"Assim acabava aquilo que foi uma grande empresa nacional, cujo nome sonoro retinia por toda parte. Os aviões já tinham passado a outros donos; as instalações serviam a outros fins; chegara a vez das poltronas e dos açucareiros, das latas de comida, copos e cobertores, da bugiganga que antes, integrada à máquina voadora, participava de suas propriedades mágicas, pois o avião continua a ser mágico, à medida que a viagem aérea se torna cada vez mais rotineira. E ninguém ali sentia nada de especial diante do corpo derrotado da Panair, de seus intestinos à mostra. Quase todos teriam usado suas linhas, comido seus jantares, lido seus jornais brasileiros em Paris, mas a hora era de liquidação, e não de saudades. E o leilão ficava mais lúgubre, quem dá mais? Em meio à indiferença geral, que é marca registrada de leilões. Dou-lhe três
Em dado momento, senti que uma das miniaturas de avião, que iam ser igualmente apregoadas, manifestava sinais de inquietação. Positivamente, queria evadir-se, fugindo à sorte comum. Num esforço de que não revelarei a fórmula, encolhi-me todo para caber dentro do aparelho e, em silêncio, como fazem os aviões decaídos de sua glória, ele rompeu as paredes do edifício, e alçou voo sobre o Rio de Janeiro levando-me consigo para onde os aviões se tornam estrelas inacabáveis, sem remorso dos homens."
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Nos últimos parágrafos de Leilão do ar, crônica publicada no dia 2 de outubro de 1969, que marcou sua estreia no Jornal do Brasil, Carlos Drummond de Andrade testemunha o pregão que pulverizou os últimos vestígios da maior empresa de aviação do país, fechada abrupta e autoritariamente pela ditadura militar em 10 de fevereiro de 1965, sem que houvesse dívidas ou indícios de falência. No leilão, além de curiosos como Drummond, estava presente Maria Carola Gudin, que tinha um motivo especial para estar ali. Ao contrário do que escreveu o poeta mineiro, para ela, não era hora de liquidação, e, sim, de saudade. Havia sido aeromoça da Panair do Brasil.
Filha de uma família rica e tradicional do Rio de Janeiro, Carola conseguiu esse, que foi seu primeiro emprego, de forma inusitada. Em março de 1954, acompanhava uma amiga argentina (ex-esposa de Lutero Vargas, filho de Getúlio), à procura de trabalho. Como a colega era de outro país, não poderia ser contratada pela empresa. O funcionário responsável pela seleção então voltou-se para Carola. – Quais línguas você fala? “Inglês, francês e agora estou aprendendo espanhol”, respondeu. Chamou a atenção pela beleza e desenvoltura, alguns dos atributos para uma aeromoça. Mas havia um detalhe: tinha apenas 14 anos.
Com a astúcia, inconsequência e o ímpeto juvenil somados ao peso do influente sobrenome, Carola conseguiu burlar esse entrave e, surpreendentemente, começou a trabalhar sem o conhecimento e consentimento dos pais. “Todo dia, eu inventava uma mentira qualquer pra minha mãe, mas sempre chegava em casa no final da tarde, até que, num voo para Belo Horizonte, o avião enguiçou. Telefonei pra ela: ‘Mãe, não se preocupe, não vou chegar hoje, porque sou aeromoça e o avião...’ – Você é o quê?! Você tá louca?! Você é menor de idade! Voltamos somente no dia seguinte. Minha mãe já estava na Panair fazendo um escândalo. Ela era de Campina Grande, parente de cangaceiro”, diverte-se com a lembrança.
À beira de ser desvinculada, a garota, inconformada, ligou para seu tio, Eugênio Gudin, então ministro da fazenda do governo Café Filho. E fez uma ameaça: “‘Caso eu seja mandada embora, sairei daqui direto pra falar com Dr. Samuel Wainer, que é pai de minha amiga Raquel, e vou contar os podres da família inteira’. Ele sabia que eu era capaz. E o Última Hora (dirigido por Wainer) já fazia uma campanha contra meu tio. Então, fiquei. Mas só podia voar no voo que não tivesse pernoite. A primeira viagem com pernoite foi ao Recife, dormi no Hotel Boa Viagem”, recorda.
Tripulação da Panair do Brasil, em foto de 1961. Foto: Arte sobre foto de Henrik Soderberg
Em pouco tempo, a jovem aeromoça conseguiu ser escalada para o ansiado voo para Lisboa. Foi numa dessas viagens que conheceu o piloto Cid Prado. “Moreno de olhos verdes... Namorei, depois fugi de casa e me juntei com ele, que era casado e tinha dois filhos. Imagine o escândalo. Foi um salseiro. Mas ele ficou me atazanando, porque não queria que eu ficasse na empresa.” Carola trabalhou na Panair do Brasil de março a outubro de 1954, mas se tornou a sua aeromoça mais conhecida. “Cid me levava para todo canto que ia. Eu não podia servir a cabine, mas ajudava os colegas. Continuei amiga deles. Todo mundo irmão, todo mundo me conhecia. Eu e ele continuamos amantes, até que dois, três anos depois, fiquei grávida. Ele acabou se separando e passamos a viver juntos. Nesse meio tempo, meu pai morreu em 1959, foi quando meu filho Eduardo nasceu.”
A Panair seguia como uma das empresas mais renomadas do país, até que o inesperado anúncio da suspensão de funcionamento, comunicado no telejornal Repórter Esso, no dia 10 de fevereiro de 1965, chocou o país, os cinco mil funcionários e os donos Mario Wallace Simonsen (também proprietário da TV Excelsior) e Celso da Rocha Miranda. Segundo o jornalista Daniel Leb Sasaki, autor do livro Pouso forçado, Simonsen, acionista em mais de 30 empresas de diferentes setores, antes do golpe de 1964, já estava sob ataque de políticos e da mídia, incomodados com seu crescente poder econômico, e Miranda “estava particularmente visado pelas Forças Armadas, porque era amigo íntimo de Juscelino Kubitschek, candidato forte para as eleições presidenciais de 1965 (anunciadas pelo governo Castelo Branco), que, no fim das contas, não aconteceram”.
