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Anonimato: O que há por trás da máscara?

No vaidoso meio artístico, que alimenta o culto às celebridades, raríssimos profissionais se aventuram em se manter em sigilo ou usar pseudônimo para esquivar-se de alguma situação de risco

TEXTO Débora Nascimento

01 de Abril de 2011

Anonimato do grafiteiro Banksy tem efeito de proteção contra processos judiciais

Anonimato do grafiteiro Banksy tem efeito de proteção contra processos judiciais

Foto Divulgação

Os dias que antecederam a 83ª edição do Oscar trouxeram rumores de que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas não estaria sabendo como lidar com a seguinte questão: os procedimentos para o acesso de um indicado anônimo ao Teatro Kodak, no dia 27 de fevereiro. Com o surpreendente Exit through the gift shop concorrendo na categoria de Melhor Documentário, o grafiteiro inglês Banksy teria causado perturbação entre os organizadores da cerimônia, pois seu rosto e verdadeiro nome são desconhecidos. Como, então, a instituição, acostumada a gente que não precisa de crachá, como Tom Cruise, iria permitir o acesso ao sagrado templo das celebridades a alguém que não tem sua face estampada em revistas, sites, pôsteres, outdoors e TVs? Qualquer um poderia aparecer e se dizer Banksy.

Com esse comportamento raro no vaidoso meio artístico, o ícone da street art integra uma lista de artistas que optam por não revelar sua identidade. Seja qual for o motivo, essa estranha conduta, que vai contra as regras do mercado da arte, acaba por funcionar, em alguns casos, como uma inesperada e eficiente estratégia de marketing. Neste mundo em que a maior parte das pessoas está sedenta por bisbilhotar a vida alheia, surgir alguém querendo manter sua privacidade e identidade em sigilo configura-se um baita atrativo para o inconsciente coletivo.

Mas esse subterfúgio não pode ser usado por qualquer um. Apenas funciona se for empregado por quem tiver uma obra de arte que se sustente por si só, a exemplo do próprio Banksy, que angariou não somente a admiração de seus colegas grafiteiros mundo afora, mas também de críticos, marchands, colecionadores e de celebridades, como o ator inglês Jude Law, o casal Brad Pitt e Angelina Jolie, que marcaram presença em mostras do artista.

No caso de Banksy, é bastante compreensível que ele prefira manter o anonimato, ao invés de saborear as glórias da fama, pois ao interferir diretamente em áreas urbanas, sua arte pode lhe render, por tabela, processos judiciais, como ocorreu com seu amigo norte-americano Shepard Fairey, que foi preso, em 2009, acusado, em dois tribunais diferentes de Boston, de ter grafitado e colado cartazes em propriedades públicas.

Fairey recentemente saiu de outra pendenga judicial com a agência The Associated Press (AP), por ter alterado, em 2008, uma foto para criar um pôster do então candidato Barack Obama, criando em tons vermelho e azul a icônica imagem vetorizada do futuro presidente dos Estados Unidos. No mês de janeiro, as partes entraram em acordo, concordando em dividir os direitos autorais da imagem e, agora, estão processando empresas que a usaram sem pedir autorização.

NA MÚSICA
Outro notório caso de anonimato na arte atual é o da dupla francesa de música eletrônica Daft Punk. Seja em shows, entrevistas ou videoclipes (dirigidos por badalados cineastas como Spike Jonze e Michel Gondry), os músicos Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter se apresentam vestidos de robôs, inclusive com interferência nas vozes para se assemelharem a sons robóticos. O fato de não mostrarem seus rostos não impede que seus concertos estejam lotados de fãs. Um desses chegou até a dedicar um estudo, divulgado no mês de janeiro, sobre as versões de todos os capacetes do duo, desde 2001, que, segundo ele, se dividem em quatro períodos (Discovery, Transition Helmets, Human After All e pós-Tron, a fase presente).

Mais um nome que seguiu esse estilo misterioso de se apresentar é o do supergrupo de heavy metal norte-americano Slipknot. Formado em 1995, já foi mais conhecido pelas máscaras aterrorizantes usadas pelos integrantes do que pela música. O sucesso dos artefatos foi tanto, que a banda passou a vender através de seu site as cópias das diversas máscaras de cada um dos nove músicos, com preços que variam entre U$ 27 e U$ 35 dólares. Para o vocalista Corey Taylor, os simulacros horrendos não são apenas “enfeites”: “É uma forma de nos tornarmos inconscientes de quem somos e do que fazemos fora da música. Existe um pequeno aspecto de nossas personalidades nelas, mas, de certa maneira, é quase como vestir a música, que, para nós, é tão tangível, que podemos nos embrulhar nela e nos sentir seguros”.


