Nas memórias de Últimas palavras (Globo Editora), Hitchens se oferece ao leitor num retrato de corpo inteiro, como se dois homens estivessem falando, e, ao mesmo tempo, por um só: é o súbito paciente que não esconde o espanto e a fragilidade diante do câncer de esôfago, que acabou por vencê-lo em 2011; ainda assim, permanece o polemista hábil em desembrulhar os argumentos contrários num piscar de olhos, e por “contrários”, leia-se aqui a infâmia de grupos religiosos que atribuíam sua doença a algum castigo divino (e jamais à decorrência natural do seu estilo de vida nada frugal) e até rezavam por uma redenção tardia. Mas ele preferiu a escolha do materialista Voltaire: a morte não é uma hora boa para começar novas amizades.
No seu caso, a possibilidade de uma morte iminente foi a hora de pesar contradições, de farejar o perfil de um inimigo que não se importava com seu calibre intelectual ou com sua posição política – esquerda ou direita, tanto fazia, o inimigo já ocupara o centro de tudo. Fez da relação com a mortalidade um assunto de pesquisa e inquietação como qualquer outro, um exercício delicado, mas necessário. Não havia outra forma de reagir: “Contra mim está um alienígena cego e sem emoções, animado por alguns que há muito me desejam mal. Mas do lado da continuidade de minha vida está um grupo de médicos brilhantes e devotados, mais um número impressionante de grupos de oração. Sobre ambos espero escrever da próxima vez se – como meu pai invariavelmente dizia – eu for poupado”.
PROBLEMA SEDUTOR
A morte, assim como o amor, é tema recorrente da literatura. A narrativa mais famosa do Ocidente é justamente a detalhada descrição dos últimos dias de um homem: sabemos (e alguns de cor) todas as chagas que marcaram o corpo de Cristo, os detalhes da crucificação, suas últimas palavras. Nossa cultura é quase toda construída a partir desse padecimento. O enigma do Santo Sudário, por exemplo, persiste como assunto favorito dos sensacionalistas, a partir de sua dupla função: o manto nos lembra da morte do Filho de Deus, ao mesmo tempo em que assinala como possível nossa crença na Ressurreição, nossa suspeita de que não há um fim definitivo. “Nada, falso ou verdadeiro, é tão impressionante”, arrematou o historiador italiano Thomas de Wesselow em O sinal – o Santo Sudário e o segredo da ressurreição (Cia das Letras), quando do seu primeiro encontro com a relíquia cristã. Não poderia ter sido mais exato.
Um fisiológico Tolstói expôs uma espécie de making of da morte e do luto na novela A morte de Ivan Ilitch, texto perturbador por mostrar os personagens desprevenidos, despidos da encenação que a vida exige, como aquele Hitchens que um dia flagrei em Paraty. Tolstói nos descreve o terror e a falta de sentido do falecimento de Ivan Ilitch apenas para fazer um raio X da falta de destreza dos que sobrevivem em lidar com o tema. Morrer é um problema apenas para os vivos. Um problema até sedutor, como ironizou a poeta Emily Dickinson, que fez da morte um derradeiro príncipe encantado, que a resgataria de sua vida claustrofóbica: “Éramos nós dois na carruagem e a eternidade”, “suspira”, num dos seus poemas sem título mais forrados por passagens fantasmagóricas.
Em O ano do pensamento mágico, a escritora Joan Didion tenta compreender o trabalho do luto. Foto: Divulgação
Roland Barthes transformou o luto pela mãe num diário de aforismos preciosos. Temia que a perda corresse o risco de ser esquecida. “Todos calculam – eu o sinto – o grau da intensidade do luto. Mas é impossível (sinais irrisórios, contraditórios) medir quando alguém está atingido”; “Primeira noite de núpcias. Mas primeira noite de luto?” são algumas das suas anotações. Em determinada altura, é certeiro ao questionar a função daquela escrita que o consumia diariamente: “Não quero falar disso (da morte) por medo de fazer literatura – sem estar certo de que não o será –, embora, de fato, a literatura se origine dessas verdades”.
