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Key West: Um caso de amor com Hemingway

Última ilha do extremo sul da Flórida recebe mais de seis milhões de turistas por ano, tendo como atrativos as praias e a casa-museu do autor norte-americano

TEXTO Fred Navarro

01 de Junho de 2015

O casarão estava abandonado quando Hemingway o adquiriu

O casarão estava abandonado quando Hemingway o adquiriu

Foto Reprodução

O poeta Wallace Stevens, nascido na Pennsylvania, descreveu Key West como “um verão sem fim”. Tradicional reduto de artistas e intelectuais, além de Wallace e do mais famoso deles, Ernest Hemingway, abrigou escritores do porte de John Dos Passos, Elisabeth Bishop, Tennessee Williams, Truman Capote, Gore Vidal e Lillian Hellmann, além de Hunter Thompson, criador do jornalismo gonzo e autor de Medo e delírio em Las Vegas. Mas ninguém discute: ‘Papa’ Hemingway foi o morador mais ilustre da ilha.

Com apenas 6,7 km de extensão, Key West tem entre suas atrações de destaque a casa-museu de Hemingway, localizada no número 907 da Whitehead Street, e a movimentada Duval Street, onde ficam os restaurantes da moda, incontáveis galerias de arte e lojas de compras, e os bares do tipo Hard Rock Café. O bar mais famoso e concorrido da ilha, o Sloppy Joe’s, também fica na Duval. É praxe que, de cada 10 frequentadores, nove peçam o drinque preferido de Hemingway, o mojito (rum branco de Cuba, xarope de açúcar, hortelã, limão e club soda), servido em copo alto, decorado com folhas de hortelã.


É considerado pacato o período que o escritor viveu na Flórida. Foto: Divulgação

A presença do escritor na ilha é tão marcante, que lá se celebram, entre 21 e 26 de julho, os Hemingway Days, quando centenas de homens com barbas brancas e charutos invadem a ilha na tentativa de ganhar o título de sósia mais fiel ao original.

É lugar-comum dizer que entre a Flórida e Cuba, entre Key West e Havana, o espectro de Ernest Hemingway ainda ronda o mar do Caribe. Nascido em 21 de julho de 1899, em Oak Park, Illinois, depois do ensino médio mudou-se para Chicago e lá casou-se com Hadley Richardson, com quem foi morar em Paris em 1918, onde começou a batalhar a vida como jornalista e escritor. Seis anos de casamento e um filho depois, publicou o primeiro romance, Nosso tempo, que passou despercebido.


Até hoje os gatos são parte constitutiva da residência. Foto: Divulgação

Em 1926, ao lançar O sol também se levanta, que obteria um sucesso surpreendente, Hemingway ficou famoso da noite para o dia. Menos de um ano depois, divorcia-se de Hadley e volta para a América, onde se casa com a jornalista de moda Pauline Pfeiffer. Em 1928, aceita o conselho de um amigo, o escritor John Dos Passos, que conheceu as Keys no início dos anos 1920 e lhe garantiu que viajar através da ferrovia construída pelo magnata Henry Flagler era como “flutuar num sonho”. Depois da primeira visita, ele e Pauline decidiram se mudar para lá.


Hemingway com a esposa, a jornalista Pauline Pfeiffer. Foto: Divulgação

Ao chegarem à ilha, compraram uma casa abandonada na Whitehead Street, pela qual pagaram 8 mil dólares em impostos atrasados. O folheto do museu em que se transformou em 1964, e cuja visita custa hoje US$ 13 para adultos e US$ 6 para crianças até 12 anos, informa que a casa foi construída por escravos, em 1851, com dois pisos feitos de pedras retiradas do próprio terreno. Bem localizada, fica no miolo da pequena cidade, perto da Duval Street e a poucas quadras do Capitain Tony’s Saloon e principalmente do Sloppy’s Joe, o bar predileto do escritor, no qual “batia ponto” diariamente. O dono, Joe Russel, tornou-se seu amigo fiel e companheiro frequente de pescarias.

ALTA PRODUTIVIDADE
No estilo colonial espanhol, a casa fica a 100 metros do mar e é cercada de jardins tropicais. No interior, móveis do século 17, azulejos espanhóis, jogos de pratos finlandeses e quadros trazidos de sua primeira temporada em Paris. A vasta biblioteca, a cadeira de artesão de charutaria trazida de Cuba, a máquina de escrever Royal (que ele não usava, pois só escrevia à mão), está tudo como ele deixou.


