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Berlim: Pelo princípio, meio e fim

Um passeio pela capital alemã para além do seu neon para turistas, chegando até os extremos das linhas de metrô da cidade

TEXTO SCHNEIDER CARPEGGIANI
FOTOS ADELAIDE IVÁNOVA

01 de Maio de 2011

As promessas de uma pista de dança perfeita levam multidões para a capital alemã desde a década de 1990

As promessas de uma pista de dança perfeita levam multidões para a capital alemã desde a década de 1990

Foto Adelaide Ivánova

Andrew, meu colega de hostel, tem 26 anos e trabalha numa linha de cosméticos chamada Androginy. Nas poucas vezes em que nos encontramos (ele estava quase sempre dormindo ou indo para alguma festa), carregava uma garrafa de Bacardi prateada, enfeitada de glitter, e um copo longo com uma rodela de limão. Acho que bebia até quando tomava banho. “I love Bacardi, tem certeza de que não quer?”, repetia com um sotaque australiano que, de tão carregado, fazia o seu sobrenome de 20 consoantes soar ainda mais impronunciável. Era sua quarta viagem a Berlim em três anos. Conhecia Londres (“Muito cara”), Paris (“Eu vivo para a moda...”) e sobre Amsterdã tinha lembranças impublicáveis. Mas por que mesmo insistia em voltar a Berlim? “Aqui, a gente vem para dançar...”

Por mais inclusivo que soe, o “a gente” define os gostos de um grupo específico. “A gente” nunca implica em todos, mas enfatiza a preferência de alguns. O “a gente” de Andrew responde pelo turismo clubber que invade há duas décadas a capital alemã. Esse “a gente” passa longe do Portão de Nuremberg ou do Monumento aos Judeus, que tão bem sinaliza os melindres de uma cidade apavorada com a possibilidade de esquecer, ou da estátua do anjo dourado que nos remete logo ao filme de Wim Wenders. Também não se interessa pela Nefertiti, a Mona Lisa local. Nem pelas galerias de arte do Mitte, ex-região moderna e hipster, que agora recebe uma horda endinheirada de turistas, que em nada lembra a atmosfera de ponto de encontro de squatters e punks do começo da década passada. A modernidade berlinense já é tão fotografável quanto as ruínas do Muro.


As peculiares vitrines que negociam a moda para imigrantes turcos em Neukölln

O turismo clubber não assistirá a uma das remontagens de O anjo azul, sempre em cartaz pela cidade. Nem caçará as lembranças dos exageros químicos de Christiane F., espécie de Perna Cabeluda local, que vagava perdida pela (hoje) iluminada estação de Metrô Zoo. E muito menos perderá uma tarde de domingo num lugar como o Clärchens Ballhaus, restaurante que sobreviveu a uma guerra e a muitos modismos, onde você pode dançar uma valsa (ou algo parecido) enquanto espera seu prato (sempre ótimo). Na verdade, turista algum vem até aqui. A vida noturna berlinense é um clichê, que sempre encontra porta-vozes que a renovem, como num museu de velhas novidades. Nos anos 1970, foi nela que David Bowie encontrou inspiração e refúgio para fazer alguns dos seus melhores álbuns (a trilogia HeroesLow e Lodger). Nos anos 1980, era simbolizada pelo punk operístico da colorida Nina Hagen. Foi também techno nos anos 1990. Há pouco, o vocalista do grupo norte-americano Scissor Sisters, Jack Shears, disse que precisava dos excessos das noitadas de música eletrônica e de sexo que só a capital alemã podia oferecer, para voltar a compor. É como diz o slogan: “Berlim é pobre, mas sexy”. Pobre em termos. Mas sexy, definitivamente.


Lixo e lojas de acessórios são comuns nas ruas do mesmo bairro

Turistas como Andrew e seu “a gente” vão a lugares como o Berghain, clube noturno já eleito pela DJ Mag como o melhor do mundo, instalado numa antiga usina termoelétrica, que mais parece uma prisão. Aqui, a revista na porta é severa: grupos de amigos, gente careta ou com (naturais) cabelos brancos nem pensar. É preciso ser independente, jovem e exótico – seja lá o que essas três coisas hoje signifiquem. Ou no S036, que abriga uma animada e notória noite “gay-lésbica-oriental” (sic) e festas de disco music bregona (tipo Rita Pavone) para a comunidade imigrante italiana. Ou no Rote Rose, bar fecha-nunca, que Christiane F. adoraria. Ou também no Chantal’s House of Shame, bate-ponto do underground berlinense às quintas. Na noite em que estive lá, apresentou-se “um novo artista da cena electro” (tal e qual a drag queen Chantal nos apresentou), todo vestido de couro.

