Comentário

A liberdade como método

Amir Haddad, 85 anos, é tema de livro que reúne seus pensamentos e contribuições para o teatro brasileiro

TEXTO Márcio Bastos

01 de Dezembro de 2022

Amir Haddad, um dos principais artistas e pensadores do teatro brasileiro

Amir Haddad, um dos principais artistas e pensadores do teatro brasileiro

Foto Victor Curi/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 264 | dezembro de 2022]

Assine a Continente

A liberdade enquanto filosofia e método tem sido o motor da criação artística de Amir Haddad. Um dos principais artistas e pensadores do teatro brasileiro desde o final da década de 1950, aos 85 anos mantém-se inquieto, instigado e indomável. Sua paixão pelas artes cênicas está impressa em suas obras, nas palestras e aulas que ministra e em todos os âmbitos de sua existência e resistência. Entusiasta do porvir e responsável por formar e inspirar novos atores e diretores de todo o país, ele realizou este ano um desejo que chegou a imaginar como improvável: ter seu pensamento imortalizado em livro.

Organizado pelos atores e diretores Claudio Mendes e Gustavo Gasparani, Amir Haddad de todos os teatros (Editora Cobogó, 176 páginas) não é uma biografia (apesar de trazer informações robustas sobre a trajetória dele) tampouco um manual, mas propõe um mergulho na sua vida e no seu pensamento. Para promover essa imersão, respeitando as características do personagem em questão, o livro é dividido em três partes, sendo a primeira, intitulada Amir Haddad: múltiplo por excelência, escrita pelo crítico, professor e jornalista Daniel Schenker sobre o percurso artístico de Amir. O segundo capítulo, Na sala de ensaio, envereda pelas dinâmicas de criação do diretor, a partir de depoimentos dados por ele ao longo das décadas e reunidos por Claudio e Gustavo.

“Não espere um método Amir Haddad de teatro. É justamente o contrário disso! Não há método. O que há é liberdade. Liberdade e bom senso! Nem Bertolt Brecht, nem Peter Brook, nem mesmo Constantin Stanislavski escreveram métodos ou regras para ‘treinar’ atores. Mas pensaram o teatro profundamente e modificaram sua prática ao longo do século passado. É disso que se trata”, explica Amir, na introdução ao capítulo.

Como ele explica, seu teatro não é o da repetição, do condicionamento do corpo ou do pensamento. A ele interessa que o ator, profissão que ele tanto valoriza, se encontre, se expanda, atinja seu potencial máximo a partir do olhar para dentro e do entrosamento no coletivo. No terceiro e último capítulo, ele compartilha sua militância em relação à arte pública – que, como ele sublinha, era a forma por excelência da criação artística, vindo a ser “privatizada” na Idade Média e no Renascentismo.

“Se nós um dia formos construir outro mundo – e a gente vai ter que construir porque esse tá ruindo e a gente sabe onde vai parar… nós vamos ter que construir outro mundo – , na hora da construção de outro mundo as artes públicas vão ter um papel muito grande, porque são elas que vão recuperar na gente a possibilidade de um processo civilizatório que novamente nos interesse (...) Enquanto houver teatro há esperança! Eu penso teatro assim, penso o mundo assim, penso a manifestação humana dessa maneira e penso também em políticas que venham a contemplar esse aspecto, que é o que há de melhor na natureza humana e não o seu pior aspecto. E se existe um país que tem possibilidade de construir um outro futuro, somos nós!”, escreve.

Ao longo da sua trajetória, Amir esteve constantemente aberto à experimentação, ao novo, às possibilidades do encontro. Sua produção intelectual é indissociável do fazer artístico. Ele preza por uma linguagem direta, acessível, pois os academicismos nunca interessaram ao artista, que inclusive largou os estudos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) para se dedicar ao teatro.

