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Apertem os cintos, o sentido sumiu

Versões brasileiras para nomes estrangeiros de obras cinematográficas primam pela incoerência, bizarrice e pelos spoilers, que revelam o que acontece na história

TEXTO Débora Nascimento

01 de Julho de 2013

Terceiro filme de 'Se beber, não case' não tem casamento no roteiro

Terceiro filme de 'Se beber, não case' não tem casamento no roteiro

Foto Divulgação

Atordoados, três caras acordam num quarto de hotel em Las Vegas, na manhã seguinte à despedida de solteiro de um amigo. Ainda ressacados, descobrem que “perderam” o tal noivo; e agora têm como missão encontrá-lo antes da hora do casamento, que vai acontecer naquele mesmo dia. Para conseguir achá-lo, precisam, em meio ao lapso de memória provocado pela bebedeira, lembrar tudo o que aconteceu na noite anterior, desvendar e seguir as pistas do tal sumiço.

Esse é o mote de uma das mais bem-sucedidas comédias dos últimos tempos, Se beber, não case, cujo título brasileiro foi inspirado no slogan da famosa campanha Se beber, não dirija. Em 2009, a nomeação em português fazia todo o sentido (no original é The hangover, a ressaca), pois realmente havia na história muita bebida e casamento. Com o sucesso nas bilheterias, veio, em 2011, uma “parte 2”, e, depois, uma continuação, lançada em maio deste ano. E o que os distribuidores brasileiros fizeram para facilitar a vida de todo mundo? Tascaram um “3”. No entanto, ao contrário dos dois primeiros, neste terceiro não há casamento algum! E, assim, o título tornou-se mais um exemplo de batismo estapafúrdio de filme estrangeiro no Brasil.

A comédia americana foi mais uma vítima das distribuidoras nacionais, que tentam, a todo custo, dar uma abrasileirada nos títulos de obras estrangeiras, independentemente de significado, coerência e até bom gosto – senão, o que dizer de The cable guy, que virou O pentelho?


Compare o original à versão brasileira. Imagem: Reprodução

Um péssimo título não chega a destruir totalmente a reputação de um longa-metragem, afinal, o que importa mesmo é o conteúdo deste, mas é algo inconveniente, porque é o seu primeiro atrativo, principalmente para uma plateia não muito acostumada a acompanhar crítica cinematográfica. A maioria dos espectadores opta por assistir a filmes, seja nas salas de exibição ou em casa, devido estritamente ao que informam suas chamadas. E é exatamente por conta da necessidade de atrair esse perfil de público que surgem os equívocos, os excessos e as bizarrices nessa área.

Um dos exemplos gritantes é a obra que rendeu, até agora, o único Oscar de Melhor Filme a Woody Allen, Annie Hall, cujo original refere-se ao nome da personagem interpretada por Diane Keaton, que, por tabela, recebeu a estatueta de Melhor Atriz por sua magnífica atuação nessa comédia sobre o começo e o fim de um relacionamento amoroso. O título em português ganhou um ar de “sessão da tarde” desmiolada, Noivo neurótico, noiva nervosa, nada condizente com os diálogos extremamente perspicazes e sensíveis do roteiro.


Annie Hall virou Noivo neorótico, noiva nervosa. Foto: Divulgação

Assim como prova o clássico de Allen, as comédias geralmente são as maiores vítimas de títulos despirocados, pois os tradutores costumam apelar para a chacota, o escracho e o clichê. Houve uma época em que a palavra trapalhão (e não estamos falando das dezenas de filmes dos Trapalhões) era sempre lembrada, Vigilante trapalhão (1960), O trapalhão (1964), Um convidado bem trapalhão (1968), protagonizado por Peter Sellers e dirigido por Blake Edwards, Um viúvo trapalhão (1968), Um assaltante bem trapalhão (filme de 1969 de Woody Allen), cujo original é Take the money and run (Pegue o dinheiro e corra). A lista é imensa, como é também a dos que possuem “louco” na tradução brasileira.