No mesmo dia do fechamento da Panair, a Varig apoderou-se dos voos da antiga concorrente para França, Portugal e Alemanha. Ficou com as rotas intercontinentais, herdou aeronaves e hangares no Galeão, e parte das agências consulares que a Panair montou no exterior. Além disso, os aeroportos construídos pela Panair, como os de Recife, Salvador, Fortaleza, Natal, Maceió, São Luís, Macapá e Belém, foram todos confiscados. Sob estresse e perseguição, Mario Wallace Simonsen fugiu para Paris, onde teve um enfarte fulminante no dia 23 de março de 1965, aos 56 anos, abrindo caminho para que a TV Globo e Roberto Marinho ocupassem o lugar que seria de sua emissora.
Hoje, a recordação da Panair, fundada há 90 anos, permanece no almoço anual dos ex-funcionários (“Em volta desta mesa, velhos e moços / Lembrando o que já foi”). O encontro da chamada Família Panair acontece desde 1966 e, há 15 anos, vem sendo acompanhado por Daniel Leb Sasaki. “É uma confraternização familiar, um momento de rever colegas e rememorar o legado que construíram juntos, além de reverenciar quem já foi embora. O que percebemos, ultimamente, é a presença também das novas gerações – filhos, netos e até bisnetos –, além de agregados, no evento. Eles contribuem para que a história seja sempre lembrada. É a saudade do que a maioria classifica como a melhor época de sua vida.”
Além da crônica de Drummond, as lembranças da empresa foram descritas pelo letrista Fernando Brant, em Saudades dos aviões da Panair (Conversando no bar). A letra, entregue ao parceiro Milton Nascimento, virou uma das mais belas canções nascidas do sentimento da saudade e firmou-se como obra-prima da música brasileira na interpretação de Elis Regina. Milton revelou que chorou bastante ao ouvi-la no álbum (e no show) Saudade do Brasil, lançado em 1980 pela cantora. Em uma frase da letra/poema, Brant define a importância da história: “Descobri que minha arma é o que a memória guarda”.
A música também emociona bastante Carola Gudin: “Quando chega no trecho ‘a primeira Coca-Cola foi, me lembro bem agora, nas asas da Panair...”. A empresa trouxe a Carola a primeira grande paixão de sua vida, o piloto Cid Prado, com quem passou 35 anos e permaneceu amiga até a morte dele, e o amor para toda a vida, seu filho único, Eduardo. “Eu choro por causa da Panair do Brasil, choro de saudade do meu pai, choro de saudade do meu filho. Eu choro por tudo e por nada. Morrer faz parte, meu pai se matou. Então morreu porque quis, na hora que quis. Todo mundo dizia ‘Que covardia!’. ‘Covardia’ um caralho! Desculpe. Dar dois tiros no peito não é covardia não, precisa ser muito macho. E Eduardo morreu num acidente.”
No dia 16 de abril de 2001, a família estava voltando de um final de semana em Parati, em carros separados. Eduardo saiu primeiro. De um dia ensolarado, começou a chuviscar. “Ele parou num posto de gasolina para botar o casaco, se proteger contra a chuva. E quando abriu a mochila, viu minhas chaves e ligou: ‘Mãe, teu chaveiro está aqui’. – Não tem problema, filho. Eu tô com Fernando (segundo marido). Eduardo morava aqui perto, a duas quadras de mim, na Barata Ribeiro, nós ficávamos muito perto um do outro. Ele se formou nos EUA. A gente tinha uma vida tão boa nos EUA, mas voltamos por causa do Cid. Eduardo fez faculdade e PhD lá. No Brasil, trabalhava numa empresa de planejamento de climatização de meio ambiente. Quando saiu do posto, viu nosso carro, que vinha logo atrás, e então parou no acostamento. Um caminhão, que ia pra São Paulo, perdeu a direção, atravessou o canteiro que separa a pista que vai e a que volta, passou na frente do nosso carro e entrou no acostamento onde Eduardo estava parado. O para-choque bateu na altura da cintura, ele caiu ali e morreu aos 40 anos.”
“A saudade é uma doença”, dissera Carola, no começo da entrevista. Hoje, com 81 anos, apesar de tudo, ainda mantém a jovialidade no espírito, na voz, não abandona o bom humor: “O primeiro marido era 20 anos mais velho que eu, o segundo 20 anos mais jovem. Eu sou tão burra, Débora, que levei 35 anos pra descobrir que Cid era um chato. Ele e Fernando ainda ficaram amigos, pra encher o meu saco”. Em 2012, a ex-aeromoça (“aerovelha”, ela corrige), que virou advogada, lançou o livro de memórias Um voo pela vida (Editora Moderna) e, neste ano, doou, ao Museu Histórico Nacional, tudo o que adquiriu naquele leilão de 50 anos atrás, para a exposição permanente sobre a Panair do Brasil, que terá abertura ao público a partir deste mês de julho.
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A saudade pode não ser uma doença classificada pela Organização Mundial da Saúde, mas dissemina-se pelo mundo. O antropólogo Roberto DaMatta, em Sete ensaios de antropologia brasileira (1993), observou que não é um sentimento apenas individual: “A saudade é dada coletivamente. Ela está dentro e fora de nós, tal como estamos todos dentro (e fora) de uma imensa saudade coletiva que nos engloba e nos faz hesitar e desconfiar das visões muito positivas do futuro, revelando nosso pendor antiburguês e relacional de sistematicamente idealizar o passado, de confrontarmos sempre negativamente passado e futuro, discutindo pouco o lugar do presente e o presente como lugar”.
O nosso cotidiano é permeado, sem percebemos, pela saudade: a decoração vintage; a cozinha afetiva dos restaurantes que tentam imitar a comida da vó; o Canal Viva com suas reprises de novela e programas antigos; o Vale a pena ver de novo; os remakes de filmes; os shows comemorativos de discos históricos (The Wall, Clube da Esquina, Disintegration); a indústria de cosméticos; as bandas covers de grupos que já acabaram; as apresentações dos remanescentes da Jovem Guarda; o Facebook que lembra o aniversário do amigo que já morreu (cuja conta permanece ativa); o cinema (Crepúsculo dos deuses, Amarcord, Cinema Paradiso, Cidadão Kane, Morro dos ventos uivantes, De volta para o futuro); o revival de décadas passadas na moda; o festival da seresta; os imitadores de Elvis Presley; os espetáculos com hologramas de artistas que já morreram; a volta do vinil às lojas; a música brasileira repleta de saudade (choro, frevo, samba, MPB; a bossa nova, que rompeu com a saudade, a “dor de cotovelo” do samba-canção, mas virou objeto saudoso); o inesperado cheiro de um perfume que passa e lembra alguém; a Rádio Saudade FM; a Rua da Saudade; o Dia da Saudade (30 de janeiro); uma das 10 hashtags mais usadas nas redes sociais, com quase 500 milhões de postagens, #TBT (throwback thrusday, que significa “reminiscência da quinta-feira”, em que se posta uma foto antiga); o cheiro e o gosto de uma comida que nos remete ao sabor do prato preparado por alguém querido.