Foi naquela instituição de ensino, no entanto, que ele contribuiu, junto a nomes como José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi, para a criação de um dos grupos mais importantes para a renovação do teatro nacional, o Teatro Oficina, em 1958. Amir participou apenas da fase inicial do grupo e se afastou durante a montagem de A incubadeira, que inicialmente teria Zé Celso como dramaturgo e Amir como diretor. Sobre o episódio, ele lembra no livro:

“Ao voltar, percebi que havia proposto algo melhor do que eu vinha fazendo. Mas, com isso, a companhia passou a ter dois diretores. Um dia, cheguei ao teatro e vi que tinham trocado a fechadura. Eu, Moracy e Carlos não recebemos a chave nova. Não havia notado nenhuma situação de conspiração ou mal-estar. Também não houve aviso. Percebi a situação e naquele momento mesmo me desfiz das minhas chaves. Eu me afastei, não os procurei, não perguntei o que tinha acontecido. E nem eles me ligaram.”

Saindo do Oficina, ele passou a dirigir trabalhos de várias companhias nos anos 1960, o que possibilitou o contato com diferentes artistas e formas de ver o mundo e estar no palco. O respeito à diversidade humana é resultado da própria vivência de Amir Haddad desde a infância. Únicos descendentes de árabes na pequena Rancharia (SP), cidade para onde sua família se mudou quando ele, nascido em Guaxupé (MG), tinha cinco anos, Amir diz ter por muito tempo se sentido um “estranho no ninho”.

Acolhedor com o diferente, ele fez de seu teatro um espaço seguro para todos. A dedicação à vida artística fez com que ganhasse a admiração de muitos artistas e de plateias ao redor do país – e também dentro de sua casa, ainda que esse respeito tenha se manifestado de forma silenciosa. Em uma passagem do livro, Amir lembra que, um dia, mexendo em uma gaveta do pai, encontrou vários recortes de matérias sobre o seu trabalho. “Ele nunca me falou que fazia esse clipping”, revela.

A relação com a família é um dos pontos interessantes que o livro traz para ajudar a entender a forma como Amir Haddad enxerga o teatro. A amorosidade e o senso de coletividade que experienciou nesse núcleo foi transferido também para os espaços cênicos – das salas de ensaio aos teatro e à rua. Outro fator importante para alargar os horizontes do então jovem encenador foi sua mudança para Belém, no Pará, em 1961, onde permaneceu dando aula até 1964.


A obra é a primeira a reunir e documentar as ideias de
Haddad, que atua no teatro brasileiro desde a década
de 1950. Imagem: Divulgação

“Foi definitivo. Mudou totalmente a minha vida. Antes eu achava que só se fazia teatro naquela região onde eu vivia em São Paulo, basicamente resumido ao Teatro Brasileiro de Comédia, ao Teatro de Arena e ao restaurante Gigetto, ponto de encontro da classe artística. Quando fui para o Pará, o Brasil inteiro se revelou para mim. Durante o voo, atravessei toda a Floresta Amazônica, olhando para baixo e vendo aquela imensidão de verde”, conta no livro, enfatizando ainda que, nesse primeiro momento como docente, foi aprendendo enquanto ensinava, ao mesmo tempo em que se envolvia cada vez mais com as festas populares, como o Círio de Nazaré e o Carnaval, elementos que teriam grande importância no seu trabalho.

Esse modus operandi, de alguma forma, manteve-se durante toda a sua vida. Com muito a ensinar, Amir Haddad também não apresenta resistências para dialogar com o presente, como mais uma vez ocorreu durante a pandemia. Impossibilitado de executar suas ações de forma presencial, em especial com o grupo Tá na Rua, que fundou em 1980 e tem como base a arte pública, o teatro ao ar livre, ele utilizou as ferramentas virtuais para continuar trabalhando.

“Meu trabalho é de aglomeração no espaço público, que é o que gosto de fazer, sem cuidado de qualquer espécie, o que não se podia. Então esse período de pandemia afetou profundamente a minha atividade e militância. Não sei o que poderia estar acontecendo se não tivesse acontecido isso, onde eu estaria. Agora, estamos voltando. Sobrevivi”, contou à Continente, em entrevista por videochamada. “Continuei trabalhando, tendo aulas, encontros, através da internet. Nunca substituí meu trabalho por outra atividade para fazer pela internet. Sempre fiquei ressabiado por ter que fazer pela imagem o que faço pela presença física. Apesar de muita virtualidade, em nenhum momento me senti impossibilitado de trabalhar.”

