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Dinâmicas amorosas contemporâneas

Os sites de paquera e os aplicativos para smartphones fundaram um novo modo de se relacionar, mas a localização territorial ainda é elemento fundamental no processo

TEXTO Marina Moura

01 de Janeiro de 2017

"Os anúncios casamenteiros do século 17 são congêneres dos aplicativos de relacionamento"

Arte Matheus Calafange

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 193 | janeiro 2017] 

Um rapaz jovem, inseguro e pouco atraente – ao menos do ponto de vista dos padrões vigentes – contrata os serviços de uma espécie de conselheiro amoroso que o acompanha em tempo real por vídeo e áudio. Este trabalha ao lado do computador dando dicas e checando perfis do Facebook e, por sua vez, é assistido por vários desconhecidos online, curiosos para saber como se desenvolve o processo pelo qual duas pessoas se aproximam e se interessam uma pela outra de modo sexual ou afetivo. Este é o mote de um dos episódios do seriado Black Mirror, ficção científica que pretende mostrar como, em um futuro muito próximo, a sociedade lidaria com os aparatos tecnológicos, intrinsecamente associados aos seus modos de vida. É bem verdade que este mundo “regulado pelas redes e pela velocidade”, como observou o filósofo e arquiteto francês Paul Virilio já na década de 1980, quase mais nada possui de distópico, e é possível que parte do sucesso da série resida justamente no fato de apresentar situações muito próximas do que vivenciamos atualmente.

Em 1996, mesmo período em que os computadores pessoais e a internet começaram a se popularizar, o sociólogo francês Pierre Lévy escreveu O que é o virtual? Na obra, Lévy analisa as implicações antropológicas, sociopolíticas e filosóficas da virtualização, a qual não se oporia fundamentalmente ao real. A diferença, segundo ele, está na característica-chave do virtual: a possibilidade de ser infinitamente atualizado. O conceito pode ser verificado, se pensarmos nas informações que compartilhamos em perfis das redes sociais, na linha do tempo do Facebook em constante mudança de conteúdo ou nos aplicativos e sites de paquera cujos pretendentes estão sempre a se modificar.

Para Paul Virilio, a partir da virtualização e do ciberespaço, todas as ações e relações foram sendo delegadas, de maneira parcial ou total, a “máquinas eficazes”, que nos colocam em facilitação ou confronto com elementos como a “instantaneidade, ubiquidade e imediatez”. Embora as dificuldades de demonstrar interesse, a vontade de encontrar alguém compatível com nossas expectativas, a incerteza de ser ou não correspondido e administrar a tensão que antecede o primeiro encontro sejam circunstâncias que já existiam muito antes da ideia de virtual, é certo que novas sensações e condutas foram assimiladas na era da hiperconectividade.

O ator, roteirista e escritor estadunidense Aziz Ansari experimentou um tipo de ansiedade muito comum a qualquer usuário de smartphone – a espera por uma resposta. “A piração que tomava conta de mim não existia 20 ou mesmo 10 anos atrás. Ali estava eu, olhando para a tela do telefone como um maníaco, a cada poucos minutos, em um turbilhão de pânico, mágoa e raiva, só porque uma pretendente não tinha respondido a uma mensagem curta num aparelhinho idiota”, relatou. A experiência serviu para que Ansari iniciasse uma longa pesquisa, em parceria com o sociólogo Eric Klinenberg, da Universidade de Nova York, acerca das dinâmicas amorosas mediadas por celulares, sites, aplicativos e redes sociais. Entre 2013 e 2014, eles entrevistaram centenas de usuários – em grupos presenciais e online – e estudiosos, além de visitarem importantes capitais do mundo, como Paris, Buenos Aires e Tóquio. O resultado foi reunido no livro Romance moderno: uma investigação sobre relacionamentos na era digital (Companhia das Letras, 2016).

ANTECEDENTES
O uso das tecnologias disponíveis como aparato para encontrar alguém ou conhecer pessoas remonta ao século XVII. Em meados de 1690, surgiram os chamados anúncios casamenteiros em jornais diários ou semanais. Por muito tempo, os classificados foram o modo preferido que os solteiros encontraram para expandir suas possibilidades amorosas, especialmente na década de 1960, com a Revolução Sexual, e perduraram até os anos 1980. Em textos curtos, com cerca de 50 palavras, o interessado fazia uma breve descrição de si e do que procurava. Uma vez publicado o anúncio, aguardava-se por um contato na caixa postal, com mensagens de aproximadamente três minutos.

Devido à escassez de informações e fotos e às limitações comunicacionais até o momento do encontro, o número de casais efetivamente formados pelos anúncios não chegou a ser substancial. Algumas pesquisas indicam que boa parte das relações construídas neste período passava pelo fator geográfico, na lógica do quanto mais próximo, melhor. Aziz Ansari entrevistou 36 idosos em Nova York e mais da metade disse ter se casado com pessoas do mesmo bairro. Um levantamento realizado em 1932 pelo sociólogo James Bossard, da Universidade da Pensilvânia, aponta para a mesma direção. Bossard examinou 5 mil certidões de casamento da Filadélfia e concluiu que um terço dos casais morava a um raio de até cinco quarteirões antes do matrimônio.