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“Durante uma viagem de férias ao Porto, eu e meu marido fomos almoçar num restaurante que tinha um menu com preço fixo. Escolhi um bacalhau que, pelo nome, não tinha muitas pistas do que se tratava. Mas, quando o provei, fiquei muito impactada, porque era o bacalhau que minha mãe sempre fazia no Natal, uma espécie de creme de bacalhau. Aquele gosto me fez chorar copiosamente, porque nunca havia comido esse prato, que não fosse feito por ela. Hoje morando em Portugal, sei que é uma receita rara, que não é encontrada facilmente nos restaurantes do país”, conta a curadora pernambucana Cristiana Tejo, que perdeu a mãe há 11 anos. “Para mim, é na comida que se encontra o gatilho da saudade. Tanto na ausência dela em meu cotidiano, quanto quando a encontro por acaso em algum prato português ou africano. Aliás, é impressionante o quanto nossa culinária tem em comum com essas duas gastronomias.”
“A coisa que mais sinto saudade na minha vida é da minha mãe”, declara o cantor e compositor Otto. “Todos os dias lembro dela. Lembro do seu acalanto, do seu cheiro, do seu amor e doçura. Ela foi uma grande mulher, cheia de força pra nos educar, cheia de brio, de caráter. Nunca pensei que pudesse perdê-la. Mas se foi e todos os dias eu me lembro dela. Sonho com ela. O bom é que hoje sou pai e tento ser tão carinhoso quanto ela foi conosco. Dona Arlete é uma dádiva nas nossas vidas. Da minha terra, tenho muita saudade de toda ela. Desde o cheiro de chuva lá em Belo Jardim, da minha infância agrestina e todo o espírito interiorano, da cultura, das festas dos Santos, os banhos na Lagoa das Inhumas. Até o Recife, minha amada capital, que formou meu intelecto, meu pensamento contemporâneo, onde conheci e fiz parte de uma grande efervescência musical, cinematográfica, cultural, onde fizemos uma bela transformação, cheia de identidade nordestina, brasileira, mundial, contemporânea. Sinto saudade de quando eu saía de (ônibus) CDU, cheio de sonhos. Sinto saudade de conviver mais com minha gente. Amo as minhas raízes, amo esse jeito de ser pernambucano”, enumera.
O artista fez parte do Manguebeat, movimento musical que, no começo da década de 1990, tirou a capital pernambucana de um marasmo cultural. A figura que capitaneou esse levante artístico, Chico Science, desfrutou pouco tempo de seu talento. Após lançar dois discos aclamados, Da lama ao caos (1994) e Afrociberdelia (1996), morreu em um acidente de carro, com apenas 30 anos, e virou, desde então, uma das irremediáveis saudades coletivas de Pernambuco. “A saudade é pra sempre, nunca acabará. É muito duro perder um amigo tão próximo, no auge da carreira, com muitos planos pela frente. Sempre que eu viajava para os lugares por onde passamos, batia uma tristeza, pela lembrança dos inesquecíveis shows e dos bons momentos vividos. Ele era inconformado com a ignorância das rádios e do mercado, mas parou de reclamar, depois que ganhamos o mundo. ‘Paulo, meu irmão, vamos embora pro mundo, quero ficar batendo cabeça aqui não’”, lembra Paulo André Pires, empresário de Chico Science & Nação Zumbi.
Selfie feita por Chico Science, com câmera analógica, enquadra o artista, Paulo André, Jorge do Peixe e Toca Ogan. Foto: Arte sobre acervo pessoal de Paulo André Moraes
Paulo André estava negociando a ida de CSNZ ao Japão e outras agendas de shows internacionais, quando aconteceu o acidente. O artista estava muito animado com o futuro que se desenhava para ele e a banda. “Prefiro guardar na lembrança momentos históricos que vivemos juntos. Na primeira turnê, ficamos uma semana em Nova York, fazendo shows. Depois da apresentação no Central Park, aberta ao público, testemunhei, três vezes, Chico ser reconhecido nas ruas, ‘Hey man, nice show at Central Park, really’. Chico dizia ‘Tais vendo, né?’, e soltava uma gargalhada de felicidade. Isso não tem preço, jamais esquecerei. Chico era gente fina, tranquilo, atencioso e focado, muito focado. Só conseguimos fazer tanto em tão pouco tempo, porque encarávamos como uma guerra, pra desbravar o Brasil e o exterior. Os jovens de hoje acham que CSNZ eram muito maiores mercadologicamente do que realmente eram, talvez pelo fato do Chico ter se tornado um mito, depois da precoce morte”, comenta Paulo André.
O produtor revela que somente agora, 22 anos depois da morte do amigo, está conseguindo mexer nos arquivos daquela época, para escrever um livro de memórias. “Flyers, revistas, jornais e minhas agendas e anotações. Tudo isso está ajudando minha memória para o livro que estou escrevendo. É muito difícil pra quem não se formou, nem tem disciplina pra escrever. Mas essa bela história tem que ser contada e estou me esforçando. Nem sou tão emotivo, mas sempre que estou nessa pesquisa, as lágrimas chegam. Lágrimas de saudade. As fotos me trazem a memória das conversas com ele. A banda era muito jovem e imatura, portanto, as conversas de condução de carreira e de planejamento eram sempre entre mim e ele.”
Na mais recente edição do Abril pro Rock, Paulo André realizou um debate no auditório do Cais do Sertão, com mulheres. Na plateia, estava Louise Taynã (Lula Lira), cantora e filha de Chico Science, que tinha seis anos quando o pai faleceu. “Menina de ouro, ele morreria de orgulho dela. Aprendi que tudo tem seu tempo nessa vida. Não existe momento, a gente faz o momento. Nunca mais consegui colocar um disco de CSNZ pra tocar, apesar de ouvir muito por aí. Há pouco, parei pra escutar um show ao vivo no Sfinks Festival, na Bélgica. Chico domina a plateia como se as pessoas entendessem as letras, como se já o tivessem visto ao vivo. Foi a única vez que ouvi a banda sozinho, depois que ele morreu. Estou conversando com Louise pra lançar em vinil. São 40/45 minutos de show, que foi o tempo que o festival nos deu, mas a força e vitalidade impressionam.”