Tocou teclado com a mão esquerda e com a língua (!). Andrew estava lá. Adorando, claro.

Apesar de não ter ido a Berlim só para dançar, resolvi, ao menos por uma noite, fazer parte daquele “a gente”. Das 23h até o começo da manhã seguinte, percorri sete clubes diferentes. Era sábado e, no final de semana, o metrô funciona 24 horas. A aventura começou na White Trash, festa indie semanal do restaurante White Trash Fast Food, e passou até por um (ótimo) clube sem nome na porta ou qualquer outro tipo de indicação, no fim de uma rua sem saída. Mais sugestivo, impossível. Como cheguei lá? Segui um grupo com cara de que ia para uma festa ou de que, ao menos, precisava ir para uma desesperadamente. Quando esse povo desceu na estação Kottbusser Tor, fui atrás. Perdido, sempre siga o fluxo maior que salta do metrô. Conselho duvidoso (confesso), mas que (dessa vez) funcionou.

Após entrar e sair de clubes e estações, tive certeza de que queria escrever sobre a cidade, mas sobre o que mesmo? A vida noturna de Berlim era interessante, sim, mas talvez. Talvez. A ideia desse texto surgiu de um daqueles “e se” que nos perseguem quando estamos sozinhos: e se, durante essa odisseia, perdesse a parada e acabasse numa daquelas estações de nomes impronunciáveis? Ou pior: e, se, num cochilo, terminasse parando no fim da linha do metrô – um destino de riscos mais psicológicos do que físicos, claro, mas ainda assim uma possibilidade assustadora. É incrível o quanto a ideia do fim da linha é, em medidas iguais, atrativa e apavorante. Verdadeira porta de entrada para todo tipo de metáfora. Raramente vamos até o fim da linha, mas sabemos que, se descuidarmos, é lá que vamos parar. Bingo: iria para o fim da linha e sobre isso escreveria.

Num sábado pela manhã, acompanhado da fotógrafa pernambucana, residente em Berlim, Adelaide Ivánova (que mesmo no inverno chama a capital alemã de “minha garota”), fui aos extremos da U2, linha por onde Andrew e todo aquele “a gente” se perdem, encontram-se e forjam suas fantasias do que seria a noite perfeita. No caso, uma noite em Berlim. Além da U2, fomos também ao bairro Neukölln, um dos extremos da U7, habitado por imigrantes turcos que vivem numa espécie de fim da linha como cidadãos. Detalhe curioso: para nossa surpresa, uma das estações finais da U2 estava em obras. Fomos obrigados a descer uma antes. O que acabou oferecendo uma ótima lição: tem horas que o fim da linha chega quando a gente menos espera. E não há (literalmente, como você verá em seguida) nada que temer por lá.


O bairro de Pankow é cheio de detalhes, que exigem olhar apurado do visitante

NEUKÖLLN
“Eu não sou preconceituoso, mas...” Quando você se depara com um “mas” acompanhando uma afirmação, pode ter certeza de que logo, logo, vai ouvir alguma besteira. Dito e feito. Foi o que aconteceu comigo durante uma conversa com um daqueles amigos instantâneos que a gente faz num clube noturno, mais especificamente no clube Chantal’s House of Shame. Ele, berlinense da “gema”, me disse, orgulhoso, que essa história de neonazista é lenda urbana e que o “problema” de Berlim eram os turcos. Pois esse alemão, nada “preconceituoso”, ficou emudecido quando lhe contei uma rápida historinha.

No domingo pela manhã, saindo do meu hostel, no abastado bairro Nollendorfplatz, eu e alguns amigos (nenhum deles alemão) fomos surpreendidos por um senhor que gritava na rua (em inglês) “Fora, estrangeiros! Os alemães são os melhores!”. Foi uma cena tão assustadora, que saímos em disparada. Não deu para ver se era um bêbado, um louco ou se suas palavras eram, de fato, dirigidas a nós. Os berlinenses são orgulhosos de que sua cidade é segura e repetem isso o tempo inteiro. De fato, parece ser. Mas sempre há os fantasmas...


Estátua de cervo num dos parques do bairro de Pankow

Esse prelúdio é uma boa introdução para falarmos de Neukölln, um dos extremos da U7, subúrbio onde mora a fotógrafa Adelaide Ivánova desde fevereiro e pelo qual nutre uma relação também extrema. Ao mesmo tempo em que faz questão de ressaltar seu pouco apreço pelo bairro (mantém na bolsa um spray de pimenta e posta frases como “Jesus, me dê um lugar decente” em seu blog Vodca barata), passa horas vagando pel, a vizinhança tentando encontrar um Neukölln que mereça ser fotografado. Quer se deparar na foto com o que não achou (ainda) no afeto. Quer fazer de Neukölln um amor à última vista. Mas não é fácil.

