Azul é a cor mais quente (La vie de Adèle – Chapitres 1 et 2), do tunisiano Abdellatif Kechiche, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2013, Jovem e bela (Jeune et jolie), do francês François Ozon, Ninfomaníaca – Volume 1 (Nymphomaniac), do dinamarquês Lars von Trier, Tatuagem, do pernambucano Hilton Lacerda, e Um estranho no lago (L’inconnu du lac), de Alain Guiraudie, evocaram Metz ao angariar prêmios e reações variadas sobre a relação entre o dizer do cinema e seu explícito dito – o desejo, tanto na sua versão heteronormativa como na representação do afeto homoerótico.
Provocaram aplausos e vaias, em igual intensidade, os sete minutos de cupidez e explosão entre as duas protagonistas de Azul...; a vontade de se prostituir em Jovem e bela; a compulsão e a angústia que não se saciam em Ninfomaníaca; sexo oral, penetração anal e a aproximação entre Eros e Tânatos em Um estranho...; e o amor escancarado, afetuoso e carnal entre Clécio (Irandhir Santos) e Fininha (Jesuíta Barbosa), de Tatuagem. Não seria este, contudo, um debate esboçado desde os anos 1970, década de O último tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, e do O império dos sentidos, de Nagisa Oshima, e assim de um certo modo anacrônico? Ou seria o caso de indagar como os novos filmes avançam no retrato do sexo e para além da dicotomia erotismo x pornografia?
Ninfomaníaca, de Lars von Trier, dividido em dois longas, aborda a patologia sexual.
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Em uma entrevista concedida ao diretor português João Pedro Rodrigues e publicada na revista Cinema Scope, o cineasta Alain Guiraudie justifica sua opção por radicalizar em Um estranho no lago – que, a despeito de suas sequências sem reserva alguma, é um filme que escapa a rótulos. “Queria fazer um filme romântico, algo entre amor e morte, e mostrar sexualidade, homossexualidade, desejo e amor. Já havia falado de amor antes, mas era ‘amor como amizade’. Aqui, queria falar de ‘amor como paixão’. E sexo é muito importante quando há amor.” Numa prova de que seu discurso se revelou coeso e original, Um estranho no lago foi escolhido o melhor título de 2013 pela “bíblia” francesa Cahiers du Cinema.
Obra de Hilton Lacerda, Tatuagem coloca o sexo dentro de uma perspectiva libertária.
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“O cinema é um ótimo instrumento para conversar e pensar sobre sexo, tanto em obras de ficção como em documentários. Todos esses filmes estarem em cartaz, em circuito comercial, implica uma grande mudança, pois não se pode pensar neles como filmes de gueto, e, sim, como necessários. Uma obra que ganha Cannes não é apenas sobre homossexualidade. Tatuagem é sobre o amor entre dois homens e sobre política, resistência, arte, sobre o Brasil. No entanto, as pessoas ainda se sentem agredidas com alguma situação mais intensa e explícita, como quando a câmera cola na pele daquelas duas meninas. Ou adotam o discurso pesado contra a prostituição em Jovem e bela. Existe um constrangimento em se ver sexo em cinema. E, no Brasil, muita caretice”, argumenta a produtora, roteirista e documentarista paulistana Cláudia Priscilla, cujos curtas-metragens Sexo e claustro (2005), Phedra (2008) e Vestido de Laerte (2012) discorrem sobre gênero, condição feminina e transexualidade.
Doutor em Filosofia pela Universidade de Frankfurt com tese sobre o conteúdo afetivo na prática social, o pernambucano Filipe Campello enxerga na arte o potencial de inserir novos discursos de representação do desejo. “Assim, formas afetivas periféricas vão sendo forçadas para dentro do discurso. E isso é interessante no exemplo desses filmes. Não se trata apenas de falar sobre sexo, e, sim, de falar de novas formas de desejo e afeto. Novas não porque inexistiam antes, mas porque agora há uma pressão social em colocá-las no eixo da normalidade. No cinema, isso também é um discurso social. O fato de se transformar numa narrativa cinematográfica faz com que o espectador tenha uma experiência estética. Em Azul e Tatuagem, por exemplo, as cenas de sexo são demoradas, praticamente sem músicas, e numa demonstração do desejo sem apelar. Até a demora tem o sentido de trazer para o discurso da normatividade”, explica.
Na década de 1970, O império dos sentidos, de Oshima, foi considerada pornô por alguns segmentos de público. Foto: Divulgação
ZEITGEIST
À luz da psicanálise, conceitos como exibicionismo e voyeurismo são utilizados até hoje em análises cinematográficas sobre o elo forjado entre obra e espectador. “Na sociedade atual, existe uma tendência voyeurística. Em todo lugar, há a exibição da intimidade. Acho exagero, mas não condeno, é o ato comum. Faz parte da época. A interioridade não existe, não se respeita, não é desejada”, situa a psicanalista e mestre em Literatura Irma Chaves. Ou seja, filmes como esses espelham o que se vê e o que se vive. “Hoje em dia, já não é um problema o diretor abordar o sexo. Se ele for um grande profissional, vai construir um discurso cinematográfico de qualidade, como Tatuagem. Mas há o exibicionismo mesmo, em conluio com a plateia. Isso é muito da nossa cultura atual”, corrobora.
O último tango em Paris, de Bertolucci, trata de romance entre homem maduro e jovem, ambos em crise.
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Para Filipe Campello, é a ideia de zeitgeist do filósofo alemão Georg Hegel (1770-1831) que melhor elucida o impacto e a importância desses filmes que o espectador brasileiro teve a sorte de ver em simultaneidade: “Zeitgeist pode ser traduzido como o espírito do tempo. A arte, ao mesmo tempo que apreende aquilo que socialmente já está entrando no discurso, pressiona para ir além. Nunca é fora do seu tempo; revela tudo de uma maneira adiante, na vanguarda. Esse é o grande confronto de opiniões quando alguém vê Azul, Tatuagem ou mesmo Ninfomaníaca, que já entra em uma outra categoria, a do sexo como patologia, mas que é muito mais sobre afeto, sobre angústia e ausência do sentido. As pessoas que saem incomodadas provam que a arte está indo além, ao mesmo tempo expressando o que já é normal, o que outras pessoas já querem ver. O discurso homoafetivo e as novas formas de representar o desejo vão ficar. Quando se força isso, o mundo caminha para assegurar cada vez mais a liberdade individual, para que cada vez mais se possa expressar uma forma de afeto que não seja heteronormativa, e, sim, legítima homoafetiva”.
Partindo da concepção hegeliana, que surjam outros filmes inovadores, desafiadores, inclusivos e libertários no retrato do sexo e do desejo. Pois o cinema, como aponta Irma Chaves, “já não é um reflexo da realidade. É a própria realidade”. Nada estanque, portanto.
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