É possível dizer, já de início, que qualquer tentativa de resumo do pensamento e do percurso de Giorgio Agamben está fadada ao fracasso. Não é possível, em poucas frases, dar conta da complexidade de uma atuação que se estende por décadas – partindo de um livro como O homem sem conteúdo, de 1970, passando por O que resta de Auschwitz, de 1998, até chegar a O tempo do pensamento, lançado em junho de 2022.
O principal eixo de coordenação do pensamento de Agamben diz respeito às suas pesquisas sobre a categoria do Homo sacer – expressão que dá título a um de seus livros, de 1995. É o próprio autor quem declara que esse projeto nasce da leitura das obras de Michel Foucault e Hannah Arendt, especialmente no que diz respeito à relação entre “vida” e “poder soberano”, ou ainda, a “biopolítica”. A análise dos dispositivos que tornam possível a “gestão”, por parte do poder político, dos corpos em sociedade, ocupou Agamben em obras como Estado de exceção, O sacramento da linguagem e Altíssima pobreza, desembocando nos artigos polêmicos que o autor publicou durante a pandemia de Covid-19. Em paralelo a esse eixo principal, encontramos as várias obras nas quais Agamben se dedica a questões estéticas, com destaque para a literatura (e, por vezes, com foco específico sobre a poesia). Nesse campo, é possível destacar uma obra como Categorias italianas, com leituras de Dante, Pasolini, Manganelli, Andrea Zanzotto, Patrizia Cavalli, Francesco Giusti, entre outros.
II
Em um de seus livros mais recentes, A loucura de Hölderlin – crônica de uma vida habitante 1806-1843 (Âyiné, tradução de Wander Melo Miranda), Agamben retorna à literatura e propõe um estudo denso e rico de camadas sobre o “poeta louco”. O primeiro ponto a salientar é que não se trata de uma reflexão que lida exclusivamente com Hölderlin, pelo contrário: seu percurso é contrastado com aqueles de Goethe e Napoleão, o que oferece uma sorte de pano de fundo histórico aos comentários de Agamben; além disso, os gêneros da “biografia” e da “crônica” são mobilizados (e questionados em seus limites) como ferramentas para uma abertura da história e da sucessão temporal; por fim, etiquetas classificatórias como “loucura” e “inspiração” recebem um tratamento de desnaturalização, ou desautomatização, dentro do qual o caso de Hölderlin é usado como exemplo de um radical atravessamento entre poesia e filosofia. O que dá consistência ao projeto é a dedicação verticalizada de Agamben aos textos de e sobre Hölderlin – poemas, biografias, relatórios médicos e cartas, dele e de terceiros.
A loucura de Hölderlin foi lançado no Brasil pela
Âyiné. Imagem: Ulf Andersen/Aurimages via AFP
O livro é dividido em quatro partes principais, começando com um Limiar e um Prólogo, estendendo-se por uma Crônica (1806-1843) (a seção mais longa) e encerrando com um Epílogo. Mais uma vez vemos aparecer a figura de Walter Benjamin, referência constante em todo o percurso intelectual de Agamben – que durante anos foi responsável pela edição das obras completas do autor de Rua de mão única para o italiano. Benjamin aparece logo no início de A loucura de Hölderlin para auxiliar Agamben na reflexão acerca da diferença entre “crônica” e “história crítica”. A dicotomia, contudo, é logo desfeita, pois Agamben argumenta que a escolha aparentemente “neutra” da crônica (expor fatos e eventos dentro de uma estrutura cronológica) já pressupõe uma tomada de posição, um escrutínio, um projeto.
