “Por sorte”, diz Escobar, sua carreira artística começa a ganhar mais robustez. No mesmo ano, é convidado para participar de exposições em galerias de arte, passando a ter sua produção inserida não apenas nas instituições, mas também no mercado, ainda que em pequena escala. Em 2019, produz um de seus trabalhos mais emblemáticos, a instalação Usuário, no 36º Panorama da Arte Brasileira do MAM(SP).

Para realizar a obra, encomendou várias unidades de reagentes colorimétricos – soluções utilizadas para medir a pureza das drogas –, e os distribuiu, com ajuda de amigos, entre pessoas de diferentes classes sociais, incluindo os moradores da Cracolândia. Entre as substâncias testadas, estavam o MD/Ecstasy, a maconha, a cocaína e o LSD.

“Esse trabalho serve para marcar coisas que são óbvias: os mais ricos usam uma droga mais pura, os mais pobres usam uma droga pior. Quando a droga não é pura, a impureza é menos grave que a dos mais pobres. A cocaína do pobre é misturada com analgésico de cavalo, a do rico é com aspirina. Existe um grau bem diferente na mistura”, aponta. Ao final, com os resultados de 136 testagens, apresentou uma grande cartografia do problema das drogas no Brasil sob a ótica de classe e raça.

Essa discussão nos leva de volta à Cracolândia: em 2019, um estudo realizado na região pela Unifesp apurou que 76,6% dos frequentadores se declararam pretos ou pardos. Esse apontamento nos revela a questão-chave sobre o território, evidenciada por Escobar em seu discurso na Alesp: “O que tem na Cracolândia? Todos os excluídos da sociedade. Todas as pautas dos Direitos Humanos estão lá: o indígena, o negro, o LGBTQIAPN+. Todo o mundo está lá, e ali é onde vai parar quem não teve onde conseguir se organizar. O que é a Cracolândia? É uma grande comunidade de gente tentando sobreviver. O crack é só um detalhe, só chegou nos anos 1990. Cracolândia existe desde os anos 1970, chamava-se Boca do Lixo”. Escobar continua: “A droga só chega porque alguma coisa foi falha ali na história, e essa coisa se chama capitalismo, colonialismo. Quem colocou esse pessoal lá, na rua, usando droga, foi o próprio Estado”.

À luz dos acontecimentos recentes, com a eleição e o início do primeiro mandato do governador bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), o futuro da Cracolândia é incerto. Em sua primeira declaração sobre o tema, o atual governador disse que “a questão da Cracolândia envolve a atuação de várias secretarias coordenadas”. “Não é uma questão de polícia, não é uma questão só de saúde pública, não é uma questão de assistência social ou de habitação. É de todas elas”, declarou à imprensa, em dezembro do ano passado.

Sobre qual seria a melhor solução, Escobar afirma: “Eu acho que o modelo do De Braços Abertos estava certo. E o que a gente faz, todos esses projetos – os meus, os dos meus amigos –, a gente replica em menor estrutura o que o De Braços Abertos fez, com melhorias também. Eu acho ruim o Haddad nunca ter pensado economia solidária para esses caras. As cooperativas estão aí, são um sucesso, devia ter feito isso. Acho que aquele modelo é certo, porque é essa tríplice: trabalho, moradia e assistência social, psicossocial. A estrutura está certa, mas precisa pensar que tipo de trabalho, que tipo de moradia”, salienta o artista. “Um grande lance da redução de danos é se discutir autonomia. Como se dá autonomia para o usuário, porque, se o cara quiser se internar, eu não ligo, é escolha dele, ninguém fala isso sempre. Redução de danos não é contra internação, pelo amor de Deus. Só pensa que quem tem que escolher é o usuário.”

Escobar não é sambista, nem assistente social, nem era marceneiro quando realizou o projeto Cupins das Artes, mas atuou também em todas essas funções utilizando a inteligência criativa da cultura e da arte para encontrar soluções. “Eu falo que o que eu faço bem é incentivar as pessoas”, define. Apesar da incerteza sobre as perspectivas futuras, ele seguirá no front da luta.

SOFIA LUCCHESI, jornalista, fotógrafa e pesquisadora independente de Artes Visuais.

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