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O cultivo da memória de artistas que construíram a música pernambucana também se faz presente no trabalho do Coral Edgard Moraes. Formado em 1987, por filhas, netas e bisnetas do compositor, o grupo canta o repertório do autor de Valores do passado. Na letra do frevo, lançado em 1962, Moraes elenca 24 blocos já extintos e termina citando uma agremiação imaginária: “E o Bloco da Saudade assim recorda tudo que passou”. Seu sonho era reviver os antigos e líricos carnavais, mas a idade avançada e a saúde não permitiam.
Onze anos depois, em 1973, a composição inspirou um grupo de pessoas (formado pelos amantes do Carnaval, Zoca Madureira, Egildo Vieira, Sevy Nascimento e Marcelo Varella) a criar o Bloco da Saudade, com a bênção de Edgard Moraes. Em 1974, o grupo saiu às ruas do Recife (ainda sem as fantasias nas cores vermelho, azul e branco), para se tornar um dos mais conhecidos blocos do carnaval pernambucano, concretizando o sonho do compositor, que faleceu naquele mesmo ano. O bloco inspirou a criação de outros novos (alguns adotando o nome de grupos antigos), como Nem Sempre Lily Toca Flauta, Aurora de Amor, Um Bloco em Poesia, Flor do Eucalipto, Sinta Azul, Bloco Esperança, Flor da Vitória-Régia, Bloco das Ilusões, Cordas e Retalhos, Confete e Serpentina, Pára-quedista Real e Eu Quero Mais, entre outros.
“Quando fundaram o Bloco da Saudade, todo domingo de Carnaval, eles iam à casa de meu avô, em Campo Grande, como se fosse para pedir a bênção. Eu me lembro do velório do meu avô, do caixão, das pessoas chorando e cantando. O Coral Edgard Moraes foi criado para homenageá-lo. Depois que ele faleceu, todo domingo a gente ia para a casa de minha avó, e ia ouvir frevo de bloco, ouvir chorinho. A gente dá continuidade à história do nosso avô no Coral, cantando também outros mestres. Hoje, o que me alimenta pra manter o grupo é minha mãe, porque é uma luta manter esse trabalho. Ela é a matriarca e não me deixa desistir. O Coral fez 33 anos. É muito gratificante quando as pessoas respeitam a obra de meu avô. Espero que meus filhos prossigam. A gente quer que esse trabalho se perpetue e não caia no esquecimento”, destaca a flautista e cantora Valéria Moraes, integrante do conjunto formado em 1987.
A instrumentista se emociona, enquanto concede a entrevista. “A gente vai falando e se lembra de muita coisa e pensa naquilo que a gente já fez. E é saudade de pessoas que já se foram, como meu pai e meu avô, que ouço as histórias da minha mãe e das minhas tias. Nós somos uma família festeira, unida, e a gente não quer que isso se acabe. E é saudade que dói, mas é boa. Quando a gente chora, não é de tristeza, é de saudade. De um tempo bom, que a gente viveu, que quando a gente começa a falar, sente o cheiro e a vibração daquele momento. Então, é uma saudade que lhe empurra pra frente, e faz dizer ‘eu não posso deixar isso acabar, isso tem que continuar’”, afirma Valéria.
Para ela, as composições de seu avô encaram a saudade de uma forma positiva e lírica. “É de uma riqueza a música dele, que a gente fica encantada por ser uma pessoa que não teve uma formação acadêmica, que aprendeu música sozinho, depois que faleceu o irmão (‘O velho Raul Moraes’, dos ‘carnavais saudosos’ do clássico Evocação nº 1, de Nelson Ferreira). Raul Moraes tinha formação acadêmica, foi professor de Conservatório, tocou na Europa, mas morreu muito jovem (em 1937, aos 46 anos). Meu avô resolveu dar seguimento à obra do irmão, aprendendo música, a escrever e a compor.” Edgard fez para Raul A dor de uma saudade, que lamenta a perda, mas indica uma esperança: “Hão de voltar os tempos felizes que passei em outros carnavais”.
Na primeira imagem, Jacob do Bandolim rodeado pela esposa e os filhos;
na segunda, compositor Edgard Moraes segura o violão em pose junto com familiares. Fotos: Arte sobre acervos pessoais
Casada com o renomado bandolinista do choro pernambucano Marco César, Valéria ressalta as duas vertentes do chorinho, da alegria e das melodias saudosistas, como Vibrações, de Jacob do Bandolim. “Aprendi a ouvir essas músicas por causa da minha tia Iara, filha mais velha de Edgard Moraes, que era fã de Jacob. Ia para casa de minha avó nos finais de semana, em Campo Grande, e a gente acordava ouvindo chorinho.”
Jacob inspirou a música que mais representa a saudade sentida por um filho pelo pai, Naquela mesa. “Eu não sabia que doía tanto/ Uma mesa num canto, uma casa e um jardim/ Se eu soubesse o quanto dói a vida/ Essa dor tão doída não doía assim/ Agora resta uma mesa na sala/ E hoje ninguém mais fala do seu bandolim/ Naquela mesa tá faltando ele/ E a saudade dele tá doendo em mim.” Essa música, feita pelo compositor e jornalista Sérgio Bittencourt, filho do gênio do bandolim, ficou imortalizada no vozeirão de Nelson Gonçalves. Em 2010, recebeu uma versão de Otto, no elogiado disco Certa manhã, acordei de sonhos intranquilos.
Na época, o pai de Otto ainda estava vivo, mas, em fevereiro de 2018, ela ganhou outro significado. O cantor interpretou a música no palco do festival Rec Beat, no encerramento do Carnaval. Naquela noite, tinha voltado do enterro de seu pai. “Quis homenagear Dr. Marconi. E ela é singular, pois, mesmo que não se conheça a história, automaticamente se lembra da figura paterna. Ela tem esse dom de traduzir essa saudade. Não existe explicação para esse fenômeno da música brasileira. Com ela, meu pai lembrava do pai dele, eu lembro do meu pai e minha filha Bettina lembrará de mim. E assim vamos espalhando o amor. E juro que eu e todo o Paço Alfândega choramos de saudade do pai. Foi um dia muito especial, que afirmou, com muita poesia, porque estou aqui na Terra: para cantar, pra mexer com os sentimentos. A saudade atravessa os séculos cheia de compaixão e vida.”