Partindo de Benjamin, Agamben chega a uma ambivalência que guiará seu livro até o fim: “crônica” e “história” são gêneros diversos, mas complementares, com procedimentos que se fortalecem mutuamente através do contraste. “O cronista não inventa nada”, escreve Agamben, e, no entanto, “não tem necessidade de verificar a autenticidade de suas fontes”, às quais o historiador não pode, ao contrário, “em nenhum caso, renunciar”. O “único documento” que interessa ao cronista “é a voz”, a sua e aquela da qual lhe ocorreu ouvir, por sua vez, “a aventura, triste ou alegre, a que se está referindo”. É essa “voz” que se busca recuperar no caso de Hölderlin, embora as “fontes” (cartas, biografias, registros notariais) estejam sempre presentes. Como comparação, vale a pena mencionar o trabalho recente de Andrew S. Curran sobre Denis Diderot, Diderot e a arte de pensar livremente (tradução de José Geraldo Couto, Todavia), que também explora uma crônica do contraste – neste caso, entre Diderot e Rousseau –, mas bastante distante das ambições teóricas de Agamben.
Em paralelo a essa argumentação ao redor do tema da escrita da história, Agamben se dedica a circunscrever um objeto específico, a vida de Hölderlin. “O teor de verdade de uma existência”, escreve Agamben, por mais que permaneça sempre envolto em mistério, pode ser manifestado constituindo essa existência como “figura”, ou seja, “como algo que alude a um significado real, mas velado”. Pensar a vida como “figura” garante que uma existência seja considerada em todas suas potencialidades, mesmo aquelas ainda desconhecidas: somente no momento em que percebamos “uma vida como uma figura”, continua Agamben, “todos os episódios em que ela parece consistir são compostos em sua contingente verossimilhança”, isto é, “abdicam de toda pretensão de poder fornecer um acesso à verdade daquela vida”.
Parte do encanto do livro está no modo como Agamben coloca em prática essa hipótese da “figura”, jogando com a crônica da vida de Hölderlin (a loucura, a escolha dos pseudônimos, as visitas que recebeu em sua torre) e as diversas interpretações possíveis desses “fatos”. Para Agamben, o problema não é certificar se o poeta era louco, nem mesmo se ele “acreditava ser”. O decisivo é “que tenha querido ser ou, antes, que a loucura tenha-lhe aparecido, a certo ponto, como uma necessidade, como algo de que não se podia esquivar sem covardia”. A questão da loucura estava diretamente ligada à ideia que Hölderlin fazia da poesia como uma espécie de “presente dos deuses” (“como o velho Tântalo, havia recebido dos deuses mais do que podia suportar”).
Agamben traz exemplos de outros escritores que “buscaram, de todas as maneiras, enlouquecer”, como Jonathan Swift, Nikolai Gógol ou Robert Walser. Hölderlin, por sua vez, “não procurou a loucura, teve de aceitá-la”, pois a entendia não como “doença mental” (a concepção atual da loucura, que não se harmoniza com o contexto do poeta), mas como “algo que se podia ou se devia habitar”.
A partir desse ponto, começa a ficar mais clara a escolha de Agamben para seu título – “crônica de uma vida habitante”. O vocábulo é elevado à categoria de conceito, pois indica “certo modo de ser”, certo modo de organizar a existência por meio de hábitos e “habitudes”. A vida habitante ou habitual seria uma vida que tem “um modo especial de continuidade e de coesão a respeito de si mesmo e do todo”. Além disso, toda “habitação” é um “ser afetado por si próprio no próprio ato de habitar”, de certo modo, certo lugar. O indivíduo não pode “ser si próprio”, nem “ter-se”: somente pode “habitar-se”. Esse conjunto abstrato de máximas é suavizado ao longo da análise, já que a “vida habitante” de Hölderlin é rastreada em suas cartas, poemas, ensaios e traduções.
Ao ler seus contemporâneos (Hegel, Schiller, Goethe), viver a própria “loucura” e traduzir os gregos, Hölderlin vai, aos poucos, burilando seu processo de “habitar-se”. Quando teve que traduzir a peça Ájax, de Sófocles, transformou um verso que dizia, literalmente, “residente com a loucura divina”, em uma versão própria, que, na leitura de Agamben, condensa as várias linhas de fuga de sua vida: “sua casa é a loucura divina”.
