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Londres: Gente por toda parte!

Com uma população que contabiliza hoje 8,6 milhões de habitantes, a capital inglesa é a expressão do projeto de desenvolvimento e consumo do capitalismo

TEXTO GUILHERME CARRÉRA
FOTOS CLARISSA GOMES

01 de Maio de 2016

No pódio entre os destinos turísticos, Londres é a cidade mais citada nas redes sociais

No pódio entre os destinos turísticos, Londres é a cidade mais citada nas redes sociais

Foto Clarissa Gomes

Quando a plataforma atinge a capacidade máxima de passageiros ávidos pela chegada do próximo trem, não tem jeito. A entrada ao subsolo é interrompida, a escada de acesso se transforma em sala de espera e às dezenas de trabalhadores, estudantes e turistas só resta aguardar pacientemente – turistas nem tão pacientemente assim, tudo bem. A hora é do rush, mas o engarrafamento humano é uma constante não só nas plataformas e escadas, mas nas ruas e avenidas de Londres. Não importa o horário: a vendedora atende dois ou três clientes ao mesmo tempo, a reserva no restaurante tem hora para começar e para ser encerrada, até sol e chuva vão e vêm com a mesma pressa que o passageiro ávido tem para chegar ao lar, doce lar. São 8,6 milhões de homo sapiens atravessando a capital inglesa de cima a baixo, de leste a oeste, da neblina da manhã à noite iluminada, do chá que desperta à cerveja do fim do expediente.

E quase 37% desse formigueiro vem de fora, diz o Office for National Statistics. A diversidade é tanta, que faz com que gente de toda parte do mundo se sinta em casa. Ou nem tanto. Um colega chinês me confessou que não vê a hora de voltar para sua Xangai. Chegou há pouco mais de seis meses para se doutorar em uma universidade londrina, mas a barreira da língua e os costumes ocidentais têm impedido sua completa adaptação. Um trio de anos pela frente pode fazê-lo mudar de opinião. A amiga de Changchun, por exemplo, gostou tanto, que voltou. Passou um ano fazendo um master pelas bandas de cá e agora tem mais quatro de doutorado pela frente. O clima frio, ressalva que muitos atribuem a Londres, é café pequeno para ela. Sua cidade natal chega a 30 graus negativos no inverno. Na terra de Elizabeth II, impossível. Raramente neva e o termômetro costuma flutuar entre zero e oito graus na temporada de frio.


Passantes, táxis e ônibus nos arredores do Big Ben, grande atração da cidade

A chuva, que mais incomoda do que molha, obriga guarda-chuvas a tiracolo. Na Oxford Street, a icônica via do comércio de rua, eles estão corriqueiramente à venda. Comprar, aliás, é um dos verbos mais conjugados nessa e em outras ruas. Na New Bond Street, reduto de grifes internacionais, não se conhece o significado de barganha. Em 2014, um levantamento do Sunday Times avisou que Londres é a cidade com maior número de bilionários do planeta. Enquanto alguém compra um guarda-chuva no mercado de Camden Town, a algumas quadras do pub que era favorito de Amy Winehouse, The Hawley Arms, o suntuoso The Wolseley, por exemplo, recebe de Madonna a Samuel L. Jackson para mais um lanche vespertino. Um garçom dedicado não deixa o cliente sair sem experimentar o cheesecake que nenhuma outra receita consegue igualar. O preço não é módico porque o bairro pertence a nobilíssimos.

Nas redondezas, o Palácio de Buckingham ainda se regozija por ter celebrado os 90 anos de sua rainha, aquela que por mais tempo na história comanda a nação britânica. São 64 anos. Ela é querida, mas seus bisnetos andam roubando os holofotes. O primeiro dia de aula do príncipe George Alexander Louis, três anos incompletos, foi capa do jornal distribuído gratuitamente no metrô. Inaugurado em 1863, o sistema de transporte subterrâneo se estende por 408 km: é o mais antigo do mundo e o maior do Ocidente. A estação mais profunda se encontra em Hampstead, o Leblon dos bairros londrinos. Afastado do centro, tem cara de interior. Mas não se engane, o metro quadrado vale tanto quanto aquele da área central. A La Crêperie de Hampstead, a bem da verdade, não é elitista. A fila dobra o quarteirão, tamanha a popularidade. Difícil mesmo é prever quando as francesas responsáveis pelo quiosque resolvem aparecer – nem sempre elas cumprem o horário previsto na plaquinha. Vai ver é o charme.


"I love rain": os guarda-chuvas voadores de Nothing Hill

Mas, se a fome for maior que a decepção em não poder devorar o crepe de banana com Nutella, escolha outra nacionalidade para provar dos temperos. Mexicana, tailandesa, italiana, japonesa, síria, espanhola, coreana, libanesa, argentina. A lista é imensa. Se o domingo não for preguiçoso, deixe o sunday roast do pub mais perto passar na frente. Tem prioridade. Esqueça o superestimado fish and chips, a carne (de boi, frango ou porco), acompanhada de batata, cenoura, repolho e o tal do pudding (spoiler), dá forma a esse típico prato de domingo dos ingleses.