No entanto, o espaço geográfico é sobretudo contextual. Avancemos para 2011, Buenos Aires, capital da Argentina, com 3 milhões de habitantes. Mariana, que vive praticamente enclausurada em seu apartamento e tem fobia de elevadores, questiona-se: “Tantos quilômetros de cabos servem para nos unir ou para nos manter afastados, cada um no seu lugar?”. Ela conversa em um chat da internet com Martin, webdesigner que pouco sai de casa, a não ser para passear com o cachorro. Mariana e Martin – que moram mesmo quarteirão, mas não se conhecem – são personagens do longa-metragem Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual, de Gustavo Taretto. O filme questiona a desterritorialização presente no espaço urbano e dialoga com o pensamento do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, para quem “o outro lado da moeda da proximidade virtual é a distância virtual: a suspensão, talvez até anulação, de qualquer coisa que transforme a contiguidade topográfica em proximidade”.

ALGORITMOS
Com a chegada dos computadores, inicialmente parafernálias imensas que ocupavam cômodos inteiros, os primeiros serviços de agências que se propunham a juntar casais apareceram nos idos de 1960. Os clientes preenchiam formulários imensos e detalhados, e as respostas eram registradas e processadas em computadores, que encontrariam o parceiro ideal de modo lógico e racional, a partir do cruzamento de algoritmos. Alguns fatores explicam o motivo de a ideia não ter agradado: a desconfiança com aparelhos eletrônicos ainda era grande, já que o seu uso era circunscrito a empresas específicas e quase não havia acesso a eles; além do mais, não havia quaisquer garantias de que os possíveis casais dariam certo de fato.

Dan Slater, autor de Love in the time of algorithms (Amor nos tempos dos algoritmos), aponta que os serviços desse gênero baseavam-se exclusivamente no que os usuários afirmavam querer, o que considera um erro. Ao analisar seus hábitos de navegação e buscas na internet, Slater concluiu que a descrição do parceiro ideal simplesmente não era compatível com o tipo de pessoa pelo qual esse indivíduo de fato se interessava. Um programador com quem Dan Slater conversou durante a pesquisa para o livro afirmou que ele e seus colegas perceberam que “é frequente as pessoas quebrarem as próprias regras, e de como o comportamento virtual é discrepante das exigências reais”. A antropóloga Helen Fisher, especializada em mecanismos de escolha, vê a questão dos algoritmos de maneira semelhante. Para ela, o único modo de determinar se duas pessoas darão certo é encontrando-se pessoalmente, e é categórica ao dizer que “o cérebro é o melhor e mais sofisticado algoritmo, não existe nenhum serviço de facilitação de encontros no mundo que faça o que o cérebro é capaz, quando se trata de encontrar a pessoa certa”.

O ponto de inflexão no modo de reunir possíveis casais por serviços computadorizados pode ser associado ao lançamento do site de relacionamentos Match.com. Criado em 1995, nos Estados Unidos, pelo programador Gary Kremen, a página inaugurou a lógica de que os próprios usuários deveriam ter autonomia para procurar parceiros. Assim, em vez de depender de algoritmos que sugerissem pontos de confluência entre dois indivíduos, o Match.com propunha uma apresentação com foto e descrição, num modelo parecido ao de redes sociais, nas quais existe um perfil e os participantes interagem entre si via bate-papo. Helen Fisher, que posteriormente se tornaria consultora da página, acredita que o termo site de relacionamentos não corresponda ao serviço oferecido. Para ela, deveriam se chamar sites de apresentação, pois o que oferecem é apenas uma oportunidade de “a própria pessoa ir atrás de conhecer alguém”.

Kremen pode até ter sido considerado excêntrico quando, à época, declarou que sua criação iria “trazer amor para este planeta como não se vê desde Jesus Cristo”, mas o fato é que, em 2005, o Match.com já registrava mais de 40 milhões de usuários. Em Romance moderno, Aziz Ansari avalia que a iniciativa de Gary Kremen criou um novo modelo de mercado, e logo em seguida “os concorrentes pipocaram, procurando novos nichos, ao mesmo tempo que tentavam se apropriar da base de clientes do Match.com. Cada novo site surgia com uma marca registrada — o eHarmony era para pessoas em busca de um relacionamento sério; o Nerve, para os hipsters; o JDate, especializado no público judeu, e assim por diante”. E continua: “O advento dos sites de busca de par transformou a forma como iniciamos relacionamentos românticos. Em 2000, apenas cinco anos após a criação do Match.com, 10% das pessoas vivendo uma relação tinham conhecido o parceiro na internet, número que já era de quase 25% em 2010”.