A postura de Hölderlin é de uma exceção sem precedentes, e por isso Agamben contrasta sua vida com aquela, bem mais convencional, de Goethe. Não que a trajetória deste último não tenha sido excepcional, pelo contrário: o que está em jogo na análise de Agamben é mostrar como Goethe “se afinou” perfeitamente com sua época, colocando-se em harmonia com seu contexto (e para exemplificar esse juízo, Agamben recorre à figura de Napoleão e ao modo como Goethe se adaptou às conquistas e invasões). A conclusão a que se chega depois dessa comparação entre vidas é de uma densidade melancólica que convida à reflexão: a lição de Hölderlin é que “não fomos criados para o sucesso”; contudo, se conseguimos “agarrar” o fracasso, isso “é o melhor que podemos fazer”, assim como “a aparente derrota de Hölderlin destitui integralmente o sucesso da vida de Goethe”, tirando-lhe “toda legitimidade”.
III
As reflexões de Agamben sobre Hölderlin podem ser posicionadas no contexto mais amplo de sua preocupação filosófica com a linguagem. Nesse sentido, é uma feliz coincidência que outro livro seu tenha sido recentemente lançado no Brasil: O que é a filosofia? (Boitempo, tradução de Andrea Santurbano e Patricia Peterle), composto de quatro ensaios e um apêndice, lançado originalmente em 2016. Em vários momentos de sua obra – como, por exemplo, em Infância e história – Agamben coloca em primeiro plano a preocupação com a linguagem. Como a linguagem pode “existir”? Como ela pode ser acessada, o que significa dizer “eu falo”? Em O que é a filosofia?, a linguagem é abordada especialmente pelo viés da “experiência”, pela perspectiva de uma investigação do “ter-lugar” da linguagem, e é por essa razão que os dois livros recentes de Agamben são complementares: a crônica da vida de Hölderlin exemplifica e torna mais palpável o conjunto abstrato de proposições do livro sobre a filosofia.
O que é a filosofia? foi lançado no Brasil pela Boitempo.
Imagem: Ulf Andersen/Aurimages via AFP
Para Agamben, a filosofia é um evento ontológico tornado possível pela linguagem – o “evento” diz respeito àquilo que é reconhecido coletivamente, enquanto o “ontológico” diz respeito à possibilidade do ser se reconhecer durante o uso da linguagem. Falar, escutar, escrever são atividades ambivalentes, operando na linha tênue que separa o único do múltiplo, o sujeito da comunidade. No primeiro ensaio, intitulado Experimentum vocis, acompanhamos a descrição da estratégia de acoplamento da linguagem com a “metafísica ocidental”, o discurso que regula aquilo que pode ser imaginado para além da realidade. O indivíduo só se pode reconhecer através da linguagem, e é ela que articula a relação entre mundo e palavra, ontologia e lógica, “eu” e “outro”.
É claro que Agamben não chega sozinho a essa perspectiva, e é digno de nota o modo como deixa claro, ao longo do percurso, o conjunto de referências utilizadas. Um mapa possível da elaboração conceitual de Agamben pode tomar como ponto de partida os gregos, com destaque para Sócrates, Platão e Aristóteles, e aparições especiais de nomes como Estesícoro e Heráclito; Boécio e Agostinho também aparecem, representando os primeiros séculos da era cristã; o pensamento alemão, por sua vez, aparece em peso com nomes como Leibniz, Kant, Hegel, Franz Brentano e Franz Bopp; quando chegamos ao século XX, o panorama fica mais variado, pois é onde encontramos os principais interlocutores de Agamben, com destaque para Martin Heidegger, Walter Benjamin, Ludwig Wittgenstein, Émile Benveniste e Jacques Derrida.