Móveis do século 17, livros e obras de arte trazidas de viagem são itens do acervo.
Foto: Divulgação

Nessa casa branca de dois andares e janelas amarelas, que atualmente abriga o The Ernest Hewingway Home & Museum, o escritor viveu com Pauline e os dois filhos de 1931 a 1940, exceção feita aos períodos em que viajou para fazer a cobertura da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Foi um período produtivo. Lá, escreveu Uma aventura na Martinica, As neves do Kilimanjaro, Por quem os sinos dobram e Adeus às armas. Ele mandou construir um ringue de boxe no jardim e Pauline, uma piscina (a primeira da ilha), que o escritor depois aterrou.

Tinha dezenas de gatos com polidactilia (um dedinho a mais nas patas). Segundo a tradição dos marinheiros, os gatos com dedinhos a mais trazem boa sorte. Um dos locais curiosos da casa-museu é o cemitério onde estão enterradas gerações de gatos que lá viveram. Hoje, uns 60 descendentes do felino original vivem espalhados pela casa, têm suas próprias casinhas nos fundos, comem bem e dormem a maior parte do dia enquanto são observados pelos turistas. Parte do dinheiro arrecadado pelo museu garante a vida boa dos bichanos.


Escritor faz pose junto com a esposa e os filhos Bumby, Patrick e Gregory depois da pesca de marlins, em Bahamas, 1935. Foto: Divulgação

Apesar da violenta crise da bolsa de 1929, Hemingway viveu sem problemas financeiros em Key West, graças ao sucesso de vendas de Adeus às armas, escrito durante uma época turbulenta, na qual teve seu segundo filho com a jornalista, e sofreu o impacto do suicídio do pai. Além disso, era jovem, estava no auge dos 30 anos, e sentia falta da vida de jornalista e correspondente estrangeiro. O casamento com Pauline, os filhos, a vida em família, tudo era previsível para alguém afeito à caça, à pesca, à cobertura de guerras, aos amigos artistas e boêmios de Paris.

Refugiava-se na amizade com Joe Russel e nas pescarias. Na primeira vez em que saiu com ele, depois de dois dias em alto-mar, foram bater em Havana, pela qual Hemingway se apaixonou. A partir de então, todo ano instalava-se lá, entre maio e julho, na temporada da pesca ao marlim. Costumava ficar no Hotel Ambos Mundos, em Habana Vieja, o bairro mais antigo daquela cidade que aos poucos se tornava o seu lar e cujos cenários, pelos próximos 23 anos, seriam inseparáveis da sua história e a da própria ilha.


Hoje, a casa na Flórida reúne mobiliário e objetos e originais. Imagem: Divulgação

O casamento com Pauline começou a acabar quando Hemingway conheceu Martha Gellhorn, em 1936, confirmando a previsão feita pelo amigo Scott Fitzgerald, quando se conheceram em Paris: “Você vai precisar de uma mulher a cada livro”. Martha, escritora e jornalista que conhecera Hemingway em Key West, voltou a encontrá-lo na Espanha, durante a Guerra Civil. Ao voltar da Europa, sem a casa de Key West, que ficou com Pauline e os filhos, optou por um velho sonho: morar em Finca Vigia, nos arredores de Havana.

Um pouco antes, em Key West, o escritor conhecera e se apaixonara por Jane Mason, casada com o diretor de operações da Pan-Am, cujo escritório ficava a poucas quadras de sua casa e com quem costumava beber hectolitros de gim no Sloppy’s Joe.


Este é um dos livros escritos por Hemingway na fase produtiva
da residência em Key West. Imagem: Divulgação

Dessa época, além dos casamentos conturbados e viagens incessantes, é inegável que seu interesse pela caça, pesca e touradas se refletissem no seu trabalho. Foi entre Key West e Havana que ele descobriu a paixão pela pesca desportiva, que iria se transformar em temática para o resto da vida, como jornalista, e que está no ponto de partida do romance O velho e o mar (1951). E foram essas histórias que renderam a ele os cobiçados prêmios Pulitzer de Jornalismo, em 1953, e o Nobel de Literatura, em 1954.

Em Key West, Pauline viveu com os dois filhos que teve com ele até sua morte, em meados da década de 1950. Para Hemingway, a casa de janelas amarelas era tão importante que, mesmo depois de se mudar para Havana, continuou a usá-la para veranear até 1961, pouco antes de morrer. Em 1960, a Revolução Cubana o forçou a sair da Habana Vieja. Voltou para os Estados Unidos com a jornalista Mary Welsh, com quem se casara em 1946 e que permaneceu com ele até sua morte. Foram viver numa ampla casa de fazenda em Ketchum, Idaho, onde, vencido pela depressão decorrente de seus problemas de saúde (hipertensão, diabetes e perda de memória), suicidou-se com um tiro de fuzil de caça, em 2 de julho de 1961. 

FRED NAVARRO, jornalista e escritor, autor do Dicionário do Nordeste.

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