Depoimento

Ninguém de boca fechada

TEXTO Ricardo Lísias

01 de Dezembro de 2017

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Ilustração Karina Freitas

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 204| dezembro 2017]

Comecei a pensar mais seriamente em censura quando a Polícia Federal me convocou para depor. A intimação era bastante clara: se eu não aparecesse no dia marcado, após nova convocação poderia ser levado à força à delegacia. A mão pesada do poder judiciário se mostrou com bastante eloquência em diversos momentos do episódio. Pediam a minha prisão, acusando-me de “falsificação de documento” e “uso público de documento falso”.

Em 2014, publiquei uma série de cinco e-books, com estrutura de folhetim, cuja narrativa, além de texto, trazia imagens, correspondências oficiais, e-mails e documentos de um processo jurídico fictício. O experimento, que chamei de Delegado Tobias, continha ainda uma extensão nas redes sociais. Eu e a editora abrimos um perfil do delegado no Facebook, adicionamos uma série de pessoas e, depois de lançar o primeiro e-book, fizemos a narrativa continuar em tempo real na internet.

Alguns leitores viam as fotos e afirmavam conhecer o delegado. Outros se divertiam com a confusão que ele estava criando ao assumir claramente ser uma personagem de ficção, mas ao mesmo tempo reivindicar uma espécie de “direito” de existir. “Sou de carne e osso”, dizia o delegado, contrapondo-se às minhas afirmações de que o havia inventado e, portanto, ele só existia no meu trabalho. No meio disso tudo, levei ficcionalmente o conflito à justiça e o próximo passo foi a criação de algumas decisões jurídicas, fiéis ao modelo oficial, que continuavam a narrativa. Os leitores se solidarizavam comigo, incomodados com as decisões que eu mesmo criava e que, por fim, estavam dando razão ao delegado e não a mim mesmo, o autor…




Ricardo Lísias encena no book trailer do seu livro Inquérito policial Família Tobias, que deu continuidade à série Delegado Tobias. Imagens: Reprodução

Algumas pessoas retiraram esses documentos da minha obra e os enviaram isoladamente ao Ministério Público Federal, acusando-me de ser um falsário. Uma “investigação” não percebeu que se tratava de obra literária. Sugerindo minha culpa, um inquérito foi enviado à Polícia Federal, para que eu fosse oficialmente ouvido. Passei a tarde respondendo a perguntas de um delegado. Junto com meu depoimento, um advogado entregou uma petição com a minha defesa.

O promotor que recomendou o arquivamento do inquérito, alguns meses depois, sublinhou que durante o século XX a arte estabeleceu formas bastante alternativas de suporte e circulação. Sem maiores ressalvas, um juiz aceitou o arquivamento e o caso se encerrou. Hoje, noto como fui ingênuo ao achar que, com isso, meus problemas com a justiça se encerrariam.

Alguns meses depois, assisti à sessão da Câmara dos Deputados que afastou Dilma Rousseff da presidência. Acho que, independentemente do espectro ideológico a que os leitores desse texto se identifiquem, não é difícil concordar que aquela foi a noite do nosso horror.

O pior da vida política brasileira estava todo ali: cinismo, machismo, misoginia, falta de elegância, decoro e bom gosto. Diante daquilo, achei-me obrigado a intervir. Criei então um projeto. Eu escreveria alguns textos diretamente ligados à política brasileira e os assinaria com pseudônimos que teriam o nome de algumas personagens.

O primeiro seria o “Eduardo Cunha (pseudônimo)”. Comecei a escrever um texto chamado Impeachment. Com a prisão do ex-deputado federal, abandonei a ideia inicial e passei a imaginar um diário dos seus dias na cadeia. Cada entrada foi redigida no próprio dia. Assim, em 31 de dezembro de 2016 eu tinha um texto de ficção narrando os dois meses e meio de Cunha na famosa cadeia de Curitiba. Como parte da intervenção, mantive meu nome sob o mais estrito sigilo. Procurei uma editora com quem nunca havia trabalhado antes e fizemos um contrato que previa o respeito integral ao pseudônimo. Apenas duas pessoas dentro da editora sabiam que eu era o autor. Além delas, só minha esposa.

