Como atirar flechas no escuro
Fotógrafos com pouca ou nenhuma visão indicam, com seus trabalhos, que aquilo que registramos não está necessariamente ligado aos olhos
TEXTO André Valença
01 de Março de 2013
O fotógrafo Benjamim Paige produziu a 'Murder scene' a partir da técnica de light painting
Foto Reprodução
Em Dirigindo no escuro (Hollywood ending), filme de uma safra de Woody Allen realizada entre os anos 1990 e início dos anos 2000, o diretor de cinema Val Waxman entra em crise às vésperas das gravações do seu próximo projeto, sendo diagnosticado por seu psiquiatra com um caso de cegueira histérica. Com a visão temporariamente ausente, por conta do surto, o personagem tem que rodar o longa, senão pode ficar malvisto em Hollywood. Waxman chega a concluir o filme, mas é tão ruim, que só os franceses gostam, pelo fato de os enquadramentos serem bastante “conceituais”.
Como premissa, abre espaço para situações inusitadas e discussões filosóficas sobre um mundo mediado por imagens, ou até regido por elas. A piada de Allen pode até fazer sentido no filme, mas ignora a possibilidade do cego como um artista versado em cultura visual. No contexto do filme, o cego tem que ser um “analfabeto visual” para gerar um fator de comicidade. Na vida real, entretanto, a ideia de inacessibilidade da fotografia para o deficiente visual já foi desbancada, como demonstra o caso de Evgen Bavcar. Conhecido como “o” fotógrafo cego, o esloveno tinha 12 anos, quando sofreu dois acidentes distintos e consecutivos que lhe custaram os olhos (o esquerdo foi perfurado por um galho de árvore, e o direito foi lesado pela explosão de uma mina). Anos depois, clicou um retrato da moça por quem estava apaixonado e sentiu prazer em roubar e fixar na película algo que não lhe pertencia.
Bavcar, hoje consagrado como um grande artista, é a maior inspiração para fotógrafos com deficiência visual. E não há necessidade de ir muito longe para encontrá-los. O funcionário da Unicap, Milton Carvalho, conta que decidiu aprender a fotografar depois de ter sido exibido, numa aula do curso de Jornalismo, o documentário Janela da alma, de Walter Carvalho, no qual Bavcar é entrevistado. “Confesso que estava temeroso ao me matricular na disciplina. Quando assisti ao filme, notei que a fotografia não é só feita com os olhos, embora o produto seja um material visual”, comenta.
Portador de glaucoma crônico (cego de nascença, portanto), Milton não tem nenhuma percepção em termos de imagens, apesar de dispor de um resíduo visual que lhe permite distinguir diferentes luminosidades. Para que possa bater as poses, ele usa uma série de estratégias. “Com relação ao foco, fizemos uma marcação no anel da câmera que o regula com fitas adesivas, para que eu girasse. A distância, meço com os passos (largos, mais ou menos 1m) e depois ajusto o anel. Outras funções, eu deixo no automático”, explica. “Uma vez, quis fotografar o mar. Com ajuda do monitor da disciplina, escolhi um arrecife e cliquei quando escutei a onda arrebentar nas pedras. Também fiz o retrato de uma amiga através do tato. Outra vez, senti o calor no rosto e minha percepção me disse que o pôr do sol estava bonito; então fiz a foto”, relembra.
Electro man foi feita por artista americano que sofre de retinite pigmentosa. Foto: Reprodução
O fotógrafo profissional Teco Barbero, de Sorocaba (SP), também chegou à profissão pelo Jornalismo. Deficiente visual desde o nascimento, apresenta um problema no vítreo e na retina que impede a chegada da luz com qualidade. Como a lesão não é total, Teco tem baixa visão. “Dá até para assistir minha tevê de 20 polegadas, se eu chegar a uns dois palmos do aparelho. Quando passa de dois ou três metros, já fica difícil para reconhecer uma pessoa. Nesse caso, para eu saber quem você é, pego pontos de referência, como altura e estilo do cabelo. Depois, vou compondo mentalmente.”
Um dos trabalhos de Teco foi uma campanha junto à revista IstoÉ, na qual produziu fotos de cinco dos maiores medalhistas para-atletas brasileiros. Nas imagens desse que deve ser um dos ensaios artísticos mais inclusivos do país, os esportistas aparecem em ação, desempenhando suas habilidades. “Esse foi um ensaio planejado. Tinha bastante movimento, o que seria um dado complicador, mas era movimento programado. Então, eu já sabia o que queria fazer e foi questão de acertar o momento”, relata. Para Teco, o desajuste da retina pode ser exatamente aquilo que ajusta o obturador. “O importante é mostrar às pessoas a forma como estou enxergando aquilo. Entenda ‘enxergar’ como a função de qualquer que seja o sentido do corpo.”
Existem, na realidade, variadas técnicas de se fotografar sem ver. O nova-iorquino Seeing With Photography Collective, especializado em fotógrafos com deficiência visual, por exemplo, encontrou na técnica de light painting (pintura com luz) a fórmula ideal para produzir suas imagens. “Na verdade, somos um grupo misto, com cegos e não cegos”, diz Mark Andres, fundador do coletivo. “Normalmente, nosso trabalho é colaborativo. Você não vai realmente distinguir qual foto é de quem apenas olhando para ela. Resolvemos criar o SWPC porque sempre achei que a maioria das instituições trata os cegos como crianças”, explana.
