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A partitura moderna de Acacio Gil Borsoi

Em 60 anos de atividade profissional, arquiteto carioca, falecido há um ano, criou projetos emblemáticos do acervo nacional, tanto público quanto privado

TEXTO Patricia Amorim

01 de Novembro de 2010

Acacio Gil Borsoi

Acacio Gil Borsoi

Foto Arquivo de família

"Seu pai, sim, era arquiteto", costumava dizer Tom Jobim a Roberta Borsoi, nas reuniões de família. “Enquanto eu andava com livros e revistas de música debaixo do braço, ele só queria saber dos de arquitetura”, recordava o maestro. Naquela época, 1945, os jovens Acacio Gil Borsoi e Antonio Carlos Jobim cursavam o primeiro ano da Faculdade Nacional de Arquitetura do Rio de Janeiro e muitas vezes pegavam juntos o bonde que ia da Tijuca para o Centro, onde funcionava a Escola de Belas Artes.

Daqueles dois estudantes – unidos por laços familiares, muitos anos depois, com o casamento de Eliane, sobrinha-neta de Borsoi, e Paulo, filho de Jobim –, um assentou a vida na música e o outro cravou o nome entre os formandos da turma de 1949. Aí Borsoi inaugura uma das mais emblemáticas carreiras da arquitetura brasileira, traçada nas pranchetas de seus escritórios no Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, ao longo de 60 anos. Mas para que não restem dúvidas de que em Borsoi também havia música, basta lembrar de sua trajetória de criação, movida a Brahms e Mozart, de preferência com o volume nas alturas.


A fachada poente do Edifício Santo Antônio é o grande destaque, devido à membrana de elementos de proteção solar. Foto: Divulgação

Oriundos de um pequeno vilarejo em Alpago, região do Vêneto, nordeste da Itália, onde viviam do comércio de cavalos, os Borsoi chegam ao Brasil em março de 1880. Integrando a família, o jovem casal Francesco Borsoi, 23 anos, e Bonna Dinardi, 18 anos, desembarca do vapor Biltmore com o filho Antônio Borsoi ainda bebê. A criança é registrada em São Paulo e lá se instalam em busca de sua história de bem-aventurança na América, assim como tantos outros grupos de imigrantes italianos.

No Liceu de Artes e Ofícios, prédio onde hoje funciona a Pinacoteca do Estado de São Paulo, Antônio formou-se artista e artesão. Logo depois, casou-se com a carioca Inayá Pinheiro, filha de um farmacêutico do interior do Estado do Rio. Muda-se para a então capital federal e lá nascem os quatro filhos do casal. “Papai era o temporão, nascido em 2 de outubro de 1924”, conta o arquiteto Marco Antonio Gil Borsoi. “Era 15 anos mais novo que tia Bela”, diz, referindo-se ao apelido carinhoso da tia Guaraciaba. Antes deles dois, já tinham vindo Semiramis e Gérson.

Inayá faleceu com pouco mais de 40 anos, quando Acacio ainda era adolescente, abalada com a perda da filha Semiramis, em decorrência de eclâmpsia. A partir daí, Bela, funcionária pública do Ministério da Educação, assume o papel de mãe, pagando inclusive os estudos do irmão mais novo no Colégio Marista. Mestre-artesão genial, o pai Antônio Borsoi concebia e executava projetos de decoração e mobiliário, criando interiores de estabelecimentos como a Confeitaria Colombo, hoje patrimônio cultural e artístico, o Cinema Iris, a Biblioteca Nacional e o Palácio da Guanabara, entre outros espaços.


O projeto de habitações populares de Cajueiro Seco teve repercussão nacional, em 1963. Imagem: Arquivo de família

Em 1o de abril de 1943, aos 19 anos incompletos, Acacio Gil Borsoi matricula-se na escola de aeronáutica do Curso Freycinet. Naquele período, a 2a Guerra Mundial revirava profundamente a Europa, o incentivo ao alistamento militar era constante e as notícias do confronto alimentavam, nos mais jovens, sonhos de façanhas heroicas. No decorrer da avaliação, contudo, na etapa de exames físicos, Borsoi foi reprovado. “O pai de um amigo dele, que estudaria aviação nos Estados Unidos, chegou a se oferecer para lhe pagar um curso também, mas vovô não assinou os papéis autorizando a viagem”, conta Roberta. Seis anos mais tarde, arrebatado pela arquitetura, ao invés do avião, a prancheta, um Citroen, dois sócios – Almir Gadelha e Arthur Coelho –, e um pequeno escritório para começar.