Uma semana antes do lançamento, O Globo publicou uma nota sobre o livro Diário da cadeia. Ato contínuo, Eduardo Cunha entrou com uma ação na justiça carioca solicitando a proibição do livro, uma indenização por danos morais, a retirada de qualquer menção do trabalho na internet e, por fim, a revelação do nome do autor para que ele pudesse ser responsabilizado inclusive na esfera criminal. Quando li esse trecho da ação, lembrei-me na mesma hora de Foucault: “Os textos, os livros, os discursos começaram a ter realmente autores (diferentes dos personagens míticos, diferentes das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores.”  Eu, que não acredito exatamente em autoria já faz tempo, de novo teria que virar um autor por causa da justiça.

Os advogados não informaram ao juízo que se tratava de um romance. Em toda a ação não há a palavra “literatura”. No que foi para mim uma enorme surpresa, a juíza responsável pelo caso concedeu a liminar, ordenou o recolhimento de todos os exemplares já distribuídos e exigiu o meu nome. No final do prazo, minha identidade foi entregue à justiça, que não a colocou em segredo, e, no dia 21 de abril, a Folha de S.Paulo informou que o autor do Diário da cadeia sou eu.

Começou então o que é para mim uma espécie de tragicomédia jurídica. A tragédia fica por conta da censura a um livro de ficção, o que não acontecia no Brasil há bastante tempo. O resto da situação toda, que se desdobra até hoje, é uma espécie de teatro do absurdo. Poucos dias depois da revelação do meu nome, um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro derrubou a liminar que impedia a distribuição de Diário da cadeia e decidiu que a assinatura do livro é perfeitamente legal e legítima. Os argumentos são simples: em primeiro lugar, trata-se de uma obra de ficção, não é passível portanto de ser acusada de danos morais, invasão de privacidade, ofensa etc. Depois, está bem claro na capa que o “Eduardo Cunha” que assina o livro é um pseudônimo, não podendo assim ser o ex-deputado federal.

A decisão desse primeiro desembargador foi confirmada por um segundo, depois pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, em seguida pelo ministro Moura Ribeiro, do Superior Tribunal de Justiça, então por dois plenos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e, no começo de novembro passado, pela 1° turma do Supremo Tribunal Federal. Todas essas decisões foram unânimes e sem ressalvas. A parte mais absurda está no seguinte detalhe: pelas constantes e eloquentes decisões da justiça, o pseudônimo que criei é válido e deve ser refeito. Agora, todo mundo tem que esquecer que sou o autor do Diário da cadeia!

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Além de nada inteligente, a censura em geral conduz a situações ridículas. Na Argentina, o excelente escritor Pablo Katchadjian acabou também precisando constituir advogados e defender-se perante um juiz por causa de um livro. Em 2009, ele fez uma simpática plaquete de tiragem bastante reduzida (200 exemplares) para distribuir entre os amigos. A ideia era excelente: ele inseriu diversas passagens de sua autoria no conto O Aleph, de Jorge Luis Borges, fazendo com isso um novo texto, chamado por ele de O Aleph engordado. O procedimento borgiano é uma bela homenagem ao autor de Ficções.


O escritor Pablo Katchadjian também teve problemas na Justiça. Foto: Divulgação

Maria Kodama, que detém os direitos de Borges, viu na criação de Katchadjian algum tipo misterioso de ofensa e o interpelou na justiça. Além de impedi-lo de publicar novamente seu trabalho, solicitou uma indenização. O caso até hoje viveu inúmeras reviravoltas. Depois de ser bem-sucedido nas instâncias inferiores, Katchadjian viu a justiça desconsiderar todas as suas alegações (que vão do citado procedimento borgiano , até o esclarecimento de que toda a história da arte adota o mesmo mecanismo que ele. Marcel Duchamp foi um de seus exemplos). O escritor foi condenado a pagar uma multa de 16 mil dólares e seus bens ficaram bloqueados por algum tempo. Nesse momento, uma corte de apelação reviu a sentença e, outra vez, deu razão a Katchadjian, determinando o arquivamento do caso. A viúva deve recorrer.

Existem formas muito mais efetivas e assustadoras de censura do que o constrangimento jurídico. A principal, por óbvio, é a ameaça à vida do escritor. O argentino Rodolpho Walsh desapareceu após escrever um texto fantástico justamente sobre as perseguições que os militares estavam realizando. Operação massacre é, desde o lançamento, um dos livros mais importantes sobre a violência tão comum no nosso continente.

O mundo muçulmano, até hoje, de vez em quando aparece com um caso gravíssimo de perseguição. Apesar da enorme repercussão negativa que a fatwa (ordem que uma autoridade religiosa lança para o assassinato de alguém) lançada pelo Aiatolá Khomeini contra Salman Rushdie, por causa de um trecho de Os versos satânicos, esse triste hábito continua. Recentemente, o escritor franco-argelino Kamel Daoud foi vítima da mesma violência, por conta de seu excelente romance de estreia, O caso Meursault.