Ainda no disco Certa manhã.., Otto compôs Saudade, traduzindo a resignação de quem carrega o sentimento consigo: “Como um bom barco no mar, eu vou, eu vou/ Como um bom barco no mar, eu vou, eu vou”. “Pra compor, a gente tem que estar inteiro com os sentimentos, tem que sentir muito, para que a poesia flua”, conta o artista. “Geralmente eu componho com minhas lembranças, melancolia e memória. A saudade tem um lugar fundamental na criação. Pois ela fica, não se apaga, mexe dentro da gente. Todas as minhas músicas têm memória afetiva, têm que ter sentimentos, têm que sangrar. A partir do meu segundo disco, o Condom black, fiz minha primeira regravação, Pra ser só minha mulher. Depois vieram outras, Naquela mesa e Meu dengo, de Roberta Miranda (presente em Ottomatopeia, de 2017), e todas elas da memória afetiva, da infância, da puberdade. São lembranças.”
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Uma das músicas brasileiras que mais despertam o sentimento de saudade é Rua Ramalhete, do compositor mineiro Tavito, falecido em 26 de fevereiro deste ano. Além de Casa no campo (escrita com Zé Rodrix) e Começo, meio e fim, Tavito é autor de jingles emblemáticos, como o da candidatura de Leonel Brizola em 1989, tema do Tetracampeonato de 1994, em parceria com Aldir Blanc (“Eu sei que vou, vou do jeito que sei”) e o jingle Marcas do que se foi (“Este ano quero paz no meu coração”). Mas Rua Ramalhete é a que mais marcou sua carreira. “Em 2004, a prefeitura de Belo Horizonte promoveu um concurso para escolher o hino oficial da cidade. Deu ela disparado, seguido, mas bem de longe, da clássica Ó, Minas Gerais”, conta o jornalista pernambucano Gilvandro Filho, amigo e parceiro musical de Tavito, com quem compôs 10 músicas. “Ela não é só mineira. É uma canção universal que toca as pessoas, porque fala da saudade temporal, de épocas, lugares, pessoas e situações que marcaram a vida da gente.”
A famosa expressão “a melhor época da minha vida”, que nos indica a reminiscência de um tempo aprazível, é por vezes usada por saudosos da ditadura militar no Brasil. Para o historiador Rodrigo Patto, pesquisador do período e professor da UFMG, essa saudade é uma forma de recusar o presente e voltar-se para um passado idealizado, que teria sido melhor do que a vida atual. “A sensação de que vivemos um momento de crise, de intranquilidade, pode estimular as saudades por períodos anteriores. A principal imagem mobilizada por essa visão nostálgica é a de que, na ditadura, haveria mais segurança e tranquilidade, ao contrário da violência e ‘balbúrdia’ nos dias atuais. Muitos dos saudosistas dizem que não havia violência, mas é apenas porque não aconteceu com eles.” E, também, porque, com a censura na imprensa, existia a imagem de um país idílico sem corrupção, fome e violência.
O jornalista e crítico de cinema Celso Marconi, prestes a completar 89 anos, é um saudoso dos tempos simpáticos de JK. “Gostaria de estar vivendo nos anos 1950, pois foi realmente o meu começo, como digamos, intelectual. Meu primeiro disco foi o primeiro de Dóris Monteiro. Meu curso de Filosofia. Minha primeira mulher, meu primeiro filho, primeiros amigos. O Recife vivido a partir do Edifício Vieira da Cunha, no Bairro de Santo Antônio. Os primeiros escritos em jornais. Junto com Jomard (Muniz de Britto), promovi um curso de cinema.”
Responsável pela programação de salas de exibição dos extintos Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mispe) e Cine Ribeira, no Centro de Convenções, nos anos 1980 e 1990, Celso é realista com relação ao mercado cinematográfico atual. “Os cinemas foram importantes no século XX. O cinema mudou o mundo, como arte e moldura física. Inclusive acho que Joyce moldou Ulisses (1904) como se moldaria um filme, os seus capítulos. Porém, a sala de cinema se esgotou e agora serve a outro tipo de espetáculo, que não me interessa. O streaming é o sistema atual. Quando o melhor do ser humano predominar na sociedade, então teremos a grande arte. Por isso realmente tenho saudade do futuro. Ontem vi uma notícia de que, em 2040, todos os veículos serão movidos à eletricidade e isso me deu saudade, pois eu não estarei aqui pra gozar isso... Quanta coisa boa não perderei ... hahahaha!”
“Essa nostalgia não sinto. Não tenho vontade de reviver, mas de viver o desconhecido. Sinto saudade das pessoas, mas não de épocas passadas”, afirma o coautor de Gaiola da saudade (com Maciel Salu), o cantor, compositor e músico pernambucano Jam da Silva. “Enquanto artista e andarilho sonoro, precisei, por muito tempo, enganar a saudade. Tentava, pois era muito difícil pra mim. A cada viagem, muitas despedidas. O ir e vir já foi bastante delicado. A gente vai ligando afetos pelos cantos e, na medida em que aumentam os afetos, aumentam as saudades. Não damos conta de estar com todos ao mesmo tempo, mas estamos de alguma forma conectados a todos. É nossa sorte e maldição”, avalia o artista, que morou 10 anos no Rio de Janeiro e oito meses em Paris.
No ensaio Saudades de casa (2013), Ana Almeida, doutora em Literatura pela Universidade de Lisboa, recorda que o pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein sobre segurança absoluta pode inspirar-nos a relacionar o estado de estar longe de casa, e de sentir saudades de casa, com certa experiência de insegurança, mas isso não nos impede de ver essa experiência de insegurança como estado acrescentado de esclarecimento. “Ter saudades de casa é por vezes uma maneira de perceber alguma coisa sobre a nossa casa. As saudades que sentimos de um tempo de nossa vida – da quietude das décadas em quem ninguém adoeceu nem morreu, e todos se casaram e saíram de férias – acompanham, por vezes, o florescimento de um ponto de vista sobre esse tempo. Uma década pode ser a casa de que temos saudades. E a vida que se lhe segue, uma prolongada estrada no estrangeiro”, observa Ana.
