Ficção

Matraca

TEXTO José Luiz Passos

01 de Setembro de 2022

Ilustração José Luiz Passos

[conteúdo na íntegra | ed. 261 | setembro de 2022]

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Bonecos, bonecas, gente imaginada comigo por trás de muros e árvores, eu conversava com os meus favoritos, uma vitrola portátil, azul, e a bicicleta Caloi, também azul, que perdeu as rodinhas enquanto eu perdia os dentes de leite. E lá em casa, mais de 100 pássaros engaiolados, o móvel de som com dois toca-discos, no lusco-fusco um ar triste, as aves soando entre Vivaldi, Aznavour, Art Blakey e carimbó, logo, logo tudo isso ficaria pra nunca mais, como os pássaros que se afogaram nos próprios viveiros, na cheia que cobriu o Recife e me serviu de fecho para um romance, a senhora sabe, e nisso tem razão, falam muito que eu falo muito. 

Como se uma suave hecatombe tivesse me apanhado já aos quatro anos, e agora em tempo de velho, enquanto abraço um momento casmurro, o que me volta desse mundo analógico é outro nó entre a falta e o excesso, é horrível dever dinheiro por causa de elepês. Dever dinheiro é ruim, mas por causa de elepê é pior ainda, vem a vergonha, sempre começo por uma perda ou carência, ou melhor, sempre que busco a sorte, começo no vermelho. 

Zezuzim, há oito anos você ficou trancado numa sala com sete tradutores na escola de inverno do British Council, em Paraty, já tinha sido traduzido antes? Como essa experiência se compara? 

Um romance sobre migrar, viver em tradução, era a ideia de 10 anos atrás que foi à oficina, imagine uma experiência em câmera lenta na companhia de pessoas estranhas, a língua estranha, e mais, o passado é outro país. Foi ótimo escrever sobre onde vivo, onde estou, quando em geral só quero aquele país que ficou para trás, então vupt, me veio a imagem da aspirante à modelo, atriz fracassada vivendo aqui em Los Angeles, convencida a fazer a biografia da mãe pelo ex-empresário dessa mãe, uma cantora de pouco sucesso e sumida nos anos 1980 em São Paulo. Estava aí a ligação entre Los Angeles e São Paulo. 

Foi sugestão de John Freeman e Larry Lauerhass, Larry agora morto e John sem mais a revista Granta, na época queriam que eu fizesse alguma coisa com as duas cidades, espécie de tale of two cities, e essa filha, no registro Lucineide, por vulgo Lucy, a narradora, c’est moi. São fantasmagorias, mas fantasmagorias úteis, como uma cerveja que borbulha seu colarinho e logo faz ele desaparecer, e só por ficar mais morna, murcha nosso interesse. Personagens de ficção são assim. 

Por outro lado, Zezuzim, Lady Laet permaneceu em curso, entre línguas, durante 10 anos e três outros livros, a tradução fez você mudar alguma coisa? 

Na tentativa de biografar quem ela nunca conheceu, Lucineide repassa a geração entre o vinil, o CD e os streamings, minha geração, entre o velho nacionalismo e um mercado global, utopias de redenção coletiva e a consolação módica do consumo pop, enfim, todo mundo tem um tio inconveniente, falando coisas inconvenientes. Fui por aí. Viver entre dois mundos é bom e embaraçoso. Queria mostrar isso. Que a sobriedade mascara o mergulho numa vida de transformações, é o que me interessa ainda hoje. Nada dado diretamente, o subterfúgio domina, assim espero fazer justiça à inteligência da leitora. 

Zezuzim, além de ensinar, escrever, você também traduz do inglês para o português, existe alguma coisa que tirou da escola de inverno e pretende usar em traduções futuras? 

Arriscar sinônimos distantes, buscar na frase o sentido mais incômodo, estrangeiro, leitores merecem essa chateação honrosa. 

Neide Laet é cantora de gospel, soul, rock, samba, o quê? Existe uma trilha sonora para ela?