Kamel Daoud, outro autor com problemas por conta de sua obra ficcional. Foto: Divulgação

Indo na contramão do cânone literário, o livro narra a história da família do homem assassinado no início de O estrangeiro, a grande obra de Albert Camus. Agudo, o romance denuncia supressões e apagamentos, confirmando a célebre afirmação de Walter Benjamin de que os objetos culturais são, ao mesmo tempo, veículos de barbárie.

O caso Meursault narra uma série de conversas que o irmão da vítima tem com um francês que havia ido à Argélia, fascinado, estudar O estrangeiro. Desde o começo, porém, o que ele ouve é a denúncia de como o cânone literário tende a muitas vezes seguir o mesmo caminho de opressão da geopolítica internacional: “Você registrou isso? Meu irmão se chamava Moussa. Ele tinha um nome. Mas continuará sendo o árabe, para sempre. O último da lista, excluído do inventário do seu Robinson. Estranho, não é? Há séculos o colono espalha a sua fortuna dando nomes às coisas de que se apropria e retirando os nomes daqueles que o incomodam. Se ele chama meu irmão de o árabe, é para matá-lo como se mata o tempo, passeando sem rumo.”

O livro de Daoud não é, no entanto, apenas um acerto de contas com o europeu invasor – mesmo o da voz libertária de Camus, aqui mais francês que argelino. O próprio movimento de independência, com a sociedade politicamente radical que o seguiu, é alvo de crítica: “Ele se levantou, abriu uma gaveta com violência, tirou dali uma pequena bandeira argelina e se aproximou para agitá-la diante do meu nariz. Com o tom ameaçador e a voz meio anasalada, ele voltou a perguntar: ‘e isso aqui, você conhece?’”

A crítica ecoou na Argélia e um ímã lançou uma fatwa contra Kamel Daoud. O caso também foi parar na justiça, como de hábito. Por fim, o autor obteve a vitória nos tribunais e o religioso que o acossou recebeu uma pena de prisão e multa. Nada aconteceu com Daoud, por sorte. Independentemente da decisão da justiça, não é difícil que algum maluco, em busca da redenção eterna, ouça o chamado de um líder religioso e tente um ato extremo. Esse tipo de violência persegue a vítima por toda a vida.

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A arte contemporânea parece estar em conflito constante com o ideário religioso. E aqui não estou citando apenas a barbaridade que é o Estado Islâmico ou o Talibã destruindo obras milenares, o governo iraniano punindo cineastas e os russos colocando na cadeia as roqueiras do Pussy Riot, depois de suas integrantes cantarem uma canção dentro de uma igreja e protestarem contra o governo de Vladimir Putin.

O atual papa Francisco I, quando cardeal de Buenos Aires, armou um enorme escarcéu diante de uma exposição de Leon Ferrari, pressionando também o poder público e as instituições que apoiavam o artista a tomar alguma atitude contra as obras, segundo ele, ofensivas à fé cristã.

No Brasil, Ana Smile teve seu trabalho recolhido pela justiça pela mesma razão. Ela fabrica pequenas esculturas que misturam a estética pop à imagem de santos e com isso foi acusada de ofender a igreja. Achei os objetos dela bastante respeitosos e até mesmo evocativos da fé cristã. Evidentemente, mesmo que não fossem, caso do trabalho de Leon Ferrari, nada justifica uma tentativa de coação do Estado na criação e circulação da arte. Para quem tiver alguma curiosidade, o belo filme Jesus de Montreal, de Denys Arcand, mostra as consequências psicológicas que a censura, aqui também ligada à questão religiosa, pode trazer ao artista.

O uso de animais vivos em obras de artes plásticas e apresentações de teatro costuma trazer problemas para os criadores. Nuno Ramos viu sua obra Bandeira branca mutilada durante a 29º Bienal de São Paulo, depois que uma decisão judicial, emitida após pressão realizada por grupos de proteção aos animais, retirou dois urubus do trabalho. A decisão foi bastante controvertida, sobretudo porque o artista não apenas estava munido de todas as licenças legalmente necessárias, como logo diversos especialistas afirmaram que não havia ali mal nenhum aos animais. Ao contrário, eram das aves mais bem-tratadas de São Paulo.