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Longe de casa desde 2001, a socióloga pernambucana Betânia Ramos Schröder, residente na Alemanha, lembra que “a saudade é a confirmação das coisas que a gente viveu. Esse afastamento do que se viveu e a necessidade de preservar a memória do que foi vivido, os laços”. Betânia saiu do Recife para morar com o engenheiro alemão Edgar Schröder, que conheceu no Brasil em 1999, quando trabalharam na cooperação técnica alemã. Ele, em um projeto de planejamento urbano, ela, em um desenvolvimento rural. Juntos, moraram e trabalharam na Turquia, Angola, Bósnia e Alemanha. Em 2015, o casal tinha acabado de comprar uma casa e o filho estava com dois anos, quando Edgar recebeu o diagnóstico de câncer e a expectativa de mais nove meses de vida.
“Quando você vive a morte de alguém que você ama, redefine muita coisa na sua vida. Você perde medo, eu fiquei muito mais corajosa, com mais ousadia de falar, de fazer coisas. Estou nessa fase de reconstrução profissional. Agora vai fazer três anos da morte de meu marido. Eu tive várias doenças. No período da doença dele, fui diagnosticada com degeneração da mácula. Tenho uma miopia muito grave, mas agora estou num processo de cegueira e tenho que tomar uma vez por mês uma injeção nos olhos para que não acelere essa degeneração. Tive doenças psicossomáticas e depressão. Tive altos e baixos. Mas, do ano passado para cá, começo a dar novos significados à minha vida”, relata Betânia.
Betânia Ramos Schröder com o filho e o marido Edgar, na Alemanha.
Foto: Arte sobre acervo pessoal.
No período da doença de Edgar, o casal escreveu e-mails, posts nas redes sociais, expondo para todos a terrível situação. Mas não recebia um retorno satisfatório dos amigos e dos conhecidos alemães. “Se você não tem uma rede já estabelecida, fica realmente só. Se não fosse a nossa família, minha irmã veio do Brasil e a mãe do meu marido, que mora distante, vinha a cada duas semanas, isso teria acontecido. É uma sociedade altamente industrializada, de efetividade, de excelência. Então, essa imagem do indivíduo doente, fraco, é a contradição da efetividade. As pessoas não sabem lidar com a fraqueza humana. Isso tem a ver com o tabu do sofrimento e da morte. A gente abriu o jogo para as pessoas, mas eram pouquíssimas que entraram em contato. Nesses nove meses, foram praticamente nove meses cuidando do meu filho e do meu marido doente. Depois que ele morreu, muitas pessoas evitavam falar comigo. Esse período de luto, você se alegra com alguém que quer preservar a memória da pessoa que morreu. Você tem muito medo que essa memória desapareça. Nem a mãe do meu marido queria falar sobre ele. Fiquei praticamente isolada”, recorda Betânia, que prepara um livro sobre suas experiências.
Quando fez um ano da morte de Edgar, a sogra de Betânia questionou por que a nora ainda guardava as roupas do marido. “Você tem que pensar para frente”, aconselhou. “A casa da mãe do meu marido só tem uma foto escondida num cantinho. Ela não quer se confrontar com essa dor. Detestou vir aqui em casa e ver um monte de fotos. As coisas dele espalhadas e eu só queria falar dele. Ela chorava porque não queria se confrontar com essa dor, mostrar essa fraqueza da emoção, pedia desculpas por chorar. Os alemães sofrem no silêncio. O sofrimento tem que estar no campo do privado, algo que é muito preservado aqui na Alemanha.” Para ela, então, não se trata de ser um povo indiferente, mas que faz questão de preservar uma imagem pública de invencibilidade.
Para a socióloga, ainda, esse comportamento se relaciona ao resultado da Segunda Guerra. “Se a gente fala da saudade como memória do passado, vê a história da Alemanha. Um país, que perdeu a guerra da forma como perdeu. Em Frankfurt, onde moro, 80% da cidade foi destruída. A memória física foi dilacerada. Quando se trata dessa relação com a memória, os alemães olham o passado e veem o sofrimento que passaram também como refugiados, depois da guerra. Por isso não olham para trás, porque existe uma humilhação perante a humanidade, por terem perdido a guerra. Há uma estigmatização dos alemães por conta do Holocausto. Sofreram a humilhação de morar de favor em casas de desconhecidos. E era gente que tinha dinheiro e perdeu tudo na guerra. Acredito que essa autoproteção deles de não olhar o passado, faz com que olhem pra frente. É um país muito efetivo, onde as pessoas trabalham feito loucas. O tempo livre é pra cuidar da casa. Essa cultura cria uma certa rigidez”, avalia.
A palavra saudade não existe na língua alemã. “Tem uma palavra no alemão, que eu acho muito bonita, chamada sehnsucht. A tradução de sehn (ver) e sucht (procurar) significa sentir falta. Seria algo próximo, mas saudade não tem. É uma palavra muito própria nossa. A gente tem essa relação de melancolia. A formação histórica cultural brasileira vem de um desejo de algo que está em algum lugar que paira, que dá esse certo vazio. É uma palavra intraduzível. Para entender essa saudade, é preciso conhecer esse sentimento no Brasil. O banzo é a saudade que nossos antepassados negros trouxeram da África. Arrancados do continente, morriam de saudade. A música negra da América tem relação com o banzo da diáspora.”
Além da violência e da desigualdade social, a formação étnica e cultural brasileira seria também alicerçada pela saudade. “A identidade brasileira tem a saudade muito fortemente ligada à questão do desenraizamento de quem formou o Brasil, seja África, Portugal ou a população indígena dizimada. A melancolia se relaciona com esse inconsciente coletivo, com essas raízes que foram cortadas. As pessoas negras, com todo racismo estrutural, vivem numa sociedade que nos faz invisíveis. Então, o tempo todo a gente está na busca de quem somos, onde é o nosso espaço, onde é a nossa terra. Eu fico feliz que a gente quebrou a ilusão da democracia racial no Brasil, pra falar do racismo, da invisibilidade”, analisa Betânia, que, no mesmo 2016, também perdeu um irmão, assassinado aos 26 anos, no Recife, sendo mais uma vítima do genocídio da população negra do país.