Ainda não, talvez Cartola com free jazz, Karina Buhr, as crônicas de José Teles, o @telestoques, adoro, foram fundamentais. Tenho uma pasta com recortes de antigas colunas dele, agora leio tudo na internet. Para compor Lady Laet, busquei fotos e biografias de cantoras e atrizes entre as décadas de 1930 e 1970, mas não quis dar à minha figura nenhum som ou estilo definido. A cada volta, quando referida pela filha ou pelo empresário, ela muda. Depois, passei do mundo sonoro ao visual e fiz as ilustrações, percorrendo Los Angeles, buscando o presente da narradora, caçando capas de LPs, foi horrível, é um fardo copiar um pouco de tudo e de todo mundo, de maneira consistente, mas é daí que resulta a vida de quem nunca existiu. 

E pensando nisso, caminhando por cá, passei a copiar as paisagens daqui que achava parecidas com as daí, gravatás, jacarandás, bananeiras, palmas, palmeiras, mas um céu sem nuvens, os meninos, mães, maratonistas correndo à beira do rio Los Angeles, hoje concretado como um canal e mesmo assim lindo, pus tudo isso diante de Lucineide. Pus na cabeça dela minha nostalgia pelo que nem vivi, apenas li nas biografias de David Bowie, Marilyn Monroe, Billie Holiday, e lembranças das finadas lojas de disco na Boa Vista ou no Bairro de Casa Amarela, em frente ao mercado que pegou fogo, onde comprei o álbum branco dos Beatles e viria a comprar outros, desatando um fio para mais, o êxtase das dívidas, o bom lado B da vida. 

Zezuzim, só no avião, depois de dias cheios, consegui começar a ler com tranquilidade, e comecei bem, apreciando as primeiras páginas, mas logo um gatinho ao lado começou a miar, a miar e a miar, de modo que aquilo que era para ser um miado se tornou uma sinfonia a noite inteira, sem deixar ninguém dormir, o restante você pode imaginar, retomei seu texto depois, de modo que mergulhei nele, só nele, e nada mau para uma história picante de ambiguidades amorosas e uma saudade bucólica pelo mundo das divas e dos heróis barbudos, como lutadores de boxe. Aos poucos você vai tecendo uma rede de memórias que ligam Neide Laet, Lucy e Saboia com o mundo passado, enquanto Hani e Pablo puxam a atenção e o mundo da doce Lucy para os jogos do presente, mas você vai tocando essa música de evocações e fotos em meio a um estilo que anotei como sendo da ordem do swing, tem cadência mas também cortes e recortes, deixa as frases marcadas por síncopes, repercute a ambivalência das personagens, digamos, como num álbum de intimidades. 

Puxa, obrigado… 

Questões a pontuar? Críticas? Quase nada, pois sei que o camarada pesa a frase. Mas senti falta de alguns diálogos aqui e ali, para aliviar a solidão das primeiras pessoas. Também achei excessivos os detalhes técnicos de gravação musical etc., mas isso pode ser implicância minha, sou leiga em assuntos de rock. 

Enfim. Como disse, obrigado. Fico até sem jeito. 

De resto, foi um prazer ler mais este, agora com toques de vida pós-moderna. Também estou gostando de ver suas postagens sobre jazz. Ando fazendo uma coleção bacana em vinil, é um esporte caro. Ainda bem que existem serviços de streaming para a gente fazer os filtros antes de empenhar a alma. 

Minha cara, vamos conversar? Por culpa sua, também fui buscar elepês de jazz, inclusive em mono. O som lindo. Uma fortuna. Minha vida ficou mais complicada ainda. Adoro Andrew Hill, tenho escutado muito Eric Dolphy. 

Nem sei explicar bem por quê, mas Andrew Hill tem um som quebrado, dissonante, inesperado que me atrai. E que morte estúpida, a de Eric Dolphy. Racismo médico. Que Deus nos proteja da falência. 

