Marcelo Gomes leu muitos livros sobre o período colonial brasileiro, incluindo A história da vida privada, para descobrir o que comiam, como viajavam e se relacionavam, e Desclassificados do ouro, sobre como a riqueza das Minas Gerais no século XVIII também gerou uma enorme pobreza. Ambos foram escritos pela historiadora Laura de Mello e Souza, que foi consultora da produção. Pesquisou toda a documentação sobre os inconfidentes. E a verdade é que havia pouco, muito pouco, sobre o homem Joaquim José da Silva Xavier. Menos ainda sobre o que fez com que se transformasse num revolucionário. “Isso não está em nenhum livro de história. Não há registro. Então, eu inventei.”
Para Marcelo Gomes, as motivações tinham de ser pessoais. Por exemplo, a promoção a tenente que nunca acontecia – isso está no Auto da Devassa da Inconfidência Mineira. Mas também, quem sabe, um amor impossível, quem sabe, por uma escrava. “Uma coisa muito interessante que eu aprendi é que esse espírito de revolta e de revolução apareceu pela primeira vez na história do Brasil com os quilombos. Pensei que, se ele tinha tomado essa consciência revolucionária, tinha sido com quem realmente estava fazendo a revolução”, disse Gomes. Assim foi criada Preta (Isabel Zuáa), que vive empurrando Joaquim para agir, para se revoltar contra o estado das coisas. “Encontrei referências em mulheres que me inspiraram, como Nina Simone e Rosa Luxemburgo”, disse a atriz portuguesa. “Uma frase da Nina Simone que foi muito presente para mim era: ‘Liberdade é não ter medo’. E é uma frase que uso também no meu dia a dia. Para mim, a liberdade é não ter medo de fazer coisas que eu realmente quero fazer e dissociar o preconceito que as pessoas têm do meu corpo, de acharem que sou menos ou mais isto ou aquilo.”
A pesquisa sobre o Brasil do século XVIII provocou no diretor e no elenco uma reflexão sobre o Brasil de 2017 – e são essas correspondências a real riqueza do filme. “O que mais me impressionou é como a gente não viveu um processo completo de descolonização”, disse Gomes. “A gente vive ainda decorrências da colonização que, às vezes, são tão sutis, que a gente não percebe.” Por exemplo, os muitos edifícios com elevadores separados em “social” e “de serviço”, e apartamentos com duas portas, com a mesma divisão. “E a gente acha isso normal. É impressionante como a gente acha isso normal. A gente acha normal viver num país onde tem uma diferença imensa entre ricos e pobres.” Em Desclassificados do ouro, Laura de Mello e Souza relata como uma população imensa de mestiços e africanos vivia na mais completa miséria, enquanto poucos enriqueciam com as toneladas de ouro e diamantes retiradas das minas. “Então, o processo de colonização tem a ver com poder e privilégio de uma elite branca colonizadora que queria simplesmente sugar tudo da terra e viver na corte europeia. Hoje, as pessoas falam de corrupção, corrupção, corrupção, mas muitos empresários não pagam impostos. As pessoas falam de corrupção, corrupção, corrupção e cruzam sinal vermelho. E não querem pagar a multa.”
Isabel Zuáa, que morou no Brasil, deparou-se com a situação do negro no país. “Sempre entendi que era negra. Mas vi no Rio que as pessoas não se consideravam negras pela baixa autoestima de serem negras. Porque ser negro no Brasil – no resto do mundo também, mas muito no Brasil – é muito difícil.” Joaquim aprende a navegar entre a corrupção sistêmica e o nepotismo que lhe rouba sua promoção. Dono de um escravo (Welket Bungué), não percebe que perpetua, ele mesmo, a manutenção do sistema.
Marcelo Gomes espera que essa reflexão tenha frutos: “Quando você está em crise, deita no divã do psicanalista e fala do seu pai e da sua mãe para entender a crise. E acho que o Brasil Colonial é isso, é o pai e a mãe da nação. É o nascimento da nação. É a gente voltar para aquele país e dizer: ‘Nossa, vamos entender a crise a partir daqui’. Porque o passado está dentro do presente. Ele está mais vivo do que nunca”.