O fotógrafo Teco Barbero, que possui persistência de vitreo, registrou aluna cega de seu curso de fotografia. Foto: Reprodução
LIGHT PAINTING
A técnica desenvolvida pelo coletivo é a mesma praticada por Bavcar. Funciona mais ou menos assim: os integrantes imaginam uma cena e criam um cenário numa sala escura. Um ajudante que enxerga ajuda-os a arrumar o tripé e direcionar a câmera. Eles explicam o enquadramento (um tanto de espaço acima da cabeça da pessoa, um tanto abaixo etc.), descrevendo com as mãos, para serem mais exatos. Em seguida, ajusta-se o tempo de exposição – o obturador fica aberto, recebendo luz por um período que pode variar de um minuto a uma hora. O fotógrafo, então, usa lanternas pequenas, que vão criando pontos luminosos dentro do quadro, funcionando com um “pincel”.No momento em que o obturador fecha, uma imagem foi impressa com essas “pinceladas”, e o resultado só é possível de se detectar no fim, quando a imagem foi inteiramente captada.
“Quando você desenha com a luz, não consegue ver a imagem enquanto a produz”, fala Andres, “tem que concebê-la previamente na cabeça, ao invés de vê-la. Pessoas que perderam a visão ao longo da vida ainda têm a concepção visual das coisas, imaginam visualmente, pensam visualmente o tempo todo. Sonham como a gente. Elas não têm muito como descrever isso, no entanto. A gente não tem ideia de como a percepção imagética de mundo deles muda ao longo do tempo. Mas o que as fotografias fazem é revelar o tipo de coisas em que a gente pensa, não que a gente vê. São as nossas memórias, os nossos sonhos”, observa.
Andres, que enxerga normalmente, conta o caso de dois estudantes seus que têm uma doença chamada retinite pigmentosa. “Nessa condição, você perde primeiro sua visão periférica, que vai se restringindo até que pareça como se você estivesse vendo por um canudo. Então, eles só podem perceber uma pequena mancha de luz no mundo. E, a partir desses pedaços, eles tentam reconstruir com a memória o que viram. De certa forma, é análogo à nossa experiência. Nós contemplamos o mundo em pedaços e reconstruímos uma noção dele a partir desses fragmentos. A diferença é que a gente faz isso inconscientemente; eles, não. Daí, surge um problema, que é igual ao nosso: quando visitamos um lugar, saímos dele e, se voltarmos, ele pode estar diferente. Quando eles terminam de ‘escanear’ uma imagem e voltam para o primeiro lugar, já há outra configuração”, discorre.
VIABILIDADES
Outro artista que vem usando a light painting como principal técnica para fotografar é o americano Pete Eckert, que também sofre de retinite pigmentosa. Uma vez diagnosticado com um problema que faria sua visão ficar ainda mais estreita, Eckert, que já trabalhava com xilogravura, viu-se na necessidade de aprimorar suas habilidades táteis. Um dia, já cego, achou uma câmera velha – uma Kodak de 1950 – da sua falecida madrasta e, fascinado por aparatos mecânicos, começou a futricá-la. “Depois, acabei deixando a xilogravura”, conta Eckert, “era um processo lento. Talhava imagens grandes para poder senti-las. Era um tanto confuso. Quando encontrei a câmera, pensei que poderia ser muito mais rápido. O ‘evento’ de tirar fotos é melhor, você tem apenas que memorizar os sons e controlar a câmera. Xilografia demora muito. Escultura é uma outra alternativa viável”, comenta.
Foto integra ensaio realizado na Praia de Boa Viagem por funcionário da Unicap que tem glaucoma. Foto: Reprodução
As fotos de Eckert descrevem cenas etéreas, fantásticas, às vezes assemelhadas a uma ficção científica. “Pintura com luz não é o único método que faço. Se bem que a maioria envolve fotografia de baixa velocidade. Eu uso mais a light painting, porque me dá a chance de alterar a imagem. Photoshop não é acessível para os cegos”, afirma. Quanto às estratégias de fotografia, revela: “Dirijo meus modelos no escuro. Uso minha voz para localizá-los através do eco, como um morcego. Minha fala também os deixa saber como estou construindo uma imagem na cabeça e os acalma se estão nervosos. O problema é que alguns modelos não gostam de posar no escuro”.
O consenso parece ser o de que a fotografia é produzida a partir de uma congregação de fatores que envolvem a mente e os variados sentidos (sejam estes quais forem e que força tenham). Se a foto é vista como o resultado de um processo não técnico, mas artístico, os limites para quem lhe possa ter domínio se esvanecem. No site oficial de Bavcar, há uma declaração sumária neste sentido: “Eu sinto uma enorme proximidade daqueles que não consideram fotografia um ‘pedaço’ de realidade, mas uma estrutura conceitual, uma forma sintética de linguagem pictórica, até uma imagem suprematista como o quadrado negro de Malevich. A direção que eu tomei é mais próxima de um fotógrafo como Man Ray, do que formas como a reportagem, que é como atirar uma flecha em direção a um momento fixo”.
ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.