O território europeu tem sido o mais fértil terreno para a interação do teatro. “Enquanto algumas manifestações teatrais, sobretudo do Oriente, mantinham seus segredos guardados, o europeu facilitou o acesso comunicacional. Estabeleceu critérios pedagógicos e didáticos desde a Idade Média; o teatro como catequese, como espelho da sociedade, como formador de opinião”, explica o professor de Artes Cênicas da UFPE e encenador João Denys.
Em meados do século XIX e começo do XX, os atores brasileiros se queixavam da chegada de trupes europeias de Portugal ao Brasil. Os artistas portugueses ocupavam espaço físico, econômico e conquistavam o público nativo. Organizadora do livro Rotas de teatro entre Brasil e Portugal (2012), a carioca Maria Helena Werneck conta que, no início dos anos 1800, houve um hiato artístico no país preenchido por estrangeiros. “Intelectuais apostavam na presença portuguesa para sanar a falta de novidades, mas acabaram se decepcionando. Os portugueses não queriam correr o risco de fazer uma renovação teatral e deixar de produzir dinheiro. O que se fazia era o que havia de sucesso no mundo inteiro e a intenção era mais divertir que educar”, afirma. O repertório cênico vinha de Paris, a principal referência artística daquele momento, que exportava dramaturgias do melodrama, romantismo e, com sorte, alguns acessórios tecnológicos de iluminação.
O realismo, retratando a burguesia com seus conflitos sociais, e as comédias do Teatro de Revista – ambos oriundos da França – fizeram florescer o gosto pelos estudos teatrais no Brasil. No livro Factos e impressões (1922), a atriz portuguesa Lucinda Simões comenta: “Todos os artistas (de palcos portugueses e brasileiros) são franceses de coração. O regulamento que nos dirige é o da comédie française”. Apesar de o realismo não ter durado muito tempo no país, vencido pela popularidade das comédias, produziu importantes obras, como Demônio familiar, de José de Alencar.
Embora a França tenha a proeminência na formação das plateias e mesmo da crítica teatral, há uma base eurocêntrica nessa constituição. “Dionísio, da Grécia, Shakespeare, da Inglaterra, Stanislavski, da Rússia, Brecht, da Alemanha, Grotowski, da Polônia.” Ao refletir sobre isso, o dramaturgo e autor da peça Regurgitofagia (2004), o carioca Michel Mellamed comenta: “O que chamamos de teatro europeu parece algo tão vasto e em diálogo tão estreito com a nossa produção, que parte do melhor teatro europeu está sendo feito no Brasil e vice-versa, hoje em dia”.
Mesmo as produções contemporâneas mais prolíficas de teatro, como as norte-americanas, foram tocadas pela cultura europeia. Segundo o pesquisador de dramaturgia americana, o nova-iorquino David Savran, “os musicais de Nova York originaram-se de culturas de imigrantes de classe operária da Irlanda, Inglaterra, Rússia e Alemanha, com suas operetas”. Muitos desses europeus que chegaram a Nova York, a partir de meados de 1880, possuíam ascendência judaica. Eram poetas, músicos e atores que levaram ao país óperas populares e o teatro iídiche, originando as peças da Broadway que, além de entreter, instruíam a audiência sobre temas como o preconceito social. Integram esse perfil peças como Of thee I sing, com libreto de George Gershwin, que teve a primeira montagem em 1931, e O violinista no telhado, de Joseph Stein, musical que ficou sete anos em cartaz nos EUA, desde sua estreia em 1964.
“Os imigrantes eram tidos como invasores. Indesejados no universo da economia, os judeus se lançaram em negócios próprios e expressaram o que sentiam através da arte, acabando por dominar este setor na América. Ajudaram os afro-americanos a criar a musicalidade jazz, muito empregada nos espetáculos, e exportaram talentos para o cinema hollywoodiano”, esclarece David Savran.
Após o período de guerras, os EUA tornaram-se a principal vitrine artística ocidental. Tennessee Williams, autor de Um bonde chamado desejo (1947) – entre outros que fugiam aos padrões das peças da Broadway, calcadas na moral e nos bons costumes, como Eugene O’Neill e Arthur Miller –, começou a ser encenado em outros países, estimulando o pensamento sobre os valores sociais de esquerda. No livro Panorama do rio vermelho – Ensaios sobre o teatro americano moderno, a teatróloga Iná Camargo Costa menciona que “montagens de Miller e Williams feitas por companhias de Cacilda Becker e Tônia Carrero se tornaram mitológicas entre nós (brasileiros)”.