Em outra ocasião, uma peça de Angelica Liddell foi interrompida durante a Mostra Internacional de Teatro de 2014, de novo por grupos de ativistas, porque havia um cavalo no palco. Do mesmo jeito, tanto a artista quanto a organização do evento estavam municiadas com todas as autorizações legais. Havia um veterinário de plantão e o dono do animal autorizara a participação dele no espetáculo.

Muitas vezes, porém, o uso de animais em obras de arte é bem mais controvertido. Em 1970, Cildo Meireles concebeu uma obra, Tiradentes – Totem monumento ao preso político, em que algumas galinhas eram queimadas vivas. Mesmo com todo o mal-estar envolvido, à época, a performance fazia sentido: a referência à tortura era clara e o Brasil, de fato, só seria confrontado com obras muito radicais.

O próprio artista, porém, afirma que hoje uma obra como Tiradentes não faria sentido. Claro que não, até porque épocas diferentes exigem aproximações distintas com essa e aquela linguagem. As formas de fato mudam com o tempo, o que significa que as obras estão sempre em confronto com as angústias, exigências e contradições dos momentos históricos diferentes.

Aqui, acho importante ser bem claro: as pessoas devem manifestar desconforto, críticas e mesmo um possível repúdio a obras de arte, se assim acharem necessário. Dizer-se ofendido por um trabalho artístico não é de forma alguma censurá-lo.

Em 2015, um grupo de pessoas se ofendeu com uma peça de teatro que pretendia usar o recurso do black face. O espetáculo ainda não havia estreado, mas os cartazes chamaram a atenção de ativistas do movimento negro. O recurso é antigo: um ator branco pinta o rosto de negro e normalmente representa um estereótipo. No geral, trata-se de uma figura ridícula, inferior às demais no palco e que representará um lugar subalterno e humilhante.

Um debate foi convocado sobre o caso, quando vários ativistas lembraram como o recurso é ultrapassado. Utilizá-lo contemporaneamente pode ser um ato racista. Depois de ampla discussão, o diretor resolveu cancelar o espetáculo.

À época, algumas pessoas julgaram testemunhar um caso de censura. Não é isso. A arte não é uma instância social acima das outras. Ela se integra à sociedade, transformando-a e sendo transformada por ela. Se um procedimento de força tivesse sido utilizado, como a coação física, a ameaça à integridade do grupo ou ao bem-estar de seus integrantes, aí, sim, estaríamos diante de censura. Do mesmo jeito, não houve nenhum tipo de insinuação de levar o diretor e os outros envolvidos à justiça. No caso, ocorreu uma legítima manifestação de desconforto, que também não pode ser censurada. O diretor decidiu por livre e espontânea vontade cancelar a peça.

Não foi o mesmo método, porém, usado por grupos de pressão que resolveram agir contra a exposição Queermuseu, montada no Santander Cultural em Porto Alegre em agosto deste ano. Em tom de franco descontrole, manifestações em frente à exposição começaram a assustar e assediar os visitantes. Aqui, houve clara intimidação física. Do mesmo jeito, o grupo impunha uma interpretação única às obras, interditando outros sentidos. Sem qualquer argumento, quadros se tornaram uma incitação à pedofilia e à zoofilia. Apesar de recomendação contrária do Ministério Público, a exposição foi fechada pelo patrocinador.

O Museu de Arte Moderna de São Paulo, MAM/SP, também sofreu assédio (que redundou em agressão física a seus funcionários) de grupos que usaram um discurso moralizante para atacar uma performance. Aliás, o moralismo é o velho argumento que conservadores sempre lançam quando se veem incomodados por uma obra. Nem mesmo as tentativas de interdição são novas: a história da arte é a história da censura.

A peça O evangelho segundo Jesus, rainha dos homens, da dramaturga escocesa Jo Clifford, também sofreu assédio jurídico e terminou duas vezes proibida de ser encenada pela justiça no Brasil, sob argumento de que um Jesus representado por uma atriz transexual seria uma agressão ao cristianismo. Nem sempre a tentativa de censura dá certo. No Rio Grande do Sul, um juiz repeliu de imediato a proibição, alegando liberdade artística e de expressão. Em São Paulo, o Tribunal de Justiça também derrubou a proibição com o mesmo argumento.