Assim como a “tradução” da franquia Se beber não case, que caiu na própria arapuca, outra lambança aconteceu com Meet the parents, que, em português, seria Conheça os pais, mas, no país, transformou-se em Entrando numa fria. Ok, mas o problema é que vieram as continuações. Então, em vez de utilizarem o recurso óbvio do 1, 2, 3, que aliás, vem batizando as sequências de Duro de matar (parou no “4”; o 5º, em vez do “5”, ganhou o subtítulo estranho de Um bom dia para morrer) e Sexta-feira 13 (parou no “9”, mas a franquia continuou sem os numerais), quiseram retrabalhar o título original. Dessa forma, o segundo filme protagonizado por Ben Stiller virou Entrando numa fria maior ainda e, em 2012, o terceiro foi batizado de Entrando numa fria maior ainda com a família. Como se vê, um fiasco, até porque, apesar de imenso, o título não quer dizer absolutamente nada – pode se referir à qualquer situação, uma viagem mal-sucedida, por exemplo. E a história, pelo menos a do primeiro, é sobre um cara que vai conhecer a família da noiva, cujo pai é bastante esquisito.

REVELAR O FIM
A criatividade dos tradutores brasileiros claramente tenta dar uma “melhorada” nos títulos originais. O clássico dos anos 1980, Ferris Bueller’s day off ganhou fama no Brasil como Curtindo a vida adoidado. Já a comédia Airplane teve uma incrementada no título quando chegou por aqui, transformando-se em Apertem os cintos, o piloto sumiu, que, na realidade, é um pequeno spoiler.


Título de O sobrevivente no Brasil conta o final do filme. Foto: Divulgação

A propósito, contar parte do filme é o que boa parte das “traduções” de títulos fazem, como aconteceu com The graduate, mais conhecido no país como A primeira noite de um homem. Outro caso absurdo é o da obra de Werner Herzog, de 2006, O sobrevivente (Rescue dawn). Ou seja, o título simplesmente conta o final da história! E já que revelaram o desfecho, podemos falar da trama, não é? Um helicóptero cai no Vietnã, durante a guerra, e os tripulantes americanos ficam reféns dos vietcongues, recebendo dos algozes tratamento especial à base de pouco arroz e ínfima água. Um dos soldados é interpretado por Christian Bale. Com isso, o espectador já sabe quem será “o sobrevivente”. Outro exemplo clássico de spoiler é o de Vertigo (Vertigem), de Alfred Hitchcock, que aqui virou Um corpo que cai.

Há os casos de traduções ainda mais desconexas do sentido original. Essas versões ganharam tons poéticos e pomposos como Meu ódio será sua herança, clássico faroeste de Sam Peckinpah. O problema é que não existe, para justificar o nome, relação entre pai e filho, muito menos uma herança. O original é The wild bunch, que seria algo como “o bando selvagem”. Já o western de William Wyler The big country se tornou Da terra nascem os homens. Um outro exemplar da mesma época, dessa vez do diretor Elia Kazan, Giant, com James Dean e Elizabeth Taylor, conquistou sua fama aqui como Assim caminha a humanidade, que até música de Lulu Santos virou. Mais um título épico é o de Os brutos também amam. O original é Shane.


Sequência de Meu primeiro amor recebeu, no nome, um absurdo “2”. Foto: Divulgação

A propósito, os tradutores brasileiros parecem ter um problema com títulos originais que tragam nomes próprios – estes logo se transformam em outra coisa, como All about Eve, mais conhecido no Brasil como A malvada. O pior é que a capa do DVD, que traz o rosto de Bette Davis com aquele ar soberbo e meio enjoado, faz com o que o público leigo pense que o adjetivo do título refere-se a ela. E aí, pelo menos, surpreende-se com o desenrolar do enredo.

O já citado Woody Allen geralmente não é tão importunado pelas traduções. Dos seus 70 filmes, pouquíssimos sofreram com novos batismos. Por isso, o diretor não teria muito do que reclamar. Afinal, o maior título da história e mais louco do cinema pertence a ele e foi traduzido literalmente, no Brasil, como Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar. Mesmo assim, o prolífico cineasta tem um contrato de direito sobre seus títulos. Por isso sua obra de maior sucesso de bilheteria, Midnight in Paris, virou Meia-noite em Paris mesmo.

Para concluir, não podemos esquecer aquele que talvez seja o mais bizarro caso de título estapafúrdio no Brasil – e não é o de Se beber não case 3 lá do começo do texto. Estamos falando de My girl, aquele em que o então badalado ator mirim Macaulay Culkin se apaixona por uma menina bem legal, mas daí ele morre e fim. Na sequência, a tal “girl” encontra um novo pretendente em sua vida. Como ficou em português? Meu Primeiro Amor 2. Sem mais.

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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