Ainda que seu foco principal seja o discurso filosófico – e a transformação de seus problemas ao longo do tempo –, Agamben nunca perde de vista a dimensão estética da linguagem, sobretudo no que diz respeito à poesia. “Poesia e filosofia representam duas tensões inseparáveis e irredutíveis dentro do campo único da linguagem humana”, escreve Agamben, “e, nesse sentido, enquanto houver linguagem, haverá poesia e pensamento”. Essa dualidade é o indício que permite a hipótese de uma “cisão” produzida na voz humana: “no momento da antropogênese”, ou seja, no surgimento e evolução do humano, a voz se vê atraída por dois polos contrastantes e complementares, poesia (o que resta da linguagem animal) e filosofia (veículo do saber e do conhecimento). A poesia poderia ser entendida como “a tentativa de tender ao máximo a um som puro”; a filosofia, por sua vez, se encaminha em direção a um “puro sentido”. Ainda nessa perspectiva, a prosa filosófica é “busca e comemoração da voz”, na qual “som e sentido parecem coincidir no discurso”; a poesia, por sua vez, é “amor e busca da língua”, um exercício infinito de oposição entre “som e sentido”. Adaptando uma frase de Wittgenstein, Agamben conclui seu raciocínio afirmando que a poesia precisa “apenas ser filosofada”, enquanto a filosofia precisa “apenas ser poetada”.
No ensaio dedicado ao “dizível e a ideia”, Agamben traz algumas reflexões que podem funcionar como um bom fechamento para este comentário sobre sua obra. Mais uma vez, ele está interessado naquilo que “quase” pode ser dito ou expresso, o ponto em que a “certeza” se anuncia, sem completar definitivamente seu ciclo. A ideia leva o dizível em direção a uma abstração com relação à língua. Essa língua, contudo, não diz respeito a um idioma específico, e sim à possibilidade de “todos os nomes e todas as línguas”. Como exemplo, Agamben recorre ao historiador Arnaldo Momigliano e sua ideia de que “o limite dos gregos era que eles não conheciam as línguas estrangeiras”, o que constitui, de resto, o limite de todo pensamento unilateral. Por conta disso, Agamben propõe a hipótese de que “o elemento linguístico próprio da ideia” não é simplesmente o “nome”, mas a tradução, “ou aquilo que é traduzível nele”. A tradução, portanto, surge como uma tarefa que é tanto ética quanto estética, atravessando as diferentes esferas que regulam a convivência dos seres em comunidade. E também a tradução se desenvolve sobre um paradoxo: entendemos o sentido geral de um texto – a trama de romances como Dom Quixote ou Moby Dick, por exemplo – quando lemos uma tradução; mas através da leitura também “entendemos” que nenhuma daquelas palavras foi escrita pelo autor.
A consciência da “artificialidade” da tradução, no entanto, não impede o leitor de fruir o texto, de carregá-lo consigo para o resto da vida, costurando-o à própria subjetividade (como Jorge Luis Borges, que leu o Quixote primeiro em inglês, quando criança, e depois declarou que o original espanhol sempre lhe pareceu como uma tradução).
Para Agamben, a “traduzibilidade” é o que garante a movimentação do pensamento através do tempo, pois está situada “no limiar que une e divide os dois planos da linguagem”, o semiótico e o semântico (o plano da materialidade e o plano do sentido). Por isso Walter Benjamin destacou a “relevância filosófica” da tradução, que Agamben desenvolve minuciosamente – e que podemos observar também no incrível projeto do Dicionário dos intraduzíveis, coordenado por Barbara Cassin e lançado no Brasil pela editora Autêntica. A possibilidade de traduzir é, em grande medida, uma postura diante do mundo e diante do outro, do diferente, do distante. Nessa perspectiva, a “traduzibilidade” faz parte da consciência que preciso ter de que minha língua não é o centro do mundo, ou a instância reguladora dos afetos e dos horizontes. Reconheço a limitação do meu mundo ao exercitar o desejo de traduzir aquilo que ainda não conheço.
KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de Wilcock, ficção e arquivo (2018).