A dupla francesa Daft Punk é conhecida pelo uso de capacetes robóticos.
Foto: Divulgação

Usar o anonimato na arte pode ser um recurso praticado não apenas por capricho, mas para driblar alguma situação de risco. Ainda na música, o exemplo mais famoso no Brasil é o do compositor Julinho da Adelaide, pseudônimo que salvou a pele de Chico Buarque nos tempos da ditadura. Nesse período militar, os censores vetavam as canções do compositor só porque levavam a sua assinatura. A repercussão do pseudônimo foi tanta, que o tal Julinho chegou até a dar entrevista ao Última Hora, em 1974. Numa das falas, o “sambista da favela”, autor de Jorge Maravilha e Chama o ladrão, ironizou: “Eu respeito muito o trabalho do cara (censor). Quando termina o dia, perguntam: quantas músicas você censurou hoje? O meu trabalho é fazer música. Hoje, fiz oito ou nove. No dia em que eu faço 10, eu vou dormir em paz com a minha consciência. Cada um no seu ramo”. O jornalista Mário Prata, que entrevistou o fenômeno musical, afirmou, anos depois: “Julinho, ao contrário do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e fumava. Falava pelos cotovelos. Era metido a entender de tudo. Falou até de meningite, nessa sua única entrevista a um jornalista brasileiro”.

NO CINEMA
Usar pseudônimo também foi a forma escolhida pelo escritor Dalton Trumbo para continuar escrevendo seus roteiros, após entrar na “lista negra” de Hollywood, durante o Macarthismo. O roteirista havia sido condenado a 11 meses em uma uma prisão federal em Ashland, Kentucky, depois de ter sido acusado de desobediência civil ao Congresso dos Estados Unidos por se recusar a denunciar, em 1947, os nomes dos supostos comunistas que trabalhariam na indústria cinematográfica americana.

Após completar sua sentença, Trumbo mudou-se com a família para o México. Naquele país, passou a escrever dezenas de roteiros ou usando codinomes, como Robert Rich, para The brave one (1956), com o qual ganhou o Oscar de Melhor Roteiro, ou utilizando como fachada os nomes reais de amigos roteiristas, como Ian McLellan Hunter, para A princesa e o plebeu (1953), de William Wyler. O filme rendeu o Oscar de Melhor Atriz à estreante Audrey Hepburn, em 1954, e o Oscar póstumo ao próprio roteirista, em 1993.

Com o apoio do diretor Otto Preminger, Trumbo recebeu crédito pelo filme Exodus (1960). Em seguida, o ator Kirk Douglas, protagonista de Spartacus (1960), tornou público que foi o escritor quem redigiu o roteiro do filme de Stanley Kubrick. Isso marcou o início do fim da perseguição ao ficcionista, que passou a ser reintegrado ao Writers Guild of America – West, o sindicato dos roteiristas de Hollywood, sendo, enfim, creditado em todos os roteiros seguintes que escreveu depois. Dentre os seus maiores sucessos, estão a direção de Johnny vai à guerra (1971), adaptação de seu próprio livro, e o último roteiro, Papillon(1973), baseado no romance autobiográfico de Henri Charrière.

Além de Trumbo, outros nove diretores e roteiristas foram chamados para depor nessa comissão parlamentar de inquérito da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos. Entre eles, Elia Kazan (Sindicato de ladrões), que forneceu ao Congresso os nomes dos companheiros. Muitos que depuseram contra os colegas passaram a ser criticados, evitados e/ou caíram no ostracismo. No entanto, Trumbo sempre os defendeu, argumentando que testemunharam sob a pressão da caça às bruxas comunista.

Na literatura, o exemplo mais recorrente do uso de pseudônimo é o de George Sand, nome de fachada para a escritora francesa Amandine-Aurore-Lucile Dupin (1804-1876), baronesa Dudevant, mais conhecida como um dos ícones da história do feminismo, por ter se comportado fora dos padrões da época, como se separar do marido Casimir Dudevant, ter diversos relacionamentos, entre eles, com Prosper Merimée, Alfred de Musset e Frederic Chopin, e ser admirada por gente como o economista e filósofo Karl Marx.