CIRCULAÇÃO DE IDEIAS
Nesse contexto de virtualidade, Amir aponta como fator positivo a possibilidade de ter se conectado com pessoas de todo o país e também do exterior, durante suas aulas e participações em vários eventos. São pessoas que, de outra forma, teriam que se deslocar até o Rio de Janeiro, onde fica a sede do Tá na Rua (no boêmio bairro da Lapa) para estudar com ele.

“Esse contexto expandiu virtualmente a minha voz. Foi um intercâmbio muito maior do que se ficasse só no presencial. As minhas ideias tiveram um espaço e liberdade de locomoção muito grande, o que foi uma vantagem. Não mudou nada do que eu penso, mas essas ideias chegaram a mais gente”, enfatizou.

Outro meio pelo qual suas ideias podem também chegar a um público diverso é através do livro, o que para ele também foi uma realização. A feitura partiu de pesquisas de arquivo e de entrevistas realizadas pelos organizadores, que já trabalharam por anos com Haddad e conhecem e entendem sua visão de mundo, suas preocupações e, principalmente, seus desapegos, como ele reforça. O título da obra, inclusive, foi escolhido pelo próprio Amir e deixa claro que, mesmo impressas, suas ideias dispensam uma única classificação.

“Fala-se muito do ‘teatro de Amir Haddad’. Eu prefiro o Amir Haddad de todos os teatros. Esse livro me trouxe muita alegria, me deixou comovido, emocionado, porque é a primeira vez que vejo as minhas ideias reunidas em um lugar só, para que uma pessoa possa ler com uma linguagem acessível. Isso é uma dádiva. Eu tinha muito medo das minhas ideias não caírem em terreno fértil, de ficar estéril; ter ideias boas e elas não serem plantadas, porque minha transmissão é sempre através da oralidade, dos alunos, dos atores, e eu nunca organizava esse conjunto de pensamentos. Essa obra me libertou a alma porque sentia que estava vivendo a maldição de Onã, de ser fértil, mas nunca depositar a semente em terreno fértil. Ainda que, quando eu falava isso, as pessoas diziam que eu estava louco, porque já estava deixando minha marca nos atores e no público”, comentou.

Com a melhoria do cenário pandêmico, Amir e o Tá na Rua estão de volta ao espaço público e também com atividades no seu equipamento cultural. Sempre em movimento, ele também assina a direção de Virginia, elogiado solo de Claudia Abreu sobre a escritora inglesa Virginia Woolf, atualmente em circulação pelo Brasil. Ele também terá sua trajetória contada em uma biografia escrita por Thiago Bechara, com previsão de lançamento para o final deste ano.

A possibilidade de ter sua filosofia artística e de vida registradas em livros tem contorno especial para Amir também por conta da natureza do seu fazer. O teatro é, por essência, efêmero. É uma arte do aqui e do agora, da presença, é territorializada, como já apontou o pesquisador argentino Jorge Dubatti.

“O teatro é de uma fugacidade gigantesca, é difícil capturar sua memória. A memória do espetáculo se esvai na mesma hora dele, ela não se mantém, mesmo que você filme. Quem faz teatro está condenado ao esquecimento, a ser uma lembrança, mais do que uma memória. Esses livros garantem uma memória, um registro do que aconteceu naquele país em determinado momento da nossa história”, celebrou Amir, despedindo-se entusiasmado da reportagem da Continente, mesmo diante de uma agenda que incluía ainda outros compromissos, mostrando que o entusiasmo e o fôlego para criar que o acompanham há seis décadas continuam firmes e se renovando diariamente.

MÁRCIO BASTOS, jornalista, mestrando em Comunicação pela UFPE.

Publicidade

veja também

Abrir a caixa do ensaio e achar a vida

Marte Um

Gio Simões