A peça O evangelho segundo Jesus, rainha dos homens foi duas vezes proibida de ser encenada pela justiça. Foto: Ligia Jardim/Divulgação

Sem que houvesse qualquer manifestação, o Museu de Arte de São Paulo, Masp, decidiu, em atitude inédita, restringir a entrada dos visitantes à exposição Histórias da sexualidade à idade mínima de 18 anos. Está aí um dos efeitos mais nefastos da violência contra a arte. Ela passa a fazer com que as instituições e os artistas, preocupados com possíveis ou imaginários danos, já se autocensurem antes de qualquer coisa. Depois de muito debate e constrangimento, o Masp retirou o caráter restritivo da classificação etária, sobretudo porque uma nota do Ministério Público Federal recomendou que não é papel do Estado regular a fruição artística de ninguém.

O último episódio (até o fechamento desse texto) da agressão medieval que o Brasil vem assistindo às artes e ao pensamento se deu no início de novembro, com a visita da filósofa Judith Butler ao Brasil. Os mesmos grupos que lançaram os ataques descritos acima resolveram que a obra dela, uma das mais aplaudidas e discutidas do mundo contemporâneo, seria uma agressão à “família tradicional”, seja lá o que signifique isso. Um manifesto foi lançado na internet solicitando o cancelamento da sua visita ao Brasil, o que felizmente não foi atendido pelas instituições organizadoras do encontro. Na manhã da conferência de Butler, um pequeno grupo se reuniu na rua em frente ao auditório onde ela falava e, com cartazes ideologicamente desconexos e vulgares, queimou um boneco que a representava. O desfecho foi bastante sintomático: ao sair de São Paulo, Judith Butler foi vergonhosamente agredida no Aeroporto de Congonhas.

Esse tipo de coisa ecoa os piores momentos da história da humanidade.

Não deve passar despercebido um detalhe sobre as manifestações que pediram o fechamento das exposições e peças nos últimos meses: o sentido das obras propagado nas redes sociais e depois repetido nas manifestações públicas é sempre o da representação direta. Um dos quadros que mais causaram controvérsia na exposição Queermuseu foi Criança viada, da artista Bia Leite. Quem pediu o fechamento da exposição garantia que a associação da expressão que dá título à obra com a imagem de um menor de idade seria incitação à pedofilia. Sequer lhes passou pela cabeça que a obra poderia estar na verdade denunciando agressões a que as crianças estão sujeitas.

Do mesmo jeito, o fato de uma menor de idade ter tocado os pés de um artista nu imediatamente se tornou um crime de exploração sexual infantil. Para essas pessoas, nudez é crime. Nenhuma delas imagina que roupas podem ser sexualmente muito mais provocantes e que a performance poderia justamente ressaltar a inocência possível em um corpo sem elas.

Foram bastante sintomáticos os protestos contra a presença da filósofa Judith Butler no Brasil. Quando se manifestaram sobre o black face em uma peça de teatro, o grupo de ativistas estava articulado e munia-se exclusivamente de argumentos. Houve um debate em que prós e contras foram colocados por pessoas com posições divergentes, todos falaram sentados, um por vez e respeitando o mediador. No caso de Butler, a maior parte das manifestações dizia coisas que nem mesmo estão na obra dela, citavam ideias inexistentes e amalucadas e faziam inúmeras insinuações de ameaça física. Não houve um instante de apresentação razoável de argumentos.

A propensão por interpretar uma obra de arte como mera representação da realidade, sem a menor mediação, e a recusa ao debate argumentativo mostram que esses grupos não apenas estão várias gerações atrasados no desenvolvimento intelectual como, pior ainda, acreditam fanaticamente estar com a verdade. Por isso flertam o tempo inteiro com a violência, quando não a usam de fato. Não é só um enorme atraso, há um sério risco de colapso civilizatório entre nós.

Por ser uma atividade essencialmente crítica, o trabalho artístico deve ter consciência de que, em sinal contrário, pode e deve ser argumentativamente confrontado. Para garantir esse confronto, a liberdade de expressão e de criação precisam ser valores indiscutíveis. A liberdade crítica também. Coação física, calúnia, linchamento virtual e tentativa de censura na justiça são inaceitáveis.

Todos os espectros políticos que respeitam a existência do outro e permitem a construção de sentidos contrários aos seus têm o direito de se manifestar, mas jamais o de calar o contraditório. O debate é bem-vindo e, se for intenso e tiver origem em ideias complexas e profundas, gera exclusivamente inteligência e desenvolvimento. É por isso que, além de covarde, toda censura é, no final de tudo, um ato de burrice.

RICARDO LÍSIAS é autor de A vista particular, entre outros livros. Em 2018, lançará A literatura no banco dos réus – Uma tentativa de aproximação entre Arte e Direito.

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