A senhora é religiosa! Adoro. Amanhã mesmo estou pensando em parar de beber. Mas tem um lado estranho dessa vida de agora, não tem? Tão conectada e ao mesmo tempo tão só, empenhada e cheia de desencanto. Digo isto porque não acho que o passado tenha sido melhor, pelo contrário. Mas o rito da correção, a síndrome de palmatória do mundo é tediosa. Prefiro errar fedendo, gostando, adivinhando qual passarinho é aquele, o pelo do povo por baixo das roupas, como chamam aquilo na hora agá, prefiro, do que estar na mesma faixa da correção nas opiniões. É feio falar assim, sei. Direto, sem bom-mocismo. Vão ter ainda mais raiva de mim. Vão dizer, escreveu, não leu, enlouqueceu. Mas é preciso paciência. E quando gritamos juízos com desespero, o que fica, do que as pessoas se lembrarão é apenas do desespero. Então, pensei o seguinte. Queria escrever um livro em que, na busca por uma mãe desconhecida, supostamente famosa e controversa, a filha aprenda a encontrar seu próprio tom, noutra língua, aprenda a interromper essa busca e imaginar aquilo que não conhece, algo novo, para si mesma, no presente.

Meu ponto de partida foi fácil. Imaginei uma chatice. Vá me ouvindo. Pense assim, e se alguém dissesse a você “Eu sei de uma coisa sobre o seu passado, sobre seu pai, sua mãe, avó, coisa que se você mesma soubesse, ah, mudaria sua maneira de ver tudo, tudo!” É claro, quando o esclarecimento dum mistério é revelado dessa maneira, por meio dum despachante ou oráculo, o próprio esclarecimento do passado se torna ponte para uma fantasia incômoda e difícil de se livrar. Então, a única forma de cura é a cegueira. Ou seja, fechar os olhos pra aquilo que a gente não conhece nem consegue esclarecer, e precisa imaginar. Daí, o que parecia tão simplório acaba se desdobrando numa quebra-cabeças, pois até mesmo a matraca, tocada com paixão, tem minúcias duma orquestra sinfônica. Como exemplo, só duas palavras. Hermeto. Pascoal.

Então, quando você abre os olhos, ou pausa para escutar alguma coisa, o que é que você vê e ouve? Fale um pouco das suas ilustrações, Zezuzim…

Como a pergunta é bem óbvia, prefiro lhe passar minha lista. Tem uma que, obviamente, trata-se do rio LA entre quatro paredes. Noutra, uma papoula aparece atrás das grades de contenção desse mesmo rio. Num botão para atravessar a rua, o pedestre parece ter uma bengala. Em pistas de Cooper passa gente mais rápida que eu, porque fiz muitas dessas ilustrações enquanto ainda concluía a quimioterapia. As imagens frequentemente mostram uma Los Angeles ao lusco-fusco, e 10 anos atrás uma das tradutoras me disse “Você usa muito essa palavra, lusco-fusco”, fui ver e ela estava certa, não tinha me dado conta disso, havia lusco-fusco no meu passado e no presente. Tradução é mesmo um marca-texto cognitivo, foi o que disse a ela, cognitive highlighter, e ela adorou. Noutras ilustrações, as grades do rio formam uma onda, a palmeira espiga-se por entre avenidas, aparece uma placa STOP, Los Angeles is here because of the river, um pássaro ou helicóptero atravessa o vão entre as árvores, enquanto uma cadeira boia arrastada pela correnteza. Avisos de entrada proibida, multa de mil dólares, velocidade máxima de tantas milhas, cachorro na coleira aparecem diante de jardins com babosas e suculentas densas, de grande maturidade. No chão, sinais de que você está passeando pela margem sul, por onde seguem gasodutos e linhas de alta tensão, servem de poleiro para garças que observam caminhões de lixo e concreto rumo ao norte, no vale de San Fernando, onde morou e foi à escola Marilyn Monroe. 

Todas as ideias corretas, de fato as menos secretas, os aplausos de pé são inocentes, insossos. Quem disse que acertar na mosca é o principal da vida? O começo de tudo é gostar sem explicações, gostar com perdas, como frutas vazando num cesto de palha puída, frestas imperfeitas, e apenas nisto, senhora, é possível falhar cada vez melhor. Eu, com Lady Laet, quis o quê? O terror e a liberdade daquele momento em que, quando se conta uma história feita só de versões, tudo é possível. Estrutura com improvisação. Acontece que sou dado a isso. 

JOSÉ LUIZ PASSOS, escritor, professor e tradutor.

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