OS ORIENTAIS
Já o teatro oriental, que valoriza o gesto e o ritual antes da palavra do drama, como se dá com o Nô japonês e Kathakali indiano, até hoje se mantém conhecido e praticado em pequenos círculos, fora do seu universo de origem. O Japão, por exemplo, por suspeitar que os missionários europeus visassem a conquistas políticas em seu território, manteve-se insulado por dois séculos, até 1858. Após sua abertura, houve troca de saberes.
“As traduções de peças europeias e americanas no Japão motivaram o surgimento dos shingeki, dramas modernos de influência ocidental. Certa época, houve culto ao dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, autor de Casa de bonecas, que influenciou os japoneses no ódio às instituições e à moral burguesa, trazendo também discussões feministas em suas peças de tese realista, que exortavam as mulheres a participar do mundo”, afirma Darci Kuzano, autora de Os teatros Bunraku e Kabuki: Uma visada barroca (2011).
Artistas vanguardistas ocidentais, como Bertold Brecht, do Teatro Épico, e Antonin Artaud, do Teatro da Crueldade, foram tocados pelo orientalismo em suas obras. “Creio que o cerne do encantamento recíproco Oriente-Ocidente foi porque os ocidentais se encantaram com o antirrealismo oriental e os japoneses se surpreenderam com a novidade do realismo ocidental. Conceitos como existência (“Ser ou não ser”, de Hamlet), liberdade e Era Moderna, adquiridos nos Estados Unidos e na Europa, inexistiam nos países orientais”, diz Kusano.
Em 1899, o grupo do performer japonês Otojiro Kawakami foi o primeiro a chegar à América e Europa. Aplaudido por artistas como Sarah Bernhardt e Pablo Picasso, adaptava seu trabalho a um modelo de teatro ocidental, transformando cenas, antes introspectivas, em melodrama ou em lutas com samurais. No Japão, suas peças mais famosas foram de influência europeia, como uma produção de Otelo, de William Shakespeare. O japonês o achava perfeito para insinuar críticas políticas. “Nos anos 1960, jovens do teatro contemporâneo alegavam que o teatro nipônico havia perdido a sua identidade de tanto imitar o Ocidente. Os diretores Tadashi Suzuki, Shogo Ohta e Juro Kara voltaram a dar ênfase ao desempenho físico dos atores, como na época dos teatros tradicionais”, conta Kusano.
FESTIVAIS
No século XX, e também nestes primeiros anos do XXI, as turnês das companhias de teatro de país em país foram paulatinamente substituídas pelos festivais, que se espalharam pelo mundo. “É uma circulação mais restrita de público, constituído de artistas e pesquisadores. A lógica econômica resiste de modo diferente. O que é mercantilizado são os valores estéticos, como o experimentalismo e os recursos tecnológicos na cena”, esclarece a professora e pesquisadora de artes cênicas Maria Helena Werneck.
“Hoje, no lugar dos empresários que convocavam os atores para as travessias oceânicas, existem curadores estrangeiros que assistem aos espetáculos em diferentes países para convidar grupos ao seu continente”, diz Werneck. Alguns sucessos mundiais de trabalhos brasileiros surgiram assim, como o Macunaíma (1978) do TBC. Outro exemplo é a peça Dizer aquilo que não pensamos em línguas que não falamos, do Teatro da Vertigem, que foi para o festival francês de Avignon, em 2014. “Os principais festivais acontecem na Europa, mas o teatro contemporâneo americano também tem sua força. Os dois eixos do norte são os mesmos de sempre, lá está o dinheiro, a liberdade para experimentação com o financiamento de diferentes formas”, completa.
A criadora da revista virtual de teatro Questão de Crítica, Daniele Ávilla Small, comenta aspectos positivos da globalização: “Lidamos com a crescente aceleração da informação. Se a informação está na frente do conhecimento e se a aceleração está acarretando déficit de experiência, então o teatro, que é um lugar de resistências à aceleração, pode oferecer uma experiência singular. O teatro é o lugar de parar, de desligar o celular, de olhar e de escutar, de pensar e perceber. A globalização talvez só faça o teatro ter mais valor”.