“Entre o peso e a leveza, escolho a leveza. Sinto que estou dançando a dança do cinema.” E, assim, Agnés Varda – primeira mulher a receber o Oscar pelo conjunto de sua obra – terminou seu discurso de agradecimento na cerimônia, em Los Angeles, que contou com as atrizes Jessica Chastain, Angelina Jolie, a diretora Kimberly Peirce (de Meninos não choram, 1999) e a montadora Kate Amend, entre outros.
Dito assim, com ar de brincadeira, o agradecimento pode parecer um tanto displicente. Mas quem já percorreu as praias, os rostos, os enquadramentos, temas, mulheres, gente comum e tantos outros caminhos dos filmes da cineasta, sabe que a leveza é algo que Agnés leva muito a sério.
Belga e Arlette de nascença, mas francesa e Agnés por escolha, a diretora brinca em pleno set de um documentário com a mesma seriedade com que também revela o real em seus trabalhos de ficção. Difícil saber onde começa o artifício e inicia o documental, onde a inventividade encontra a História. Muito por isso, ter o privilégio de conhecer sua obra, conversar com ela e vê-la em várias situações ajuda a formar o quebra-cabeça que são a vida e a personalidade de cineasta.
Multifacetada, ela é como a casa com tantas portas e janelas de As praias de Agnés (2008). É também a pessoa (in)comum que conversa e filma os trabalhadores de Visages, villages (2017). Nesse seu mais recente documentário, que estreia em 25 de janeiro no Brasil, ela viaja junto com o artista JR de caminhão pelas estradas da França, parando em várias cidades e ali capturando os tais rostos e vilas. A diferença de gerações e trabalhos entre ela e o fotógrafo não se mostra um problema, ao contrário. JR fotografa, imprime e exibe retratos imensos de pessoas comuns em diversos lugares do mundo. Nesse documentário, o que importa é a curiosidade e o encantamento que compartilham pelo caminho.
Agnés é a diretora consagrada que zomba levemente do Oscar, mas também o respeita. Que não pertenceu à Nouvelle Vague, no sentido mais específico – pois sempre se interessou mais pela união de várias artes (artes visuais, fotografia, seu primeiro métier) com o cinema experimental e também social –, mas que é considerada a grande precursora do movimento que mudou o cinema nos anos 1960.
Uma experiência encantadora foi assistir a As praias de Agnés, na companhia dela, em sessão especial para 8 mil pessoas no Festival de Locarno de 2014, no qual ela ganhou o Pardo D’Oro, e ouvi-la afirmar que só foi tão livre no cinema porque não tinha nenhuma referência cinematográfica antes de rodar seus primeiros curtas e até seu primeiro longa, La pointe courte (1955). “Se a tivesse, eu teria tido medo. Nunca ligaria uma câmera se tivesse visto os clássicos. Minhas referências eram os mestres da pintura”, disse-me ela, numa conversa formal e amigável em um pequeno café da cidade suíça.
Quando muitos se perguntam sobre a função dos festivais de cinema, a discussão é longa. Mas, quando nos perguntamos sobre o que os torna únicos é o fato de se poder assistir não só a um filme, mas também ao espetáculo de um cineasta exposto diante do público, no melhor sentido do fato.
Depois de vê-la também consagrada com uma Palma de Ouro pela carreira no Festival de Cannes de 2015, vi-me novamente na mesma sessão que Agnés em maio de 2017, na première mundial de Visages, villages. Bem a seu estilo, a “gala” no Auditorium Lumière ocorreu à tarde, no grande cinema à beira-mar. Ao final da sessão, a mais emotiva de Cannes de 2017, mais de 10 minutos de aplausos. E uma Agnes informal e colorida, um tanto desconfortável com tamanha ovação, mas emocionada ao se deparar, aos 89 anos, com uma plateia de mais de duas mil pessoas que a abraçava a cada palma.
“Cada rosto conta uma história”, diz Agnés Varda, em Visages, villages. Seu rosto e seu olhar contam muitas. E, por mais que ela diga que o que a interessa é o outro, ela está profundamente em cada um de seus filmes. Das questões do casal de La pointe courte às apreensões de Cléo (Cléo das 5 às 7, de 1962), passando pelos homens (nada) comuns de Os catadores e eu (2000) e até pela investigação arqueológica do corpo e da alma de seu amado Jacques Demy (em O universo de Jacques Demy, 1995). Em tudo que faz, a assinatura de Varda conta histórias.
“É interessante você me falar isso”, disse ela, ao ouvir a afirmação acima. “Meu rosto, o fato de eu ser uma cineasta, não devia estar em primeiro plano. Mas, muitas vezes, de fato, me coloco. Dizem que sou feminista. Meu cinema é experimental, mas não necessariamente feminista. É sobre mulheres? Também. Me interesso por elas e gosto até de observá-las vendo meus filmes.”
Varda revelou também que gosta de ir, em Paris, onde vive, às sessões de seus filmes em dias comuns. “Sou mais assistida pelas mulheres. Sei disso porque vejo sempre quem vai ao cinema. Sei os dias e horas em que as mulheres vão. Fico no fundo da sala e as observo. Gosto de vê-las assistindo aos meus filmes”, contou, com cara de criança arteira, evidenciando que não só em Cannes se emociona com a plateia.
Emoção e surpresa ela também leva para cada um de seus sets, seja “inventando” uma praia em plena Paris ou “instalando espelhos” numa praia real. “É importante saber filmar na incerteza. A arte de filmar deve ser frágil para que se possa nutrir do que acontece em torno do que se filma”, opinou. “É importante filmar pessoas reais. Gosto dos atores e do que eles são capazes, mas as pessoas reais são incríveis”, completou, enquanto olhava uma garçonete do café suíço. “Veja esta moça. O que será que estuda? Será que vai ao cinema? Hoje em dia, as pessoas vão tão pouco ao cinema…” Prestes a completar 90 anos em maio deste ano, ela ainda questiona, brinca e filma. E precisa, mais do que nunca, do diálogo com o outro.