Neukölln é sujo, escuro e pobre (e nunca pobre e sexy, como Berlim faz questão de bradar que é). É uma alegoria viva da relação que a cidade mantém com os imigrantes de países árabes. Sobre seu complicado bairro, Adelaide comentou: “Neukölln lembra a Teodoro Sampaio, rua onde morei em São Paulo. As lojas são uma baixaria, o povo larga resto de comida no chão, bitucas de cigarro e há cocô de cachorro por toda parte. Os carros são antiquados, as butiques são um mix de roupas tradicionais com roupas de festa cafona ou então um mix bizarro. Uma loja que se chama ‘The sexy way of princess’ vende esses lenços muçulmanos feitos para deixar a mulher tudo, menos sexy. É um bairro não só de imigrantes, mas de muitos alemães desempregados ou sem estudo, por isso é considerado perigoso”.


Surpresa na descida do metrô, para o Olympia-Stadium: apenas a visão de um lago congelado

PANKOW
Você sabe que está longe de casa quando uma desconhecida o olha de cima a baixo, curiosa, e não resiste à pergunta: “Por que vocês vieram até aqui?”. Foi a reação da vendedora Sandra Kuerig, que trabalha na loja fetiche Cathe Fleur, especialista em chás, chocolates e outras desnecessárias necessidades, como um carrossel de brinquedo que pousa reluzente na vitrine. Sandra tem dois empregos. Um deles numa farmácia na turística Alexanderplatz, na qual se comunica basicamente em inglês. Na Cathe Fleur a coisa é diferente. “Aqui não vem turista. Quem frequenta a loja são as pessoas do bairro”, explicou-nos. Foi a deixa para a primeira lição da viagem: fins da linha são para iniciados e moradores.

Se você quiser saber o que existe por trás da Berlim noturna e cosmopolita, Pankow é seu fim da linha. Aqui não há neon. Mas estúdios de fotobeleza, em que fotógrafos prometem uma juventude instantânea à força de boás coloridos e falsas paisagens amareladas de Alpes Suíços. Há também um fajuto restaurante italiano chamado Happy Pasta (com um nome desses, é impossível exigir grandes verdades) e um cemitério que o inverno faz parecer ainda mais desolador. “Por que alguém compra uma casa com vista para um monte de túmulos?”, perguntou Ivánova, quando percebeu que algumas das melhores residências de Pankow eram coladas ao cemitério.


O metrô que leva iniciados e iniciantes ao fim, meio e princípio da linha

Quando estava a caminho de Pankow, descobri que uma amiga já havia passado por lá há alguns anos. Pelo Facebook, ela mandou a eufórica mensagem: “As pessoas lá são verdadeiros museus ambulantes. O Muro de Berlim parece que não caiu em Pankow ”. Essa sensação ficou mais forte quando descobrimos uma rua chamada Herman Hesse e um parque chamado Maiakóvski, que era onde os líderes da Alemanha comunista moravam.

Mas Pankow é fascinante porque é extremamente banal. De uma banalidade que não encontramos fora da Alemanha, ou mesmo fora de Berlim, que sobrevive sem o polimento de uma cidade que está sabendo trocar a história pelo status de ser um dos maiores destinos turísticos do mundo. Pankow parece a salvo dessa troca. No retorno para a estação de metrô, comentei com Ivánova que esse era um daqueles lugares perfeitos para alguém (querer) se perder e nunca mais voltar. Sensações típicas de fim da linha.


Declaração de amor eterno nas paredes de Pankow

OLYMPIA-STADIUM
O fim da linha não era aqui, mas acabou sendo. Próximo a Ruhleben, a outra estação final da U2, descobrimos que ela estava em reforma, e o fim havia sido, subitamente, antecipado. Era preciso saltar uma estação antes. Ao descermos na Olympia-Stadium, a grande surpresa: não havia nada ali. Esse nada era materializado por uma parada de ônibus vazia e um lago congelado. Ao longe, duas senhoras caminhavam com um cachorro. Ivánova saiu em disparada, pensando nas metáforas que suas fotos poderiam suscitar. O “fim” e o “nada” parecem conceitos irresistíveis para os fotógrafos.

Enquanto ela corria fascinada em meio ao playground que era o nada ao seu redor, fiquei pensando numa frase publicada há algum tempo no seu blog: “O mais difícil do inverno não é o frio, mas o silêncio”. Um silêncio tão profundo, que as atrações de luz neon que nos atraem a Berlim fingem jamais escutar. 

SCHNEIDER CARPEGGIANI, jornalista e editor do suplemento Pernambuco, doutorando em Teoria Literária.
ADELAIDE IVÁNOVA, fotógrafa, blogueira do Vodca Barata que atualmente mora em Berlim.

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