NICHOS
Mestre em Direitos Humanos, o professor universitário Daniel Cisneiros, 25 anos, acompanhou a migração dos sites de relacionamentos aos aplicativos, popularizados com o advento dos smartphones. Em 2010, resolveu criar um perfil no Badoo. O site foi lançado em 2006, no Reino Unido, pelo russo Andrey Andreev. Apresentada como uma “rede social para conhecer pessoas”, e sem oferecer qualquer tipo de facilitação entre usuários com afinidade, na prática, no entanto, a página foi quase sempre associada a indivíduos em busca de parceiros sexuais ou amorosos. Os perfis são apresentados de modo semelhante àqueles do Orkut, reunindo informações do usuário, fotos, vídeos, textos e chats.

No intuito de conhecer alguém que considerasse interessante, sem necessariamente um apelo afetivo, Daniel encontrou no Badoo um modo de vencer a timidez e se conectar especificamente com o público LGBT. “Você entra nesses sites e aplicativos e há todo tipo de interesse. Há pessoas que quererem namorar, outras são explícitas ao procurarem sexo rápido, algumas querem só conversar. Na verdade, acredito que todos esses recursos tecnológicos são construções sociais e variam muito de acordo com o usuário”, comentou em entrevista à Continente. Foi lá que, após engatar algumas conversas que não fluíam ou não resultavam em encontros presenciais, acabou conhecendo seu primeiro namorado. “Era um menino que eu não achava tão interessante, inclusive as fotos dele eram estranhas, dava a impressão de que estava se escondendo. Mesmo assim, resolvi enviar uma mensagem, que ele não respondeu. Insisti, e ele acabou conversando comigo durante semanas, marcamos de nos encontrar e deu certo.”

Daniel Cisneiros faz parte de um grupo que o sociólogo Michael Roselfend, da Universidade de Stanford, chama de “mercados limitados”, representados, por exemplo, por pessoas que buscam relações homoafetivas ou entre parceiros de meia-idade. Em um levantamento intitulado How the couples meet and stay together (Como os casais se conhecem e permanecem juntos), Rosenfeld entrevistou mais de 4 mil adultos de língua inglesa, entre solteiros e casados, e, entre outras conclusões, apurou que 60% dos casais LGBT se conheceram através da internet. Para ele, a razão desses nichos explorarem o virtual e obterem sucesso é simples: “quanto menor o universo de potenciais pares românticos, menor a chance de encontrá-los pessoalmente, seja por intermédio de amigos, seja em lugares públicos”.

GEOLOCALIZAÇÃO
Inspirados em jogos de cartas, Sean Rad e Justin Mateen, dois estudantes da Universidade do Sul da Califórnia, resolveram criar, em 2012, um aplicativo de paquera no qual o usuário, vinculado a um perfil no Facebook, escolhesse possíveis pretendentes a uma distância de até 160 quilômetros. Cabe a ele analisar as fotos dos possíveis pretendentes e decidir se gosta (desliza o dedo para a direita) ou rejeita (para a esquerda). Em caso positivo para ambos – isto é, quem analisa está sendo igualmente analisado –, It’s a match! (É uma combinação), e só depois se abre um chat para os dois indivíduos, que escolhem ou não conversar entre si. Eis o funcionamento do Tinder, a criação mais bem-sucedida, até o momento, no ramo de relacionamentos virtuais – já são mais de 100 milhões de pessoas conectadas a ele, e 10% de usuários brasileiros.

O pré-requisito do interesse mútuo foi uma das inovações trazidas pelo Tinder que garante parte de seu sucesso estrondoso. A necessidade de aprovação dos dois lados evita, por exemplo, mensagens inconvenientes de alguém que não inspira interesse. Outro fator a ser considerado é a obrigatoriedade de o aparelho celular estar com o GPS ativado. A tendência foi iniciada com o Grindr, app de 2009 voltado para homens gays que mostra as 50 pessoas mais próximas do usuário. Lógica semelhante foi adotada pelo francês Happn (2015), sugerindo perfis a partir de cruzamentos pela rua, num raio de 250 metros.

Nesse sentido, a lógica de tais aplicativos tem retomado as noções de tempo e espaço daqueles idosos de Nova York que se relacionavam entre si mediados por distâncias entre quarteirões. Se, com a criação de um novo lugar – o ciberespaço –, a internet prometeu (e cumpriu) aproximar pessoas que de outro modo dificilmente teriam condições de interagir, há também um movimento contrário, mas não necessariamente conflitante, de retorno às origens, como se, pelo virtual, fosse possível e necessário “reterritorializar”, para usar um conceito de Gilles Deleuze, o espaço real – os edifícios, as esquinas, os bairros. “É preciso dizer que é o próprio mundo que nos arma as duas armadilhas da distância e da identificação”, afirmou o filósofo francês. E, pelo mundo, pode-se muito bem incluir os sites, smartphones, aplicativos e redes sociais. 

 

 

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