FILA PARA EXPOSIÇÃO
Alimentado, já é possível encarar a fila para conseguir visitar alguma das inúmeras exposições em cartaz. Uma inglesa camarada me alertou que, caso esteja chovendo, melhor pensar duas vezes antes de se mandar, digamos, para a Tate Modern. O disputado centro cultural às margens do Tâmisa costuma lotar nos dias de chuva. Na Royal Academy of Arts, quase em frente ao obrigatório cheesecake do Wolseley, a dinâmica não foge à regra. Mas qualquer uma de suas exposições temporárias merece cada pingo de chuva na cabeça, enquanto você espera do lado de fora. Ainda não comprou o guarda-chuva?

Por outro lado, é injusto relegar o sol à sombra. Na medida em que o solstício de verão se aproxima, os dias se alongam. E os parques viram os protagonistas. Do Hyde Park ao Hampstead Heath, bicicletas, piqueniques e espreguiçadeiras quase fazem os londrinos se esquecerem da pontualidade britânica. No norte de Londres, Primrose Hill vale a subida até o cume. É a continuação do Regent’s Park, aonde desavisados não costumam ir. No horizonte, a roda-gigante da London Eye se destaca ao longe. Assim como o pico de The Shard, o edifício mais alto da capital. Para subir, a vista a 310 metros do solo custa 30 libras ao passante. No câmbio atual, nada menos que R$ 150.


Da Lambeth Bridge vê-se a Westminster Bridge, duas pontes que cortam o Rio Tâmisa

À noite, a cidade se veste do que der na telha. Se Camden Town é a porção rocker da realeza, East London não tem estilo definido. Antiga zona industrial, o leste londrino é a bola da vez entre os hipsters. A região se reinventou com a chegada de ateliês, escritórios descolados e inferninhos da madrugada. Loja de vinil? Tem. Antiquário da vovó? Sim. Café orgânico das Índias? Presente.

No Bairro de Shoreditch, o Brick Lane Market foi descoberto pelos turistas e lota aos domingos. De perfume indiano, mistura galpões recém-reformados, food trucks e street art. Só perde em fama para o sábado animado do Portobello Road Market, a feira ao ar livre de Notting Hill. Mas aí já chegamos ao oeste. E haja estação de metrô pelo caminho.

Em King’s Cross St. Pancras, não só de metrô, mas também de trem. Se Paris é mesmo uma festa, a senha para o rendez-vous se pega daqui. No coração de Londres, a estação liga as duas metrópoles em pouco mais de duas horas.

13 MILHÕES DE LIVROS
Quem não embarca em um dos vagões da Eurostar tem os 13 milhões de livros da British Library à disposição do lado de fora. A cinco minutos do terminal internacional, a biblioteca britânica reúne tudo o que já foi publicado no idioma inglês. Se considerarmos manuscritos, cartografias e composições, o número de itens chega a inimagináveis 170 milhões. Parece mentira, mas é palpável. Quer dizer, depende do que o visitante deseja tocar.

Para conhecer as instalações, basta iniciativa. Para frequentar as salas de leitura e ter acesso à parte do valioso acervo, é preciso seguir uma cartilha à inglesa. Justificativa para interesse, registro prévio, solicitação de credencial. Armários para os pertences pessoais, permissão para fotocopiar apenas 5% de cada livro, toda e qualquer leitura restrita à sala. Se não deu tempo de terminar as últimas páginas de Charles Dickens ou Jane Austen, volte amanhã. Mas amanhã já é hoje. Café preto para despertar. Um sanduíche, por favor. Dois minutos para o próximo ônibus.


Cidade tenta controlar o fluxo intenso de pedestres nas suas vias com letreiros eletrônicos

A velocidade da vida tangível reverbera online. Além de ter conquistado o pódio entre os destinos turísticos, Londres deixou Paris e Nova York para trás no quesito Google. Desde 2004, é o lugar mais buscado no endereço eletrônico. No ano passado, as palavras “Londres” e “viagem” foram digitadas juntas cerca de 630 mil vezes, de acordo com a base de dados do Spredfast. Foi também a cidade mais mencionada no Twitter e o cenário para mais selfies postadas no Instagram. Em 2016, além do aniversário da rainha Elizabeth II, as comemorações aos 400 anos da morte do dramaturgo William Shakespeare devem impulsionar ainda mais seu alcance virtual.

Em junho próximo, os britânicos vão às urnas escolher se querem ou não que o Reino Unido deixe sua cadeira na União Europeia. O referendo proposto pelo primeiro-ministro David Cameron pode ocasionar a maior mudança no panorama europeu em anos. O debate se desdobra nos programas de TV tanto quanto a incógnita em relação ao futuro dos refugiados sírios. São dois assuntos que encabeçam, dia sim, dia não, os editoriais da BBC e companhia. Enquanto o primeiro se detém nas consequências que uma decisão interna pode gerar ao resto do mundo, o segundo trata do horror da guerra e de possíveis estratégias para solucionar um caos que emana do Oriente para afetar o núcleo duro do país. Dois lados de uma mesma moeda, ambos os tópicos engendram o local e o global, o nativo e o estrangeiro, o poder e o medo. Estamos em Londres, não podia ser diferente. 

GUILHERME CARRÉRA, jornalista, doutorando em Artes e Mídia na Universidade de Westminster.

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