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Em sua obra A saudade brasileira (1948), o escritor paraense Osvaldo Orico afirmou que “nenhuma palavra traduz satisfatoriamente o amálgama de sentimentos que é a saudade. Seria preciso nos outros países a elaboração de um conceito que também amalgamasse um mundo de sentimentos em apenas um termo”. A observação reflete a ideia de que a palavra só existe na língua portuguesa. “Saudade” ficou na sétima posição de uma pesquisa da empresa britânica Today Translations, que entrevistou tradutores de vários países e chegou à lista das 10 palavras de mais difícil tradução para outros idiomas. A empresa Global Lingo também apontou “saudade” e, junto dela, “cafuné” (“o ato de passar os dedos pelo cabelo de alguém de uma forma amorosa”), como as mais trabalhosas do português.
Em outros idiomas, há palavras com significado próximo. Para traduzir “Tenho saudade de você”, algumas línguas utilizam-se de expressões verbais e não de um substantivo: Te extrañono (espanhol); Ich vermisse dich (alemão); I miss you (inglês); Tu me manque (francês), Tu mi manchi (italiano). Todas significam, ao pé da letra, “eu sinto sua falta”.
No Brasil, as palavras saudade, nostalgia, melancolia e memória podem ser confundidas. Saudade é “sentimento provocado pela distância de (algo ou alguém), pela ausência de uma pessoa, coisa e local, ou ocasionado pela vontade de reviver experiências, situações ou momentos já passados”. Nostalgia, “tristeza causada pela saudade de sua terra ou de sua pátria; condição melancólica causada pelo anseio de ter os sonhos realizados; condição daquele que é triste sem motivos explícitos”. Melancolia, “tristeza vaga e indefinida: a melancolia da tarde. Estado de tristeza intensa, traduzida pelo sentimento de dor moral e caracterizada pela inibição das funções motoras e psicomotoras”.
Em A saudade portuguesa (Guimarães Editores, 1914), a crítica literária, escritora e lexicógrafa alemã Carolina Michaelis de Vasconcelos, primeira mulher a lecionar numa universidade portuguesa, a Universidade de Coimbra, explicou a origem da palavra: “Soedade designava um lugar ermo; o estado da pessoa que está só ou solitária sem companhia, quer no meio do mundo, quer apartada do mundo. Mas também significava isolamento, em abstrato. Visto que sempre houve e há quem ame a solidão cingindo-se ao ditado ‘antes só do que mal-acompanhado’, compreende-se que à soedade muita vez se apusessem qualificativos como amena e deleitosa, conquanto para a grande maioria fosse e seja triste. Das acepções fundamentais de soedade há vestígios ainda na soidade do século XVI. Recorrendo ao Poeta d’Os Lusíadas, vejo que ele emprega soidade como equivalente de lugar vasto, ermo e solitário, por exemplo onde diz ‘Lá numa soidade, onde estendida/ A vista polo campo desfalece’”.
Michaelis indica, ainda, que “Do sentido de isolamento derivaram muito cedo outros empregos abstratos: o de ausência, abandono, falta, míngua, carência, não só de pessoas, mas também de coisas necessárias ou desejadas, e o de desamparo, tristeza, melancolia”. E, arremata a lexicógrafa: “Finalmente chegamos àquele dó de alma que se costuma apoderar de quem está só e senheiro (solitário). Por extensão designa o mal de ausência, a nostalgia. (Heimweh [nostagia], o desejo de ver a home, sweet home). Todos os desabrimentos, cuidados, e desejos de solidão, a mágoa (conforme já defini a saudade) de já não se gozar um bem de que em tempos se fruía, a vontade de volver a desfrutá-lo no futuro, e mesmo a de possuir aquilo que nunca se possui: a bem-aventurança, o céu”.
A mudança fonética dos termos galaico-portugueses primitivos da saudade (soedade, soidade e suidade), segundo Carolina Michaelis, ocorreram devido ao encontro e à fusão aos termos árabes suad, saudá e suaidá. “A mudança do ui para o au em saudade supõe ser dada, em parte, à palavra sauda (melancolia), sofrimento hepático, depressão, dor do coração”. As raízes gregas da melancolia designam uma deficiência da atividade biliar – “a célebre bile (khole) negra (melas), a saudade, por sua vez, recomendo-lo, localiza-se no coração, se considerarmos que sua raiz deriva do nome árabe sauda, que designa uma dor no coração”.
No documentário e série de TV Saudade (2018), do cineasta pernambucano Paulo Caldas, o escritor e tradutor Milton Hatoum, de origem libanesa, confirma essa tese que contribui para a compreensão desse sentimento complexo. “A origem etimológica da palavra saudade é do árabe sauda, que significa a negra, a cor negra. Tem um poema de um grande cientista árabe, Avicena. Chama-se O cânone da medicina, em que ele usa essa palavra sauda, para falar da bílis negra, que é a melancolia dos gregos, e depois foi incorporada nas canções folclóricas da Bósnia otomana. E a presença árabe na península.”
Ainda no documentário, com depoimentos de vários artistas sobre o sentimento, o autor de Dois irmãos analisou o porquê da existência da célebre saudade portuguesa: “As embarcações que saíam, as caravelas, essa entrega à aventura, à travessia, à descoberta do outro, isso tem muito a ver com o que ficou para trás, com a falta, com a ausência. E, depois, com a decadência de Portugal, com esse quase isolamento com relação à Europa, agravou-se ainda mais. Ficou aquele canto da Península nostálgico de um passado glorioso, quando dominaram o mundo: foram pra Ásia, pra América. E aquilo acabou e cresceu esse sentimento de uma coisa que está irremediavelmente perdida”.
Essa saudade como brasão de um país, evidenciada no fado e na literatura portuguesa, conduziu vários filósofos, no século XIX, a mergulharem na problemática da consciência saudosa, o que deu origem, no início do século XX, ao Saudosismo, movimento estético e literário, religioso e filosófico, de caráter nacionalista, que tinha como fundador o poeta Teixeira de Pascoaes e era integrado por diversos intelectuais do país, dentre eles, Fernando Pessoa (inclusive pela vertente do Sebastianismo, movimento messiânico surgido em Portugal após o desaparecimento do rei D. Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578). Além de sentimento individual, a saudade foi alçada a um plano místico e político, com a pretensão de usá-la como princípio para uma ansiada reintegração do país ao panteão das grandes nações. “Com a saudade, não recuperamos apenas o passado como paraíso: inventamo-lo”, elaborou o filósofo português Eduardo Lourenço.