ESPÍRITO BAUHAUS
“Borsoi, o que você vai fazer em Pernambuco?”, cutucou o colega Oscar Niemeyer. Indicado pelo ex-professor Lucas Mayerhofer para assumir a disciplina Pequenas Composições de Arquitetura, na Escola de Belas Artes do Recife, Borsoi consultou familiares e amigos antes de aceitar o convite. Todos foram contra. Mas, entusiasmado com a possibilidade de dinamizar o ensino e colaborar com a construção do país na era pós-Vargas, decidiu arriscar-se. “Vim com o espírito de formar um curso de arquitetura nos moldes da Bauhaus, no qual a integração das artes plásticas no saber fazer nos parecia importante”, relatou Borsoi, em 2006, no catálogo de sua exposição individual Arquitetura como manifesto.

Naquele ano de 1951, ainda no Rio de Janeiro, Borsoi já havia trabalhado com Alcides da Rocha Miranda, Affonso Reidy e Rodrigo de Melo Franco e forjava-se no exemplo de postura profissional de Lucio Costa e Joaquim Cardozo. Além disso, estava noivo de Yvonne de Azevedo Bastos, estudante de licenciatura em Artes Plásticas, juntos desde os tempos da Escola de Belas Artes.


Projetado em 1951, Hospital da Restauração foi um dos primeiros trabalhos realizados por Borsoi no Recife. Imagem: Arquivo de família

Ao chegar ao Recife, dedica-se à carreira docente, tornando-se, em 1959, titular da cadeira Grandes Composições de Arquitetura, transferindo ao amigo e assistente Delfim Amorim a matéria de Pequenas Composições. Permaneceria na instituição até 1979, agora convertida em Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, quando pediu demissão irrevogável em protesto à intervenção militar na escola.

Conjugando o ensino à atividade profissional, Borsoi influenciou várias gerações de arquitetos nordestinos, como Armando de Holanda, Vital Pessoa de Melo, Vera Pires e Arthur Lício Pontual, construindo uma obra que rejeitava o formalismo e concentrava-se na adaptação do edifício aos materiais tradicionais e ao seu entorno.

À safra inaugural de projetos arquitetônicos de Borsoi no Nordeste pertencem o Edifício Califórnia (1951), um dos primeiros arranha-céus da Avenida Boa Viagem, o Pronto Socorro do Recife (1951), hoje Hospital da Restauração, o Edifício Caetés (1955), além de uma série de casas no Recife, em João Pessoa, Maceió, Natal e Fortaleza. Nos anos 1960, destacam-se o Edifício Santo Antônio (1963) e o prédio do Bandepe (1969), intervalados pelo projeto singular da comunidade de Cajueiro Seco (1963), em Jaboatão dos Guararapes.


O projeto do Museu de Arte Moderna do Recife, realizado em 1955, não foi levado adiante. Imagem: Arquivo de família

De repercussão nacional, o sistema construtivo de Cajueiro Seco, promovido pelo Serviço Social Contra o Mocambo, foi apresentado por Borsoi no Congresso da União Internacional dos Arquitetos, em Cuba, em 1963. Com o golpe militar, no ano seguinte, entretanto, o plano-piloto foi destruído pelo governo ditatorial – e Borsoi, preso por uma semana, na Casa de Detenção do Recife, hoje Casa da Cultura de Pernambuco.

Casada com Borsoi desde 1952 e com dois filhos pequenos – Ângela e Marco Antônio –, Yvonne procurava manter o clima tranquilo entre as crianças frente à situação e visitava o marido preso, levando-lhe refeições todos os dias. Então diretor técnico do Serviço Social Contra o Mocambo, presidido pelo ex-aluno e compadre Gildo Guerra, no governo de Miguel Arraes, Borsoi não se filiou a nenhum partido político.