Mas em que consiste o trabalho realizado pelo luto, tão materializado na nossa cultura? “O exame da realidade mostrou que o objeto amado não mais existe, e então exige que toda libido seja retirada de suas conexões com esse objeto. Isso desperta uma compreensível oposição – observa-se geralmente que o ser humano não gosta de abandonar uma posição libidinal, mesmo quando um substituto já se anuncia”, observa Freud em seu ensaio Luto e melancolia (1917), que lembra a incômoda verdade do quanto fazemos questão de continuar a viver com o morto ao lado. Precisamos, ao menos por um tempo, nos afastar de qualquer atividade que não se ligue à memória do falecido. O funcional paradoxo de lembrar para esquecer.
No best-seller O ano do pensamento mágico (Nova Fronteira), a escritora norte-americana Joan Didion seguiu a lição barthiana de escrever para compreender o trabalho do luto: seu marido morre subitamente durante um jantar. “A vida se transforma rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar, e aquela vida que você conhecia acaba de repente. A questão da autopiedade.” Foram as primeiras palavras que ela escreveu após o “ocorrido” (necessário eufemismo da autora para tratar da morte do marido, afinal, por um tempo, talvez seja melhor não dizer a palavra precisa, temos de riscá-la do dicionário).
Durante longos meses, Joan não conseguiu mais escrever coisa alguma. Mas salvou num arquivo de computador “A vida se transforma rapidamente”, como o refrão que um dia lhe guiaria de volta ao trabalho, de volta a algo próximo a uma existência normal e menos dependente do trauma. Em pouco menos de dois anos, Joan sofre outra perda: desta vez, a da filha. A escrita volta a ser sua tentativa de reconstrução no recente Noites azuis (Nova Fronteira), testamento de quem se sabe a mulher que restou, mas que ainda assim deixa escapar a incredulidade com suas tragédias pessoais, a mesma incredulidade que nos leva, muitas vezes, a pensar “Emergência, continuo a acreditar, é algo que acontece com os outros” – frase que a autora destaca com precisão no texto.
O enigma que envolve a história do Santo Sudário é tema recorrente. Foto: Divulgação
A SENTENÇA
O livro de Hitchens se insere num lugar estranho na literatura sobre morte. Últimas palavras é a narrativa de alguém em luto por si mesmo. É alguém aperfeiçoando a arte de (se) perder. O fato do livro ser inacabado só realça o esforço vivido pelo autor em ordenar o caos de um diagnóstico e em tentar responder a perguntas como “o que fazer quando há uma sentença irrevogável que vai de encontro a tudo o que você havia planejado?”.
“O fato fascinante sobre estar mortalmente doente é que você passa bastante tempo se preparando para morrer com um bocadinho de estoicismo (e de provisões para os entes queridos), enquanto está simultânea e altamente interessado na questão da sobrevivência. Essa é uma forma de ‘vida’ bizarra – advogados pela manhã e médicos à tarde -, e significa que a pessoa tem de viver com uma postura mental dupla para além do habitual. O mesmo é verdade, aparentemente, para aqueles que rezam por mim. E a maioria entre estes é tão ‘religiosa’ quanto o camarada que quer que eu seja torturado aqui e agora – o que serei, mesmo se acabar me recuperando – e depois torturado para sempre, se não me recuperar. Ou, presumivelmente, inclusive se eu me recuperar”.
Sabendo-se morador da Tumorlândia, Hitchens se esforça para criar uma espécie de manual de etiquetas para os estrangeiros. Um doente não precisa ouvir falar o tempo inteiro do seu mal; ninguém deve perder tempo relatando a experiência de conhecidos, ou conhecidos de conhecidos, que não tiveram cura; e mais: evite a superioridade de olhar com a expressão de “eu entendo o que você está passando...”. Não, definitivamente não entende. Essas são algumas das regras preciosas, as primordiais, que os visitantes não podem deixar de ter em mente na hora de cruzar a fronteira da Tumorlândia.
E com certeza seus editores também não compreenderam as regras dessa nova terra, tanto que pontuaram a edição com um posfácio da viúva lembrando as qualidades do marido e com deixas lembrando que determinada passagem havia ficado incompleta ou desordenada. A própria vida é uma experiência incompleta e, em alguns momentos, desordenada. Por isso se escreve.
SCHNEIDER CARPEGGIANI, jornalista, mestre e doutor em teoria literária, editor do jornal literário Pernambuco e da revista ArtFliporto.