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Essa característica, ou mesmo tendência, do psiquismo se apegar ao passado mais do que ao presente é explicada na obra de Freud. “A saudade aqui está determinada pelo que o autor chama de princípio do prazer, que consiste na tendência de o organismo psíquico buscar o prazer mesmo que, por vezes, tenha que se abster da realidade. A saudade, ou a nostalgia, aparece como uma dificuldade de o sujeito abandonar um momento que lhe foi supostamente prazeroso, enquanto que a fantasia de se ter outra linhagem aparece como um remédio para tal nostalgia. Trata-se do investimento pulsional na imagem de uma época supervalorizada, quando as coisas pareciam atender melhor ao princípio do prazer.”
Foto: Arte sobre foto de Benício Dias
Para o pai da psicanálise, uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte das sensações que fluem sobre ela. “Ou seja, antes de ser o que é, o eu se encontra, como podemos dizer com Lacan, alienado no campo do Outro. Será somente gradativamente que o sujeito se separará. Freud conclui seu argumento dizendo que ‘originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo’. Assim, o Eu teria um vínculo muito mais estreito do que se supõe com o mundo que o cerca, portanto, com o Outro. O sentimento oceânico, para Freud, não passaria de um resto desse momento inicial, uma espécie de nostalgia da época em que o Eu se fundia ao mundo. E, no amor, o sujeito reviveria esse momento de fusão com o mundo externo, muitas vezes devotando mais investimento no objeto do que em si mesmo e se sentindo como uma parte desse objeto”, escreve o psicólogo e pesquisador mineiro Humberto Moacir de Oliveira, no artigo O nostálgico e o contemporâneo: algumas considerações sobre o lugar do psicanalista no século XXI.
“Essa relação do amor com a saudade de um passado onde o Eu se fundia com o Outro já havia aparecido na obra freudiana, no texto O estranho (1919). Depois de discutir a estranheza que a vagina causa em determinados neuróticos masculinos, o autor ressalta que o órgão sexual feminino é a entrada para o antigo lar de todos os seres humanos, lugar onde cada um de nós viveu certa vez. Ele termina, então, comentando uma frase da sabedoria popular alemã: ‘O amor é a saudade de casa’. O amor seria assim a nostalgia de uma época em que o eu se fundia com o Outro, nostalgia de uma época em que o sujeito tinha um lar”, observa o psicólogo.
“Este o nosso destino: amor sem conta”, sentenciou Drummond, que, com ou sem licença poética, podemos dizer que morreu de saudade. Após a morte de sua filha, a escritora Maria Julieta Drummond de Andrade, em 5 de agosto de 1987, vítima de câncer, o poeta registrou em seu diário: “Assim terminou a vida da pessoa que mais amei neste mundo”. Doze dias depois, teve um enfarte. Intencionalmente não tomou o remédio para o coração e alçou voo para onde os poetas “se tornam estrelas inacabáveis, sem remorso dos homens”.
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Para o sociólogo galego João Ferreira, “os objetos que podem ser sujeitos de paixões e de afeição são: todos os que foram testemunhas do afeto pessoal e individual; e que, de algum modo, estão ligados à emoção, à memória, à inteligência, e nos quais se fixou a atenção de alguém”. Logo, podemos sentir saudade de qualquer coisa: parentes que já se foram, amigos de infância, cheiro da terra molhada, uma remota tarde nublada e silenciosa, o bolo preparado pela mãe, um brinquedo antigo que marcou uma época feliz (“Rosebud”), toque da mão de alguém, som distante do radinho de pilha de algum vigia, abraço do pai, cafuné da avó, os desenhos animados da Hanna-Barbera, cheiro do álcool no papel mimeografado, uma antiga roupa de final de ano, a primeira vez que se ouviu uma música, a sombra de uma árvore, a lancheira da escola, um perfume que saiu de circulação, o casario demolido que deu espaço à Avenida Dantas Barreto, o antigo Cais José Estelita, refrigerante Crush, o suco de pitanga que Paulo Freire queria tomar no exílio, as festas em família, um lugar em que se viveu, “A casa de meu avô…Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade”.
No domingo 9 de outubro de 1960, Manuel Bandeira, saudoso poeta do Recife, do Rio, do Brasil, lembrou que Mário de Andrade faria 67 anos. “Quantas vezes, diante de uma virada no curso nacional ou internacional dos acontecimentos, me surpreendo perguntando qual seria a atitude do amigo. Porque ele tomava sempre posição diante das novidades.” Foi à biblioteca de casa procurar um livro do querido colega, morto em 1945. “Na ilusão de um papo em alguma releitura”, pegou o caderno das Modinhas imperiais (1930). Numa página, achou um comentário escrito à mão por Mário, questionando o que fora publicado por ele mesmo. A leitura dessa nota inspirou o poeta pernambucano a escrever uma crônica e revelou-se a mais sublime viagem no tempo, o mais autêntico retorno ao passado, somente proporcionado pelo somatório arte, memória e afeto.
“Bobagem. Aliás, toda esta parte sobre originalidade modulatória das modinhas está péssima. Não sei onde estava com a cabeça. Me lembro só que muito fatigado já e desejoso de acabar a escritura. O pior é que depois a gente lê, relê, corrige, mas como sabe o que quer dizer, não vê que não está dito. Depois vem o livro e daí tudo enxerga como leitor. Aqui minha intenção era relacionar o espanto com os modinheiros e não com a modulação erudita europeia, dentro da qual lá menor e fá maior são tons vizinhos, coisa que se aprende na Artinha. Mas os modinheiros fugiam da modulação clássica, por querer ou sem querer, e modulavam aqui neste caso bestamente, com esquerdice e mau jeito, mas vinham reachar um processo europeu, que na realidade é mais sofisma que outra coisa: a doutrina dos tons vizinhos. Pelo menos de certos ‘tons vizinhos’. Estou bem desgostoso com esta parte. Um inimigo com coragem pegava nisso e me es…pinafrava que era uma gostosura”, escreveu Mário.
E concluiu Bandeira: “Nesta nota encontrei meu amigo inteiro e um momento fiquei feliz na minha saudade”.
DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da Continente e colunista do site da revista.