JOIA ARQUITETÔNICA
Buscando atender a um mercado imobiliário cada vez mais carente de projetos arquitetônicos para edifícios comerciais, residenciais e administrativos, Borsoi abriu o próprio escritório no Recife, contando com colaboradores como Lula Cardoso Ayres, Burle Marx e Joaquim Cardozo. Além desses, teve, ao seu lado a parceira para toda a vida, a arquiteta pernambucana e designer de interiores Janete Costa, com quem se casou em 1968.


Em 1987, Borsoi e sua esposa, Janete Costa, projetaram para eles uma casa no Rio de Janeiro. Foto: Divulgação

Reservados, Borsoi e Janete não costumavam falar frequentemente sobre assuntos mais íntimos, mesmo em família. O início da história dos dois, entretanto, foi bastante difícil, visto que ambos eram casados quando se apaixonaram. Janete, que havia sido aluna de Borsoi no início da Faculdade de Arquitetura no Recife, morava no Rio de Janeiro, onde terminou o curso, e era mãe de Lúcia, Cláudia e Mário Santos. Borsoi, além de Ângela e Marco Antônio, também já era pai dos gêmeos Mônica e Eduardo.

“Naquela época, foi muito complicado para eles romperem com tudo para ficarem juntos. Separação era uma coisa absurda. Meus pais acabaram sofrendo preconceito da sociedade e dentro de casa também. Mas tudo passa e, com o tempo, toda a família se reaproximou”, conta Roberta, nascida no início dos anos 1970 e também arquiteta.

“Era um casamento de paixão e de arquitetura”, afirma Carlos Augusto Lira, que integrou a equipe do escritório do casal como estagiário e lá permaneceu até se tornar diretor. “Se Borsoi acertava na estética e na volumetria perfeita, Janete vinha e contribuía para a funcionalidade”, exemplifica, referindo-se à admiração mútua e à contribuição constante e enriquecedora de um à produção do outro. “Lembro que um dos projetos que Borsoi mais curtiu fazer foi a casa deles no Rio, em 1987, já que os dois tinham uma relação muito forte com a cidade”, observa. O gosto por receber os amigos em casa, tanto no casarão que reformaram na Rua do Amparo, em Olinda, como na residência do Rio, e o prazer em viajar – ainda jovens, conheceram a China, a Índia e o Japão – eram para Borsoi e Janete a melhor forma de relaxar.


Toda a fachada do Edifício Mirage se abre para captar a ventilação por meio de janelas e varandas. Foto: Divulgação

Outra bela empreitada em comum, além da grande família que construíram, com vários dos filhos compartilhando com eles o encanto pela arquitetura, foi a exposição Uma vida – Janete Costa e Acacio Gil Borsoi. Apresentada em 2007, no Museu do Estado de Pernambuco, a coleção consistia numa seleção de peças e objetos representativos da história e da vida do casal, reunidos ao longo de 40 anos juntos.

Criador incansável, Borsoi nunca se afastou de seu ofício. “Era comum ele ainda estar na prancheta às três horas da manhã”, comenta Roberta. E um dos principais reconhecimentos ao conjunto incontornável de sua obra acontece em 2005, ao receber o Colar de Ouro, mais importante homenagem concedida pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil. Por outro lado, foi também no trabalho que Borsoi encontrou alento, aos 84 anos e com a saúde debilitada, diante da morte da esposa, em novembro de 2008, em função de um câncer de estômago. Para ele, a ausência de Janete era insuportável e, um ano depois, em 4 de novembro de 2009, Borsoi falece, em São Paulo, em virtude do câncer que também enfrentava.

Sensível, de personalidade inquieta e sempre conectado ao hodierno, Borsoi alinhava-se entre os que perseguiam a transformação, o desafio a cumprir. Afinal, como gostava de reconhecer, essa é a natureza dos imigrantes, dos inconformados que partem para um novo mundo. E assim foi Borsoi, até o último instante. Sem negociar, seja na arquitetura ou na vida, o seu bocado de encantamento, de frio na espinha. 

PATRÍCIA AMORIM, jornalista, mestre e doutoranda em Design.

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