O emprego do codinome George Sand foi inspirado em Jules Sandeau, o jovem que provocou o fim de seu matrimônio, e também foi um modo de driblar o preconceito da sociedade francesa da época – ainda conservadora no pós-revolução. Em 1832, estreou como romancista independente, com o livro Indiana, que alcançou grande sucesso. O uso do pseudônimo foi tão impactante, que a artista passou também a se vestir e se comportar como homem, chegando, inclusive, a fumar charutos, num período em que a mulher estava proibida de fumar. Seu trajes ajudaram também a emancipar os das mulheres do século 20, bem antes de sua conterrânea Coco Chanel (1883-1971).


O roteirista Dalton Tumbro usou codinomes para poder trabalhar em
Hollywood. Foto: Reprodução

Em sua autobiografia, Histoire de ma vie, Sand narrou o fascínio de vestir-se de forma masculina: “Desejava ardentemente perder o meu provincianismo e informar-me diretamente sobre as ideias e as artes do meu tempo (…) mas estava a par das dificuldades de uma pobre mulher em gozar esses luxos (…) Assim, mandei fazer um redingote-guérite, bem como calças e casaco a condizer. Com um chapéu cinzento e um enorme lenço de lã, tornei-me a imagem de um estudante. Não consigo expressar o prazer que me davam as minhas botas. Com aquelas solas revestidas de ferro, sentia-me firme a andar pelas ruas e corri Paris de uma ponta a outra. Dava-me a sensação de que poderia dar a volta ao mundo. Com aquelas roupas não temia absolutamente nada”.

NOVAS IDENTIDADES
Existem também artistas que, mesmo famosos, resolvem em algum momento da carreira criar personagens para si, como são os casos do músico Neil Young, que assina como Bernard Shakey, quando ataca de diretor e produtor de documentários, e do escritor Nelson Rodrigues, que, em meio à estupenda repercussão de seu nome como cronista e dramaturgo, resolveu inventar duas escritoras. A primeira delas, Suzana Flag, “escreveu” o folhetim Meu destino é pecar (1944), cuja primeira edição não trazia o nome do autor na capa, ao contrário das edições posteriores – a mais recente delas, inclusive, retira totalmente o pseudônimo da capa, desrespeitando, dessa forma, a ideia inicial do autor.

Em 1949, Nelson criou sua segunda figura, Myrna, colunista que dava dicas aos leitores (em sua maioria mulheres) do jornal O Diário da Noite de como se comportar nos relacionamentos amorosos. Myrna respondia às cartas com conselhos como, “fuja do homem bonito”, “conquiste todos os dias o seu marido”, “o amor que acaba não era amor”. Os textos assinados por “ela” foram lançados, em 2002, no livro Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo.

O êxito dessas respostas alavancou as vendas do periódico, pois Nelson usava e abusava de sua perspicácia e bom humor para tecer comentários como o seguinte: “Você termina dizendo (na carta) que o seu bem-amado é ‘bonzinho’. Eu, se fosse homem, consideraria este elogio ofensivo. Às vezes, um simples qualificativo chega para invalidar um romance. Está neste caso o ‘bonzinho’. O nosso bem-amado não pode ser ‘bonzinho’, nunca. É formidável, único, fabuloso, deslumbrante. Menos ‘bonzinho’. Agora algumas palavras proféticas: você não se casará com o atual namorado. E por um motivo muito simples: você mesma se convencerá de que não o ama. E ele também. Daqui a três anos, você conhecerá seu verdadeiro amor. E não se esqueça: com senso comum não se fazem os grandes amores”.

Mesmo artistas extremamente famosos, que têm seus rostos reconhecidos em qualquer canto do mundo, gostam de experimentar o sabor do anonimato, usufruindo um pouco das benesses que só os cidadãos comuns desfrutam, como poder circular pelas ruas livremente. Paul McCartney, por exemplo, revelou em entrevista à Rolling Stone, em abril de 1970 (o malfadado mês que marcaria o anúncio do fim dos Beatles), que, na estreia solo de George Harrison, no Madison Square Garden, em 1969, ele e Linda, disfarçados, estavam na plateia. Paul, que, nessa época, tinha rusgas com o guitarrista, estava com peruca afro, óculos escuros e bigodão falso (dá para imaginar?).

Quarenta anos depois, em entrevista à Rolling Stone brasileira, em novembro de 2010, o artista, que já lançou disco assinando como Percy “Thrills” Thrillington, contou que seu desejo de levar uma vida de cidadão comum ainda é forte, tanto que, de vez em quando, resolve pegar o metrô em Londres (e já fez o mesmo em Paris, com o vagão lotado!), usando no rosto apenas óculos escuros, e se apoiando na dúvida das pessoas para cometer essa insanidade. “Você consegue ver nos olhos deles (a suspeita), mas eu olho de volta como quem diz: ‘Eu não poderia ser ele, poderia?’” 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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